sexta-feira, 20 de março de 2015

Angola. CAMPOS DE SOBREVIVÊNCIA



Luísa Rogério* - Rede Angola, opinião

Deram uma sanduíche e um litro de água mineral a cada família no dia em que as “acomodaram” naquele descampado. Ao redor não havia escolas. Muito menos postos médicos. Ou lojas. Várias crianças perderam o ano lectivo, enquanto os pais deixaram de trabalhar por causa da distância. Nas imediações nada que fizesse lembrar uma humilde zona residencial. As famílias passaram a dividir pequenos contentores que, na falta de melhor descrição, podiam ser chamados de sauna dos desabrigados. Fora dos fornos o ambiente é mais desolador, principalmente quando chove. Manter o equilíbrio  no meio da lama constitui mero acaso.

A realidade nesse descampado onde várias famílias foram largadas com uma sanduíche e um litro de água mineral é tão impiedosa que desacredita qualquer tentativa de descrição. Esse lugar inimaginável fica na Kissama, a quase oitenta quilómetros de Luanda. É a habitação temporária de inúmeras famílias desalojadas em Janeiro do ano passado de uma área nobre da capital. A tal área ganhou dignidade à altura da sua localização. Ao contrário, os ex-moradores que descompunham o ambiente perderam a chance de ser tratados com alguma dignidade.

No ano passado tomei contacto com o dossier por intermédios de activistas de uma organização não-governamental. Fiquei assombrada com os relatos que denunciavam a situação que beliscava vários direitos, a começar pelo direito à habitação. O governo tinha distribuído 30 chapas e 12 barrotes para cada agregado. Alguém entendeu que, com esses meios, os cidadãos atirados à própria sorte estariam em condições de começar a conjugar o verbo desenrascar, um dos muitos que os angolanos aprenderam a valorizar com a própria experiência.

Por razões diversas deixei de acompanhar a maka dos “alojados” na Kissama. Presumo que a zona reúna já condições mínimas de habitabilidade. Deve ter ascendido a centro de estórias interligadas, à semelhança dos Zangos.

Revivi o drama de milhares por cauda das notícias de demolições que se multiplicam por todo o país. Através da comunicação social ouvi declarações atribuídas a uma deputada que me fizeram questionar se tinha consciência de estar a falar sobre a mesma massa votante que a elegera como digna representante do povo. Em síntese, o discurso fazia a apologia das demolições justificadas pela criação de melhores construções. Evidentemente o Executivo tem o prerrogativa de fazer mudanças, pois é o órgão que administra o país e o património de todos os angolanos. Visto não podermos todos gerir os recursos comuns nem usufruir deles a nosso bel-prazer, como se de saco exclusivo se tratasse, os estados modernos adoptaram regras de gestão da coisa pública.

Em Angola a definição de normas passa incontornavelmente pelo respeito ao estipulado pela Constituição que, no seu artigo 85º, consagra que “todo o cidadão tem direito a habitação e a qualidade de vida”. A Constituição garante que o Estado deve criar progressivamente as condições necessárias para tornar efectivos os direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos assim como promover o bem estar, a solidariedade social e a elevação da qualidade de vida do povo angolano, designadamente dos grupos populacionais mais desfavorecidos.

Então, como compreender que se derrubem moradias dos cidadãos, que estes sejam amontoados em cima de camiões e esquecidos num descampado com um frasco de água mineral e uma sanduíche para cada família, independentemente do número de membros? Todos sabemos, a terra é reserva do Estado que tem o direito de dispor dela. Qualquer um de nós pode ficar sem o seu pedaço de chão, estando ou não legalizado. Mas não é preciso ser guru em matéria de ciências jurídicas para perceber que as compensações estão salvaguardadas ao abrigo da lei.

É facto que grande parte das construções demolidas são ilegais e outras tantas foram erguidas com base em autorizações duvidosas ou obtidas de modo fraudulento o que dá no mesmo. Questão: por onde andou a administração pública que permitiu o crescimento desmesurado de construções à margem da lei? Descontando os construtores ilegais de carreira, especializados em juntar chapas à quatro pancadas para ganhar lugar na lista das transferências, a questão deveria merecer tratamento à altura da gravidade do problema social. A lei do martelo, ainda que com sustentação legal não deve ser a prevalecente. Haverá, com certeza outros caminhos.

Antes das transferências devem ser criadas condições mínimas de habitabilidade para os desalojados. O processo quase sempre faz lembrar a música “Bairro Indígena”, de Santocas. Ontem os angolanos foram corridos como se fossem bois em nome de Rebocho Vaz. Hoje são corridos em nome da lei, em circunstâncias humilhantes. São tratados como seres inferiores. Exactamente como na época de Rebocho Vaz, o que não faz qualquer sentido. Foi por respeito, dignidade e direitos iguais que se bateram os angolanos. Um mínimo de compaixão e alguma atenção encaixariam na fotografia os seres que “destoam” da paisagem. São serem humanos. Foram transferidos de bairros degradados para campos onde até o diabo duvida que possa haver gente. Aliás, sobreviventes!

*Luísa Rogério é jornalista, Secretária-geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos e vice-presidente da Federação Africana de Jornalistas.


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