Mudou-se
para Moçambique em 1967. Ia pregar o Evangelho, mas a sua missão acabou por ir
mais longe: o missionário espanhol apostou na educação como forma de combater a
pobreza e denunciou o Massacre de Wiriyamu.
Quando
chegou a Moçambique, Vicente Berenguer instalou-se na província central de
Tete, mais tarde mudou-se para a capital, Maputo, e hoje vive na vila de
Ressano Garcia, na fronteira com a África do Sul.
Em
Moatize, Tete, apercebeu-se de que a maioria dos moçambicanos com quem tinha
contacto tinha concluído apenas a quarta classe e que grande parte era
analfabeta. Começava assim o seu envolvimento na educação: na vila carbonífera
mandou construir o primeiro liceu.
Nos
anos 1970, Berenguer enfrentou as políticas colonialistas portuguesas que
excluíam a população negra não assimilada, foi interrogado diversas vezes pela
PIDE, a polícia política portuguesa, e convidado a deixar Moçambique. O povo,
esse, confiava nele, diz o padre espanhol.
DW
África: Alguns moçambicanos vêem-no como o “padre branco de coração negro”.
Como interpreta esta alcunha?
PV: Eu
estava na missão de Changara, a FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique]
descia já das zonas do norte de Mucumbura para a zona de Changara e começou a
ter contactos tanto com a missão como com a população, era um sistema que
utilizavam. Então, um dia numa aldeia, Cancuni, havia um grupo de homens que eu
conhecia a falar e quando eu cheguei, eles fecharam a boca todos. O velho Zoni
utilizou esta frase: “mas por que fechámos a boca se o padre Vicente é branco,
mas o coração dele é preto como o nosso?” Queria dizer: „ele está a sentir como
moçambicano”.
DW
África: Como alguém de fora, como espanhol, a quem a independência de
Moçambique não dizia diretamente respeito, como começou a interessar-se por
essa causa?
PV: Eu
acho que [perante] qualquer injustiça, seja dada onde for, ainda que não seja
no nosso país, somos obrigados a defender os direitos das pessoas. Via-se
claramente que este povo tinha o direito à independência. Portanto, ainda que
eu fosse espanhol, estava a trabalhar aqui e tinha de me inteirar dos direitos
deste povo.
DW
África: E chegou a levantar a voz de forma direta em prol dessa causa. Quando
começou essa sua postura ativa?
PV: Não
podemos dizer que houve um momento determinado em que levantámos a voz. Talvez
tenha sido o dia-a-dia do nosso trabalho em que alguém podia reparar que nós realmente
estávamos a favor da independência. Houve certos momentos em que tivemos de nos
pronunciar. Houve uma reunião famosa entre os padres brancos e, sim, declarámos
abertamente que este povo tinha o direito à independência. “Vamos ser expulsos,
mas por enquanto podemos trabalhar aqui dentro, ainda consciencializando muitas
coisas.” Então, os padres brancos optaram por fazer uma declaração. Quando
colocaram um avião no aeroporto da Beira, penso que 44 foram expulsos. Nós
continuámos a trabalhar aqui fazendo tomar consciência da realidade deles, do
orgulho da própria cultura, do ser moçambicano, do ser africano e daqueles
direitos que tinham a ser um povo independente e a levar-lhes a renda da nação
deles.
DW
África: O que é que distinguia o seu dia-a-dia durante a época da luta de
libertação de uma época em que não houvesse luta armada?
PV: Era
uma vida mais tensa. Porque não podemos esquecer que nós estávamos rodeados por
um exército português, estávamos rodeados por uma PIDE, estávamos rodeados por
muitos portugueses que se sentiam feridos quando se falava dos direitos deste
povo. Então, era uma tensão constante.
Eu
fui interrogado pela PIDE x vezes. Eles encontravam, por exemplo, medicamentos
de origem espanhola em bases que eles atacavam ou em aldeias. E
perguntavam-me se eu conhecia. Sim, eu conhecia, “fui eu que entreguei.”
“Então, o senhor entregou à FRELIMO.” “Não, eu entreguei à população. Nunca vi
escrito na cabeça de ninguém: FRELIMO. Eu entrego à população, mesmo mantas e
tudo isso.”
Uma
vez eu fui mais para o interior e a tropa portuguesa estava a recolher as
pessoas para irem para os aldeamentos e eu fui apanhado pela tropa portuguesa.
Então, queriam que eu voltasse e eu disse: “Preso eu vou. Agora se não vou
preso, eu continuo o trabalho por aqui.” Havia aquela concordata, era muito
difícil eles prenderem-te sem uma causa muito, muito clara. Então, as vezes em
que fui interrogado pela PIDE, em Tete, foi simplesmente à base de suspeitas.
DW
África: Que consequências tinham esses interrogatórios?
PV:
[Os interrogatórios mostravam que] realmente estávamos a ser vigiados. Mesmo
dentro de grupos de moçambicanos havia pessoas que podiam participar à PIDE
partes da tua vida e do teu trabalho.
DW
África: No dia 16 de dezembro de 1972, as tropas portuguesas atacaram três
aldeias na província de Tete: as povoações de Chawola, Juwau e Wiriyamu. Os
sobreviventes do massacre, que ficou conhecido como Massacre de Wiriyamu,
relataram os acontecimentos a missionários espanhóis. Um deles foi o senhor…
PV: Eu
ia de machibombo de Changara até Tete. E quando passámos por essas aldeias,
estavam todas em chamas e toda a gente estava a correr para a estrada. Parámos
aí, a gente berrava e dizia que estavam a ser mortos, chacinados, bombardeados
e foram subindo para o machibombo até não caberem mais e fomos até Tete. Outros
foram a pé e como puderam fugir. Tete não fica tão longe de Wiriyamu. Portanto,
eu fui, diríamos, testemunha, porque vi as chamas e ouvi aquelas pessoas.
DW
África: Denunciou o Massacre de Wiriyamu a nível internacional. Como fez a
denúncia?
PV: Quando
Marcelo Caetano visitou a Inglaterra, Hasting publicou este relatório que
fizemos, cada um colaborou no que podia, uns com nomes, outros com ideias. Bom,
negaram que isso fosse real e negaram mesmo a existência de Wiriyamu. E através
da Justiça e Paz fomos à Alemanha, Holanda, Bélgica e Inglaterra. Então, aí
denunciámos através da televisão, através de palestras, através de tudo.
Pedimos que viesse aqui uma comissão ver que Wiriyamu existia e que os
massacres tinham sido realizados e que as centenas de pessoas ainda estavam lá.
Na Holanda, o cardeal Alfrink imediatamente telefonou para Roma e a igreja
mexeu-se muito neste sentido e os políticos também.
DW
África: Há historiadores que consideram que este massacre mudou o rumo da
guerra colonial. Concorda?
PV: Bom,
eu pessoalmente acho que não. Eu acho que isto estava a cair já, mesmo a tropa
estava desanimada, podia haver dirigentes do exército fortes, mas o que eu via
com os soldados portugueses, eles estavam desanimados, diziam que isto não era
para eles, era a ganância económica de alguém, não era para eles nem para Portugal.
Eu acho que isto estava a decair já. Antes já tinha havido importantes
massacres, em Mucumbura, Inhaminga. Só que este de Wiriyamu passou para fora. E
aproveitou-se também a ida de Marcelo Caetano ao exterior e [teve mais
projeção], mas eu acho que já se estavam a preparar. Só que, enquanto Mucumbura
estava a 300km de Tete, Wiriyamu estava às portas de Tete. E a cidade de Tete
corria perigo. E o mundo ficou escandalizado quando [os relatórios] foram
publicados.
DW
África: Acha que ainda existem feridas na população moçambicana relacionadas
com a guerra de libertação?
PV: Não,
eu acho que a FRELIMO sempre soube explicar muito, muito bem que a guerra não
era contra os portugueses, era contra o exército português, o Governo
português. Portanto, eu acho que não houve feridas, diríamos assim. Se há
alguma ferida, pode ser daqueles mais extremistas, no sentido de racistas, ao
ver que aqui há brancos moçambicanos com todos os direitos, de quatro, cinco,
seis gerações, podem sentir-se um bocado feridos, mas da luta de libertação, eu
acho que não.
DW
África: Houve algum episódio da guerra de libertação que o tenha marcado
especialmente?
PV: Um
[episódio] caricato muito bonito foi que eu uma vez recebi uma encomenda de
Espanha, umas canas de bambu pequenas, porque na aldeia onde vivia o meu irmão
fazem muita mobília de bambu importado. E ele queria vir aqui ver se havia. E
eu falei que aqui, onde eu estava, não havia bambu. E eles pensavam que eu não
sabia o que era bambu. E enviaram-me numa caixinha uns pedacinhos de bambu. E
aí chamou-me a PIDE em Changara, nos correios, para eu dizer o que era isso.
“Isto é bambu.” “Parte para saber se é bambu ou não. Vamos partir isto para
saber o que tem dentro.” “Podem partir, mas isso é bambu”. Então, é caricato
desconfiar de umas canas pequenitas. Não sei se havia algum segredo, mas era
bambu tapado. É uma coisa caricata.
Marta
Barroso – Deutsche Welle
Sem comentários:
Enviar um comentário