domingo, 3 de maio de 2015

Angola. OS TRANSPARENTES E OS QUE MANDAM MAIS DO QUE DEUS




A corrupção chega a Angola, a Portugal, ao Brasil, a todo o lado. Muitas vezes não a percebemos. Mas esse fogo da corrupção arde sem se ver.

Francisco Louçã – Carta Maior

Quando se fala tanto de corrupção, convido os leitores e as leitoras a deitarem os olhos a um livro do escritor angolano Ondjaki, Os Transparentes, de 2012.

O livro descreve a vida quotidiana num prédio de Luanda, e os modos de vida dos habitantes, dos musseques às grandes famílias, uns submetidos à penúria, outros aos esquemas, às ameaças, à prepotência, bem como à corrupção, ao autoritarismo e às redes de negócios que dominam o seu país. É um livro sobre a gente que se desenrasca e sobre os medos do dia seguinte. Assim, é um retrato da grandeza e das misérias de um país em transformação, escarnecendo da ideologia auto-justificativa e do discurso do poder – e é portanto um retrato desse poder, em que tudo se justifica, todos os fins consagram os meios. Vale tudo para o poder que tem todo o poder.

Nesta Luanda, conta Ondjaki, o prédio de sete andares, sem elevador, tem tudo, “respirava como uma entidade viva”. São os transparentes que lá habitam. Um jornalista, um vendedor de conchas, um coronel, um mudo, um assessor, uma secretária, um camarada ministro, um carteiro que escreve cartas e que lê as cartas dos outros mas esquece logo, professores, fiscais, uma multidão vive na cidade, e na cidade acontece tudo. Abre-se um cinema “desoficial, porque não precisa de papéis”, no terraço que está disponível. Criam-se igrejas. Preparam-se atentados mortais. Chegam prostitutas suecas.

Nesta Luanda há sempre um poder superior, que só pode ser reverenciado:

“- mas quem manda em tudo isto?
- gente muito superior.
- superior... como deus?
- não. superior mesmo! aqui em Angola há pessoas que estão a mandar mais que deus.”

Por isso, a burocracia e o poder são imperscrutáveis, mandam mais do que deus. Com eles, nascem projetos megalômanos e inventam-se novas riquezas: o governo cria a CIPEL, a “comissão instaladora do petróleo encontrável em Luanda”, que “instala, só que você não vê a instalação, é uma comissão para alguém se instalar mesmo” e a vida prossegue, com escavações “in shore” ou “under city”. Tudo “com a colaboração de países como os Estados Unidos, a Rússia, a França, a Índia e o Brasil. Então e os tugas não mamam desta vez? Riu alguém”. Os tugas, os portugueses, ficaram de fora.

Só que estes negócios “mexem na raiz da árvore e pensam que a sombra fica no seu lugar”. A cidade, cheia de novas canalizações nas suas entranhas, agita-se e perturba-se. Para entreter a população, esses transparentes, o governo anuncia então um espetáculo inesquecível, um eclipse deslumbrante. Importam-se óculos de-ver-o-eclipse, chegam excursões de cientistas, as arcas frigoríficas enchem-se de cerveja para a festa, preparam-se os balões, discute-se o aumento do número de feriados para comemorar devidamente os grandes acontecimentos. Luanda estremece e fervilha.

Mas, com festa ou sem festa, há sempre um negócio que sobrevive e que usa uma igreja para se esvair para zonas seguras, o que pode ser em Portugal, ou noutro país qualquer, os paraísos do dinheiro sujo estão por todo o lado:

“- vocês conseguem por esse dinheiro lá fora?
- aonde? – perguntou o fiscal DaOutra
- pode ser em Portugal
- podemos, dependendo da quantia
- então tá fechado o negócio, vão manter o nome do empreendimento?
- sim, é um bom nome, tem resultado bem, as pessoas já se habituaram à IgrejaDaOvelhinhaSagrada”

O povo entretem-se e bebe e os balões voam. No livro, o apocalipse, afinal, é a vida de todos os dias, mesmo quando Luanda arde, as canalizações explodem e tudo é invadido por um fogo “vermelho devagarinho”.

Ondjaki conta-nos do fogo que já chegou à nossa terra. A Angola, a Portugal, ao Brasil, a todo o lado. Muitas vezes não o sentimos, outras não o percebemos. Mas esse fogo da corrupção arde sem se ver.


Créditos da foto: Bloco / Flickr

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