Rafael
Marques de Morais, 3 de Outubro de 2015 – Maka Angola
Discurso
na cerimónia de atribuição do Prémio Allard em Vancouver, Canadá.
Sinto-me
profundamente honrado por estar hoje aqui, na grande Faculdade de Direito Allard da
Universidade de British Columbia, e imensamente grato por ter sido homenageado
com o prestigiado Prémio Allard de Integridade Internacional.
Partilhar
este Prémio com John Githongo, que foi sempre uma inspiração para mim, é uma
lição de humildade. O meu tributo vai para os finalistas Indonesian Corruption
Watch e o malogrado Sergei Magnitsky, pelo seu extraordinário trabalho.
Dedico
este prémio à minha família, pelo seu amor e apoio incondicionais.
O
caminho que percorri para merecer o vosso reconhecimento tem uma certa ironia;
gostaria de a partilhar convosco.
Em
2009, depois de terminar um mestrado na Universidade de Oxford, voltei para
casa – para Angola – sem perspectivas de conseguir trabalho. Tornara-me um
perigo maior para os poderosos, uma vez que tinha dotado o meu antigo
compromisso com a liberdade de expressão de mais conhecimentos, capacidade
estratégica e uma reputação académica.
Se
há algo que funciona bem em Angola, é a política de diminuir aqueles que
levantam vozes críticas, humilhando-os, transformando-os em seres humanos
inferiores ou completamente apartados da normatividade medíocre imposta pelo
regime. A título de exemplo, em 2013, dentro do Quartel-General da Polícia de
Intervenção Rápida, um dos seus comandantes pisoteou-me nas costas com as suas
botas enquanto os seus subordinados filmavam o acto, demonstrando assim que eu
podia ser esmagado pelo regime com total impunidade.
Desempregado,
passava bastante tempo nas lindas praias de Luanda. Um dia, tive aí uma longa
conversa sobre responsabilidade social com uma amiga e um colega seu. Os dois
integravam a multimilionária máquina de propaganda do governo.
Expliquei-lhes
que enquanto escrevia a minha tese - “The Transparency of Looting in Angola [A
Transparência do Saque em Angola]” - tinha criado involuntariamente uma base de
dados sobre a corrupção no país, mas que não tinha forma de partilhar a maior
parte desta informação com o público, por falta de meios de comunicação.
O
colega da minha amiga, com o qual eu falava pela primeira vez, voluntariou-se
para criar e gerir uma página web que me permitisse partilhar a informação que
eu detinha. Dessa forma, durante um ano, as minhas investigações – que haviam
tido muito impacto – foram sendo transpostas para a internet nas mesmas
instalações em que se fabricava a propaganda do regime.
O
meu objectivo ao partilhar esta pequena história é demonstrar a importância da
consciência social, e o modo como esta pode unir pessoas de campos
aparentemente opostos. A minha história, tal como o meu trabalho, não é de
oposição, mas sim de afirmação de valores democráticos.
Em
Angola, as pessoas são frequentemente levadas a abdicar da sua auto-estima e do
seu sentido de cidadania em troca de militância partidária ou de silêncio. Isso
surge como resposta à promessa de certos privilégios ou como forma de mitigar o
receio de perseguição política e social e de exclusão económica.
É
a corrupção que permite ao governo manter uma corte de beneficiários que, uma
vez manietados pela existência de claras leis anticorrupção, se vêm forçados a
manter obediência aos poderes estabelecidos, garantindo assim imunidade.
Como
cidadão, acredito na liberdade de escolha e na operacionalidade dos direitos
constitucionais atribuídos aos cidadãos. A existência de um Estado de Direito é
condição fundamental para qualquer uma das duas.
No
meu país, a cleptocracia é lei e a corrupção quotidiana, uma forma de vida.
Como tal, ser homenageado por enfrentar essa praga e por manter a integridade é
uma prova de que podemos contribuir para mudar pontos de vista e promover
valores morais fundamentais para a manutenção de um Estado de Direito.
Até
2013, Angola destacou-se como uma das dez economias mundiais com crescimento
económico mais acelerado. Tornou-se o segundo maior produtor de petróleo em África
no exacto momento em que os preços desta matéria-prima batiam recordes.
Esta
riqueza desencadeou uma nova corrida internacional para o seu usufruto. Toda e
qualquer conversa sobre a necessidade de uma boa governação, prestação de
contas e Estado de Direito, depois de décadas de guerra, tornou-se
inconveniente para a nova narrativa de uma Angola próspera e de sucesso.
Infelizmente, o dito boom económico não se estendeu aos cidadãos comuns,
irrelevantes.
Praticamente
dispensados de fiscalização, a família presidencial e o seu círculo mais
próximo de privilegiados, juntamente com a companhia petrolífera nacional
Sonangol – a sua arca do tesouro –, confundem recursos públicos com as suas
próprias bolsas.
No
passado mês de Abril, expus o caso de José Filomeno dos Santos, filho do
presidente da República e presidente do Fundo Soberano de Angola, que no mês de
Janeiro desviou
cem milhões de dólares deste Fundo através de um esquema amador.
Há
dias, trouxe a lume uma outra história envolvendo dinheiro do petróleo. A
Sonangol – que não é um banco – emprestou
731 milhões de dólares a alguns dirigentes para que construíssem uma
fábrica de cimento privada, tendo depois eliminado (ilegalmente) esta dívida
dos seus registos contabilísticos.
Todas
estas práticas configuram, à luz da lei angolana, actos de crime de corrupção,
mas a lei angolana não se aplica aos poderosos que a violam.
Hoje,
com a queda abrupta dos preços do petróleo, deparamo-nos com um enorme
problema. Angola teve de enfrentar o facto de 95% das suas receitas em moeda
estrangeira provirem das exportações do petróleo. A narrativa do crescimento
económico expirou.
Entretanto,
tem-se ganho força em Angola uma nova forma de fascismo, concebida com o
propósito específico de prolongar os já 36 anos do presidente José Eduardo dos
Santos no poder e os 40 anos de governação do seu MPLA. Isso mesmo se tornou
evidente em Março passado, com a detenção de um activista em Cabinda , que
vinha planeando um protesto pacífico contra a má gestão dos recursos
petrolíferos nessa província e outros problemas governamentais. Depois de seis
meses detido, Marcos Mavungo foi recentemente condenado por um pseudo-tribunal
a seis anos de prisão, pelo crime de rebelião.
Pouco
depois, em Abril, a polícia e as forças militares massacraram peregrinos de uma
seita religiosa na província do Huambo. As Nações Unidas mal se fizeram ouvir
quando pediram uma investigação internacional. O massacre tornou-se mera nota
de rodapé.
No
passado mês de Junho, 15 jovens foram detidos durante uma sessão de um grupo de
leitura onde discutiam o protesto não-violento e debatiam a sua aplicabilidade
no contexto angolano. Foram acusados politicamente de planear um golpe de
Estado contra o presidente. É o maior dos insultos à liberdade de expressão:
prender alguém por discutir acerca de um livro sobre não-violência.
Entretanto,
várias pequenas tentativas de protestos têm sido violentamente esmagadas pela
polícia e outras forças de segurança.
É
este o contexto em que trabalho. Em breve virão dias de maior tensão, ou não
estivesse o governo a tornar-se cada vez mais errático, com o seu verniz de
sofisticação a estalar.
Aproveito
esta oportunidade para apelar ao meu presidente, José Eduardo dos Santos, do
alto desta venerável tribuna. Apelar para que ponha fim ao fascismo e liberte
os presos políticos. Para que ouça o grito angolano: “Liberdade Já!”.
E
digo-vos a todos vós que aqui estão esta noite e que apoiam os meus esforços –
apesar de tudo – que continuarei a lutar como jornalista de investigação,
defensor dos direitos humanos e, simplesmente, como cidadão do meu país
sitiado.
Muito
obrigado por me homenagearem esta noite.
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