segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A EMERGÊNCIA DO FASCISMO EM ANGOLA



Rafael Marques de Morais, 3 de Outubro de 2015 – Maka Angola

Discurso na cerimónia de atribuição do Prémio Allard em Vancouver, Canadá.

Sinto-me profundamente honrado por estar hoje aqui, na grande Faculdade de Direito Allard da Universidade de British Columbia, e imensamente grato por ter sido homenageado com o prestigiado Prémio Allard de Integridade Internacional.

Partilhar este Prémio com John Githongo, que foi sempre uma inspiração para mim, é uma lição de humildade. O meu tributo vai para os finalistas Indonesian Corruption Watch e o malogrado Sergei Magnitsky, pelo seu extraordinário trabalho.

Dedico este prémio à minha família, pelo seu amor e apoio incondicionais.

O caminho que percorri para merecer o vosso reconhecimento tem uma certa ironia; gostaria de a partilhar convosco.

Em 2009, depois de terminar um mestrado na Universidade de Oxford, voltei para casa – para Angola – sem perspectivas de conseguir trabalho. Tornara-me um perigo maior para os poderosos, uma vez que tinha dotado o meu antigo compromisso com a liberdade de expressão de mais conhecimentos, capacidade estratégica e uma reputação académica.

Se há algo que funciona bem em Angola, é a política de diminuir aqueles que levantam vozes críticas, humilhando-os, transformando-os em seres humanos inferiores ou completamente apartados da normatividade medíocre imposta pelo regime. A título de exemplo, em 2013, dentro do Quartel-General da Polícia de Intervenção Rápida, um dos seus comandantes pisoteou-me nas costas com as suas botas enquanto os seus subordinados filmavam o acto, demonstrando assim que eu podia ser esmagado pelo regime com total impunidade.

Desempregado, passava bastante tempo nas lindas praias de Luanda. Um dia, tive aí uma longa conversa sobre responsabilidade social com uma amiga e um colega seu. Os dois integravam a multimilionária máquina de propaganda do governo.

Expliquei-lhes que enquanto escrevia a minha tese - “The Transparency of Looting in Angola [A Transparência do Saque em Angola]” - tinha criado involuntariamente uma base de dados sobre a corrupção no país, mas que não tinha forma de partilhar a maior parte desta informação com o público, por falta de meios de comunicação.

O colega da minha amiga, com o qual eu falava pela primeira vez, voluntariou-se para criar e gerir uma página web que me permitisse partilhar a informação que eu detinha. Dessa forma, durante um ano, as minhas investigações – que haviam tido muito impacto – foram sendo transpostas para a internet nas mesmas instalações em que se fabricava a propaganda do regime.

O meu objectivo ao partilhar esta pequena história é demonstrar a importância da consciência social, e o modo como esta pode unir pessoas de campos aparentemente opostos. A minha história, tal como o meu trabalho, não é de oposição, mas sim de afirmação de valores democráticos.

Em Angola, as pessoas são frequentemente levadas a abdicar da sua auto-estima e do seu sentido de cidadania em troca de militância partidária ou de silêncio. Isso surge como resposta à promessa de certos privilégios ou como forma de mitigar o receio de perseguição política e social e de exclusão económica.

É a corrupção que permite ao governo manter uma corte de beneficiários que, uma vez manietados pela existência de claras leis anticorrupção, se vêm forçados a manter obediência aos poderes estabelecidos, garantindo assim imunidade.

Como cidadão, acredito na liberdade de escolha e na operacionalidade dos direitos constitucionais atribuídos aos cidadãos. A existência de um Estado de Direito é condição fundamental para qualquer uma das duas.

No meu país, a cleptocracia é lei e a corrupção quotidiana, uma forma de vida. Como tal, ser homenageado por enfrentar essa praga e por manter a integridade é uma prova de que podemos contribuir para mudar pontos de vista e promover valores morais fundamentais para a manutenção de um Estado de Direito.

Até 2013, Angola destacou-se como uma das dez economias mundiais com crescimento económico mais acelerado. Tornou-se o segundo maior produtor de petróleo em África no exacto momento em que os preços desta matéria-prima batiam recordes.

Esta riqueza desencadeou uma nova corrida internacional para o seu usufruto. Toda e qualquer conversa sobre a necessidade de uma boa governação, prestação de contas e Estado de Direito, depois de décadas de guerra, tornou-se inconveniente para a nova narrativa de uma Angola próspera e de sucesso. Infelizmente, o dito boom económico não se estendeu aos cidadãos comuns, irrelevantes.

Praticamente dispensados de fiscalização, a família presidencial e o seu círculo mais próximo de privilegiados, juntamente com a companhia petrolífera nacional Sonangol – a sua arca do tesouro –, confundem recursos públicos com as suas próprias bolsas.

No passado mês de Abril, expus o caso de José Filomeno dos Santos, filho do presidente da República e presidente do Fundo Soberano de Angola, que no mês de Janeiro desviou cem milhões de dólares deste Fundo através de um esquema amador.

Há dias, trouxe a lume uma outra história envolvendo dinheiro do petróleo. A Sonangol – que não é um banco – emprestou 731 milhões de dólares a alguns dirigentes para que construíssem uma fábrica de cimento privada, tendo depois eliminado (ilegalmente) esta dívida dos seus registos contabilísticos.

Todas estas práticas configuram, à luz da lei angolana, actos de crime de corrupção, mas a lei angolana não se aplica aos poderosos que a violam.

Hoje, com a queda abrupta dos preços do petróleo, deparamo-nos com um enorme problema. Angola teve de enfrentar o facto de 95% das suas receitas em moeda estrangeira provirem das exportações do petróleo. A narrativa do crescimento económico expirou.

Entretanto, tem-se ganho força em Angola uma nova forma de fascismo, concebida com o propósito específico de prolongar os já 36 anos do presidente José Eduardo dos Santos no poder e os 40 anos de governação do seu MPLA. Isso mesmo se tornou evidente em Março passado, com a detenção de um activista em Cabinda , que vinha planeando um protesto pacífico contra a má gestão dos recursos petrolíferos nessa província e outros problemas governamentais. Depois de seis meses detido, Marcos Mavungo foi recentemente condenado por um pseudo-tribunal a seis anos de prisão, pelo crime de rebelião.

Pouco depois, em Abril, a polícia e as forças militares massacraram peregrinos de uma seita religiosa na província do Huambo. As Nações Unidas mal se fizeram ouvir quando pediram uma investigação internacional. O massacre tornou-se mera nota de rodapé.

No passado mês de Junho, 15 jovens foram detidos durante uma sessão de um grupo de leitura onde discutiam o protesto não-violento e debatiam a sua aplicabilidade no contexto angolano. Foram acusados politicamente de planear um golpe de Estado contra o presidente. É o maior dos insultos à liberdade de expressão: prender alguém por discutir acerca de um livro sobre não-violência.

Entretanto, várias pequenas tentativas de protestos têm sido violentamente esmagadas pela polícia e outras forças de segurança.

É este o contexto em que trabalho. Em breve virão dias de maior tensão, ou não estivesse o governo a tornar-se cada vez mais errático, com o seu verniz de sofisticação a estalar.

Aproveito esta oportunidade para apelar ao meu presidente, José Eduardo dos Santos, do alto desta venerável tribuna. Apelar para que ponha fim ao fascismo e liberte os presos políticos. Para que ouça o grito angolano: “Liberdade Já!”.

E digo-vos a todos vós que aqui estão esta noite e que apoiam os meus esforços – apesar de tudo – que continuarei a lutar como jornalista de investigação, defensor dos direitos humanos e, simplesmente, como cidadão do meu país sitiado.

Muito obrigado por me homenagearem esta noite.

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