Expresso
das Ilhas, editorial
Já
há muito que se tornou evidente que crispação política, excessiva polarização
partidária e pressão política directa sobre indivíduos e grupos sociais são os
maiores constrangimentos à participação cidadã em Cabo Verde. O ambiente de
crispação inibe intervenções de qualquer natureza na esfera pública,
designadamente as cívicas e académicas. A polarização partidária exacerbada
pela actuação de um Estado e de uma administração pública por todos reconhecida
como partidarizada não deixa muito espaço para a sociedade civil respirar. A
pressão política no dia-a-dia convida ao conformismo, ao desenvolvimento do
clubismo político e à contenção na expressão de opiniões.
Todos
esses factores convergem para dissuadir as pessoas de exercerem a sua cidadania
de forma livre e plena. Afectadas são também os “media” cuja missão é informar
e provocar intercâmbio de ideias na sociedade. O impacto é ainda sentido por
exemplo nas organizações associativas que procuram criar para si espaços
próprios e autónomos de convivência, de participação cívica e de solidariedade
e vêem-se sujeitas a pressões de várias espécies. A questão que se coloca é se
a situação actual corresponde a alguma etapa no processo evolutivo da
democracia cabo-verdiana ou se é algo que é deliberadamente reproduzido para
potenciar ganhos políticos.
Se
se assume que é uma etapa, alguma vontade poderá ser criada para a ultrapassar.
Mas se, como é o caso, há satisfação oficial das autoridades com a realidade do
momento, o mais provável é que se queira mantê-la e reproduzi-la ao longo do
tempo. De facto, nota-se que muito da acção política é dirigida para manter a
crispação. Todos os dias descobrem-se novos pontos de fractura que permitem
identificar quem é “nós” e quem são “eles”. Tudo parece servir para isso, Amilcar
Cabral, barragens, Chã das Caldeiras e até a própria chuva. No mesmo sentido
vai o esforço de rotulagem política. Ao tentar abarcar todos, inibe muitos
particularmente os interventivos. Passa a ser uma arma e uma forma de calar os
críticos.
Na
corrida para o desenvolvimento, há uma opção fundamental que países e governos
devem fazer. Se fazem dos seus cidadãos objectos passivos das
políticas e acções estatais ou se os colocam em posição de sujeitos do
seu próprios desenvolvimento, armados da sua criatividade, energia e vontade de
prosperar. No primeiro caso, o Estado gere grande parte da economia nacional
incluindo a ajuda externa e empréstimos para garantir algum rendimento e levar
benefícios diversos às populações mas os resultados são típicos de países que
vivem de rendas, ou seja, crescimento baixo, desemprego e futuro precário. Um
custo associado é o autoritarismo crescente do Estado, as limitações no
exercício da cidadania e o lastro que se acumula enquanto o assistencialismo e
outras formas de dependências efectivamente corroem a vontade e a energia da
nação.
No
segundo caso que é dos países que conseguiram realizar um desenvolvimento
sustentado é mais do que claro a importância da liberdade, do exercício de uma
cidadania plena e das condições institucionais para que cada indivíduo esteja
em posição de dar o maior de si próprio para a sua prosperidade e a da sua
família e contribuir para a riqueza nacional. Os governos nesses casos são
avaliados pelo que podem disponibilizar às pessoas para que elas próprias
possam produzir, criar e realizar. O processo político aí tem um papel muito
claro: perante uma realidade sempre em transformação deve poder encontrar
soluções novas e inovadoras, corrigir erros, e assumir e exigir
responsabilidades. Evita-se por isso a crispação política, a excessiva
polarização partidária e o intervencionismo estatal que só dificulta e aumenta
custos e coarcta a iniciativa das pessoas.
Os
acontecimentos da semana passada vêm lembrar como ainda em Cabo Verde está-se
longe do modelo e da atitude que noutras paragens provaram que podem levar ao
desenvolvimento. Continuam as cerimónias oficiais de entrega de casas, no
quadro do programa “Casa Para Todos”, com rendas resolúveis a partir de 750
escudos por 25 anos para apartamentos que custaram mais de 2 mil contos. O
debate sobre a situação da justiça e a interpelação sobre o fundo do ambiente
evidenciaram mais uma vez a inquietante tendência do governo em não
responsabilizar-se por nada, em não reconhecer quaisquer falhas e em não
proceder de forma a corrigir eventuais erros. A campanha movida nas redes sociais
por destacados activistas do PAICV contra a comentarista da TCV e colunista do
Expresso das Ilhas, Rosário da Luz, mais uma vez mostrou as marcas de quem não
quer cidadãos interventivos e críticos na esfera pública. A decisão da TCV em
dispensá-la na sequência dessa campanha deixa a impressão forte e inquietante
de que tais acções são efectivas.
Já
devia ser evidente que é um erro grave e insustentável manter os cidadãos como
simples objecto das políticas do Estado. Acaba-se sempre por ferir a liberdade
e a democracia e o país não prospera como devia. Só quem se rege pelo desejo
absoluto do poder é que insiste nesse caminho. Legitimidade e vitória nas urnas
devem ser ganhas não pela via restritiva do condicionamento da vontade política
mas sim pela capacidade de produção de soluções inovadoras em ambiente de
competição livre de ideias e projectos de futuro e em que restrições à
cidadania plena não existam.
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