Rui Peralta, Luanda
Dos
dogmas á realidade
A maximização das satisfações do individuo, dos benefícios e lucros do
empresário e do investidor são, hoje, dogmas assumidos pela economia
convencional e ensinados aos estudantes do ensino médio, da formação
profissional ou das universidades como algo de normal, que impregnou as
práticas culturais, sociais e económicas. É mesmo apresentado como um facto
biológico, uma condição natural da espécie humana.
No
entanto os estudos antropológicos apresentam-nos sociedades que desde á 200 mil
anos colaboram em pequenos grupos, levando uma vida satisfatória e mesmo com
apreciáveis níveis de qualidade, podendo em alguns casos serem consideradas
sociedades opulentas. A primatologia relata-nos imensos casos de comunidades de
símios profundamente aparentadas connosco, compartilhando 99% do ADN, que nos
antecederam em cerca de 6 milhões de anos e que eram comunidades caracterizadas
por uma intensa vida social e de grandes laços solidários. A microbiologia e a
sociobiologia demonstram que a vida conquistou o planeta através da cooperação,
mesmo no caso em que os combates foram acérrimos e os níveis de competitividade
exigentes. As formas de vida multiplicaram-se e tornaram-se mais complexas
associando-se. Os mecanismos de adaptação e de selecção natural não são mais do
que complexos sistemas de cooperação, estabelecendo-se alianças, associações,
fusões de interesses em função das necessidades e cruzamentos. Os mecanismos de
competição implicam cooperação.
Os
traços cooperativos ficaram marcados na nossa fisiologia através de neurónios
que induzem empatia e que nos levam a colocarmo-nos no lugar do outro, a
sofrer, chorar e rir com os outros. Nos nossos olhos a colaboração manifesta-se
na esclerótica – a parte branca do olho humano – que é três vezes maior que as outras
200 espécies de primatas e que constitui uma característica especificamente
humana, que faz com que a direcção do nosso olhar seja detectada pelos demais e
sirva para nos comunicarmos. Portanto a cooperação já se encontra na nossa
condição natural, como espécie.
A
eficácia autogestionária
A
posse comum é muito mais eficaz no mercado do que a teoria convencional apregoa
e formata na cabeça dos jovens estudantes e nos anfiteatros da propaganda. Não
é uma panaceia, uma solução final, mas é um meio eficaz para atingir
objectivos, virar a página de uma etapa e estabelecer novas metas. Observe-se
os sistemas de irrigação do Nepal, por exemplo. Os sistemas de irrigação
geridos pelos camponeses e pelas comunidades rurais são mais eficazes em termos
de aprovisionamento de água e apresentam maior produtividade e menos custos que
os sistemas de irrigação construídos com a ajuda do Banco Asiático para o
Desenvolvimento, do Banco Mundial, da USAID, etc. Ou seja, os grupos locais são
mais eficazes, conhecem o terreno, conhecem a especificidade dos seus
problemas, desenvolvem melhor os conceitos de gestão e solucionam de forma
optimizada os seus problemas.
O
mercado, entendido como esfera da vida humana, como “Ágora”, é o espaço social
que demarca a relação entre o Eu e o(s) Outro(s). Torna-se congruente como
esfera da vida social alicerçado na condição colaborativa, empática, amorosa e
não-violenta. A destruturação causada pelo capitalismo no mercado, as relações
introduzidas pelo capitalismo no mercado, baseadas na luta de todos contra
todos, da competição feroz, da concorrência irracional, são factores que
destroem o funcionamento do mercado, impedem a livre iniciativa e aprisionam o
individuo num universo concentracionário.
A
autogestão é possível e eficaz. Frente aos que argumentam que o Estado deve
controlar a maioria dos recursos naturais para evitar a destruição e frente aos
argumentos dos que sugerem a “panaceia” da privatização, os exemplos que nos
chegam do mundo (da economia-mundo) apontam no sentido oposto ao destes dois
argumentos. Distintas comunidades de indivíduos logram um uso produtivo e
sustentável a longo-prazo na regulação e gestão de sistemas de recursos
naturais. São reconhecidos os falhanços da privatização dos recursos não
estacionários como a água e as pescas, assim como os desastres provocados pelas
nacionalizações (estatizações) de recursos comuns que estavam nas mãos das
comunidades, conforme nos apontam os exemplos dos bosques comunais na
Tailândia, Nigéria, Nepal e India e como problemas similares ocorrem quando os
organismos estatais pretendem ter uma jurisdição exclusiva sobre as águas
costeiras, a começar pelos efeitos desastrosos na pesca e a acabar na tragédia
da destruição dos ecossistemas costeiros e marítimos.
Algumas
experiências centenárias
Os
êxitos, no entanto, não são apenas em experiências recentes. Existem múltiplas
experiências centenárias que continuam a funcionar em pleno. É o caso da aldeia
de Torbel, na região alpina da Suíça. Torbel tem cerca de 600 habitantes e gere
os bens comuns desde 1225. As terras, por exemplo, afectam 80% do território e
a propriedade privada coexiste com a propriedade comunal, sendo esta exercida
em regime de autogestão. Os direitos sobre os pastos são revistos de 10 em 10
anos.
Outra
experiência centenária é nas Filipinas, com as comunidades formadas em torno
dos regos. Existem comunidades cuja origem remonta ao século XVII e ainda
existem cerca de 700 comunidades espalhadas por todo o país. As comunidades
reúnem-se em assembleias, estabelecem as suas regras de funcionamento, elegem
os seus funcionários, cuidam dos canais de irrigação e decidem qual a
contribuição em trabalho de cada um dos seus membros para o colectivo.
No
Japão existem desde o século XVI, pelo menos, a gestão de terras comunitárias
geridas por instituições locais das aldeias. Entre 1600 e 1867 (período
Tokugawa), milhares de aldeias administravam em comum cerca de 12 milhões de
hectares de bosques e prados, sendo que actualmente este tipo de gestão cobre
cerca de 3 milhões de hectares.
Alguns
requisitos fundamentais
Estes
são apenas alguns exemplos de autogestão centenária que persistem na
actualidade. Um facto transparece destes e de outros exemplos: nenhum exemplo
de bem comum sofreu qualquer deterioração ecológica. Mas para que a autogestão
seja implementada e surta efeitos existem requisitos que permitem o êxito e
viabilizam estes processos:
1)
Limites claramente definidos. Limites de extracção e limites de recursos;
2)
Coerência entre apropriação e provisão. As regras de apropriação restringem o
tempo, o espaço, a tecnologia e a quantidade de unidades do recurso. Nem todas
as instituições são iguais no espaço e no tempo. A diversidade biológica,
cultural e ecológica tem de ser respeitada;
3)
Auto-organização, autonomia e participação;
4)
Supervisão. Funcionamento de estruturas internas de supervisão;
5)
Sanções. Abolir a impunidade. Permanente exercício critico;
6)
Mecanismos para a resolução de conflitos. Os conflitos são inerente às
dinâmicas evolutivas de qualquer estrutura organizativa. Admitir os conflitos e
geri-los, nunca evitá-los;
7)
Direitos de organização. Os direitos dos usuários a construir as suas próprias
instituições não dêem ser questionados pelas autoridades governamentais, nem
devem ser proibidos;
8)
Importante a expansão das experiencias com base em múltiplos níveis de
entidades (união associativa, federações, etc.).
Concluindo
A
História não molda de forma unilateral o Futuro. Este constrói-se através de
lógicas de negação e de rupturas, num conflito permanente entre a lei da
acumulação e a sua negação.
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