Aos
poucos, Estados transferem poder de regulamentar vida econômica e financeira
aos “mercados”. Se não for freada, tendência destruirá direitos sociais e
natureza
George
Monbiot – Outras Palavras - Tradução: Gabriel Filippo Simões - Imagem:Jack
Livine
O
que os governos aprenderam com a crise financeira? Eu poderia escrever uma
coluna falando sobre isso. Ou poderia explicar com uma única palavra: nada.
Na
verdade, nada é muito generoso. As lições aprendidas são contra-lições,
anticonhecimento, novas políticas que dificilmente poderiam ser melhor
concebidas para assegurar a recorrência da crise, dessa vez com acréscimo de
impulso e menos remédios. E a crise financeira é apenas uma das múltiplas
crises – de arrecadação, gasto público, saúde pública e, acima de todas, ecológica
– que as mesmas contra-lições fazem acelerar.
Volte
um pouco atrás e você verá que todas essas crises têm origem na mesma causa.
Atores com grande poder e alcance global são liberados do império das leis.
Isso acontece devido à corrupção fundamental no núcleo da política. Em quase
todas as nações, os interesses das elites econômicas tendem a pesar mais na
balança dos governos do que os interesses do eleitorado. Bancos, corporações e
proprietários de terras exercem um poder enigmático, operando silenciosamente
entre os membros da classe política. A governança global está se tornando algo
semelhante a uma reunião infinita do Clube de Bilderberg1.
O
professor de direito Joel Bakan, num artigo no Cornell International Law
Journal, argumenta que dois movimentos alarmantes estão acontecendo
simultaneamente. De um lado, os governos vêm revogando leis que restringem a
ação de bancos e corporações, sob o argumento de que a globalização enfraquece
os Estados, tornando impossível uma legislação efetiva. Como alternativa, eles
dizem, nós devemos confiar na autorregulação daqueles que exercem o poder
econômico.
Por
outro lado, os mesmos governos concebem novas leis draconianas para fortalecer
o poder da elite. Às corporações são dados os direitos de pessoas físicas. Seus
direitos de propriedade são reforçados. Aqueles que protestam contra elas estão
sujeitos ao controle e à vigilância policial. Ah, o poder do Estado continua
muito bem a existir – quando é conveniente…
Muitos
de vocês já terão ouvido falar sobre a Parceria Transpacífica (TPP) e da
proposta da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). São,
supostamente, acordos de comércio – mas pouco têm a ver com comércio e, sim,
com poder. Ampliam o poder das corporações, enquanto reduzem o poder dos
parlamentos e do Estado de Direito. Tais acordos não poderiam ser melhor
concebidos para exacerbar e universalizar nossas múltiplas crises – financeira,
social e ambiental. Mas algo ainda pior está por vir, o resultado de
negociações conduzidas, mais uma vez, em segredo: um Acordo sobre o Comércio de
Serviços (TiSA), cobrindo a América do Norte, a União Europeia, Japão,
Austrália e muitas outras nações.
Apenas
através do Wikileaks temos alguma ideia do que está sendo planejado. Este
acordo poderia ser usado para forçar nações a aceitar novos produtos e serviços
financeiros, a aprovar a privatização de serviços públicos e a reduzir os
padrões de precaução e provisão. Esta parece ser a maior agressão à democracia
arquitetada nas últimas duas décadas. O que significa muito.
O
Estado, em sua autoflagelação, proclama que não tem mais poder. Ao mesmo tempo,
aniquila sua própria capacidade de legislar – doméstica e internacionalmente.
Como se a última crise financeira não tivesse ocorrido, e como se não estivesse
ciente de sua causa, o ministro das Finanças britânico, George Osborne, em seu
mais recente discurso na Prefeitura de Londres, disse à sua plateia de
banqueiros que “a principal exigência na nossa renegociação é que a Europa
interrompa a regulação onerosa e prejudicial”. O primeiro-ministro David
Cameron vangloriou-se de comandar “o primeiro governo na história moderna que,
ao fim de sua legislatura, possui menos regulações em prática do que havia no
começo”.
Isso,
num mundo de crescente complexidade e onde crescem os crimes corporativos, é
pura imprudência. Mas não tenha medo, eles dizem: o poder econômico não precisa
se sujeitar ao Estado de Direito. Ele consegue se regular por si próprio.
Alguns
de nós há tempos suspeitamos que isso seja uma grande tolice. Mas, até agora, a
suspeita era tudo que tínhamos. Esta semana foi publicada o primeiro estudo
global sobre autorregulação. Tal estudo foi encomendado pela Britain’s Royal
Society for the Protection of Birds2, mas se estende a todos os setores,
desde agentes de pequenos empréstimos até criadores de cães. E ele mostra que
em quase todos os casos – 82% dos 161 projetos avaliados, medidas voluntárias
fracassaram.
Por
exemplo, quando a União Europeia buscou reduzir o número de pedestres e
ciclistas mortos por veículos, a instituição poderia ter simplesmente votado
uma lei instruindo os fabricantes de automóveis a mudar o design dos
para-choques e capôs, a um custo aproximado de€30 por carro. Ao invés disso,
confiou-se num acordo voluntário com a indústria. O resultado foi um nível de
proteção 75% menor do que uma lei teria induzido.
Quando
o governo do País de Gales introduziu uma cobrança de 5 centavos para sacolas
plásticas, o seu uso foi reduzido em 80% de um dia para outro. O governo inglês
afirmou que a autorregulação por parte dos varejistas apresentaria o mesmo
efeito. O resultado? Uma grande redução de… 6%. Depois de sete anos
desperdiçados, o governo sucumbiu à lógica óbvia e introduziu a cobrança.
Projetos
voluntários para coibir a publicidade de junk food para crianças na
Espanha, para reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa no Canadá,
para economia de água na California, para salvar albatrozes dos barcos de pesca
na Nova Zelândia, para a proteção de pacientes de cirurgias plásticas no Reino
Unido, para impedir o marketing agressivo de remédios psiquiátricos na Suécia:
apenas fracassos. O que o Estado poderia ter feito com uma simples canetada,
com baixo custo e de maneira eficiente é deixado de lado em prol de ações
desastradas das indústrias que, mesmo quando sinceras, são minadas por
aproveitadores e oportunistas.
Em
diversos casos, as empresas imploraram por novas leis que elevassem os padrões
na indústria. Por exemplo, aqueles que produzem embalagens plásticas para
silagem para fazendeiros tentaram fazer com que o governo do Reino Unido
elevasse a taxa de reciclagem. Empresas de jardinagem queriam regulamentações
para eliminar gradualmente o uso de turfa. Os governos recusaram. Teria sido o
resultado de ideologia cega ou escusos interesses próprios – ou ambos? Os
maiores doadores de partidos políticos tendem a ser os piores empresários,
usando seu dinheiro para manter as más práticas legais (vide o caso Enron).
Como
os partidos que eles financiam se curvam aos seus desejos, todos são forçados a
adotar seus baixos padrões. Suspeito que os governos, assim como qualquer um,
sabem que a legislação é mais eficiente e eficaz que a autorregulação e que por
isso mesmo não a empregue.
Imobilizar o eleitorado, liberar os
poderosos: essa é a fórmula perfeita para uma crise multidimensional. E nós
estamos colhendo seus frutos.
1N. T.: As reuniões do Clube de Bilderberg
acontecem anualmente com o objetivo de fomentar os diálogos entre EUA e Europa.
A conferência conta com a presença de líderes políticos, acadêmicos,
empresários discutindo informalmente tendências globais. A lista dos
participantes é divulgada, mas ninguém tem acesso ao conteúdo da conferência.
Ver mais em: http://ow.ly/V5rzK.
2 N. T.: Sociedade Real Britânica de
Proteção dos Pássaros