Dos
dez ditos “especialistas” que o subscrevem apenas quatro são médicos e nenhum
especializado em doenças crónicas. Um deles notabilizou-se em 2007 por negar a
reforma a um professor que tinha cancro na laringe e a outros casos
semelhantes. Condição de prognóstico de “dependência ou morte em 3 anos”, que o
bastonário da Ordem dos Médicos disse “não ser terminologia médica”, já
constava no relatório.
Finalmente,
um ano e quatro meses depois de ter sido enviado à tutela, o relatório da Comissão Especializada para reavaliar as
doenças suscetíveis de serem abrangidas pelo regime especial de proteção na
invalidez foi entregue ao Bloco de Esquerda pelo atual Ministério do Trabalho e
Segurança Social. Até agora, o conteúdo deste documento era desconhecido, bem
como os nomes dos “especialistas” que o subscreveram. Os pedidos do grupo
parlamentar do Bloco para conhecer o documento, foram sempre ignorados pelo
governo anterior.
Foi
este relatório que forneceu os argumentos ao governo PSD-CDS para justificar a
alteração da Lei 90/2009, que estabelece o regime especial de proteção na
invalidez, através de um decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros que
extinguia a lista de doenças suscetíveis de proteção especial e estabelecia
como condição de acesso ao regime especial que o requerente se encontrasse
incapacitado para o trabalho e fosse portador de uma doença que clinicamente se
previsse evoluir “para uma situação de dependência ou morte num período de três
anos”.
Promulgado
no último dia da vigência do governo Passos Coelho, o decreto-lei 246/2015, que
determinou estas alterações, provocou protestos generalizados por parte das
associações de doentes, de médicos e da respetiva Ordem, que denunciaram as
novas condições por serem inaplicáveis, além de mostrarem uma extraordinária
crueldade em relação a pessoas em sofrimento. “Nenhum médico vai dizer que é
previsível que um doente vai morrer num prazo de três anos”, afirmou o
presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira.
“Especialista”
em rejeitar pedidos de reforma
A
divulgação do relatório permite agora, em primeiro lugar, saber quem são os dez
signatários e qual a sua autoridade, conhecimentos e experiência para propor ao
governo alterações que implicam em consequências tão drásticas para pessoas
fragilizadas por doenças incapacitantes. Esperava-se que alguns deles pelo
menos fossem especialistas em doenças crónicas, mas não é isso que acontece. Há
apenas quatro médicos entre os dez, sendo os restantes juristas, diretores ou
funcionários da Caixa Geral de Aposentações, da Direção-Geral de Saúde, do
Instituto de Segurança Social, da Direção-Geral da Administração e do Emprego
Público e do Instituto Nacional para a Reabilitação. Um dos médicos é também da
CGA, onde ocupa o cargo de Médico-Chefe do Núcleo Médico daquela instituição.
Trata-se de M. M. Camilo Sequeira, que se notabilizou em 2007 por rejeitar os
recursos que lhe foram apresentados por pacientes que viram negado o seu pedido
de reforma por invalidez pelas Juntas Médicas.
Os
casos ganharam foros de escândalo nacional devido à gravidade da doença e à
insensibilidade das decisões. Camilo Sequeira disse não ter “qualquer dúvida”
em confirmar a negativa da Junta Médica de aposentar um professor de Filosofiaque tinha cancro na laringe e estava
afónico, afirmando que o docente, que morreria pouco depois, “não estava
totalmente incapacitado para trabalhar”. Outro caso tristemente célebre foi o
de uma funcionária pública de 57 anos que teve cancro nos intestinos e que
depois de uma cirurgia de urgência seguida de quimio e radioterapia viu rejeitado o seu pedido de aposentação. Diante do
recurso apresentado pelo médico oncologista, que alegava que a sua paciente
sofria de "síndrome de fadiga crónica" e "urgência fecal com
episódios de incontinência”, que lhe limitavam muito a autonomia e qualidade de
vida, Camilo Sequeira invocou a "interpretação jurídica da lei" para
fundamentar o parecer negativo: "cancro em remissão não é critério de
aposentação", afirmava no seu despacho de quatro linhas. Só naquele ano,
pelo menos onze casos igualmente escandalosos envolvendo a CGA foram tornados
públicos.
Os
outros médicos são Rizério Salgado, médico de família na Unidade de Saúde
Familiar São Julião de Oeiras e que foi vice-presidente da Associação
Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, e José Alexandre Diniz, médico generalista
que ocupou vários cargos de diretor de serviços e de departamento na
Direção-Geral de Saúde e Maria Conceição Gonçalves Barbosa.
SIDA
e doenças oncológicas desvalorizadas
Havia
alguma expectativa de que a fórmula de prognóstico de dependência ou morte em
três anos tivesse sido criada pelo governo e não estivesse no relatório. Afinal
de contas, como disse o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e
Familiar, Rui Nogueira, "o que está em causa é a invalidez, não é a
dependência ou morte", adiantando que uma pessoa pode não estar
dependente, mas estar inválida para o trabalho. Ora nenhum médico “vai dizer
que é previsível que um doente vai morrer no prazo de três anos". E o
bastonário da Ordem dos Médicos insistiu: “não é terminologia médica”.
Mas
a condição está mesmo no relatório, com uma redação muito semelhante à que
acabou por se tornar no artigo mais importante do decreto-lei do governo
PSDS-CDS.
O
relatório parte, desde o início, da premissa que “a discriminação positiva de
um conjunto de beneficiários” pelo facto de serem portadores de uma doença
invalidante “fere o princípio da equidade legalmente previsto”. E adianta dois
exemplos:
“O
HIV/SIDA à data da sua inclusão nas doenças com proteção especial era
rapidamente incapacitante e de mau prognóstico. A evolução dos cuidados médicos
rapidamente esvaziou essa carga permitindo que seja atualmente uma doença
crónica raramente incapacitante” pode-se ler no relatório, indiciando assim que
os autores do documento consideram que a SIDA não deveria receber proteção
especial. O mesmo para o cancro: “Também a doença oncológica, embora venha a
ser previsivelmente a primeira causa de morte, é hoje, num número crescente de
casos, uma doença crónica com períodos de remissão completa por muitíssimos anos”.
Sendo
assim, os signatários concluem que não faz sentido a existência de uma lista de
doenças objeto de proteção especial na invalidez”.
Sem
conhecer este relatório, e referindo-se apenas ao decreto-lei do governo
PSD-CDS, Carlos Oliveira, secretário-geral da Liga Portuguesa Contra o Cancro e
médico oncologista, disse que ele foi feito por quem “nunca esteve em contacto
com doentes de cancro desconhecendo, por isso a sua realidade”, já que “nos
doentes oncológicos, a avaliação não pode ser feita com limites temporais tão
estritos e com a obrigação de, a partir de uma incapacidade total, fazer uma
previsão de morte em tão curto espaço de tempo”. Para ele, o objetivo do
decreto era apenas “cortar nas pensões de invalidez”.
Lista
de doenças e "novo paradigma"
Refira-se
como curiosidade que a comissão chegou a elaborar uma lista alternativa de 21
grupos de doenças, para depois concluírem “não ser possível, com rigor e
fiabilidade, elaborar uma lista desta natureza”.
O
relatório propõe assim, em alternativa à lista, um novo paradigma, “a
observância de uma condição que engloba um conjunto de requisitos a reunir
cumulativamente, independentemente da doença de que se é portador”. A condição
proposta é: “situação de incapacidade permanente para o trabalho desempenhado,
verificada pela entidade competente em idade ativa, não compensável através de
produtos de apoio ou de adaptação ao/ou do posto de trabalho, decorrente de
doença de causa não profissional ou responsabilidade de terceiros, que
clinicamente se preveja evoluir para uma situação de dependência ou morte num
período de três anos”.
Em
nenhuma parte do relatório se justifica o porquê do prazo de três anos, e
porque não dois, ou quatro, nem como esse prognóstico pode ser feito por um
clínico sem ferir o próprio Código Deontológico da Ordem dos Médicos.
As
principais alterações do decreto-lei 246/2015 foram anuladas por uma apreciação parlamentar requerida pelo Bloco de
Esquerda, que aprovou o decreto da Assembleia da República 11/XII/1ª,
com os votos favoráveis do PS, Bloco, PCP, Verdes e PAN e a abstenção do PSD e
do CDS. Foi assim reposta a lista de doenças – que incluem a paramiloidose
familiar, a doença de Machado-Joseph, a SIDA, a esclerose múltipla, doenças de
foro oncológico, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), a doença de Parkinson
ou a doença de Alzheimer – e criada ainda a possibilidade de pacientes de
outras enfermidades acederem também ao regime especial. As novas alterações à
lei aguardam a promulgação pelo Presidente da República e a consequente
publicação no Diário da República.
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