segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Portugal. OS SALIVANTES



Rui Sá* – Jornal de Notícias, opinião

É conhecida a experiência do fisiologista russo Ivan Pavlov, que permite a definição do reflexo condicionado: mostrando a um cão um bocado de carne em simultâneo com o toque de uma campainha, constatou que, repetidas várias vezes a experiência, bastava o toque da campainha, sem se mostrar o pedaço de carne, para o cão começar a salivar, preparando o seu organismo para abocanhar a carne.

Tenho-me lembrado desta experiência quando leio ou ouço gente da Direita a escrever ou a falar sobre o momento económico e político do país. É que, presos à ideia de que a Terra está fixa, recusam-se a ver que ela de facto se move e salivam sempre que descortinam nos astros "indícios comprovantes" da sua teoria.

Assim, e se os juros da dívida pública aumentam, esfregam, salivantes, as mãos, dizendo, com indisfarçável satisfação: "nós não dizíamos?".

Se a carga fiscal (ou "austeridade") deixa de ser aplicada sobre os rendimentos do trabalho, logo a Direita saliva, dizendo, com contentamento, que, afinal, é sobre os impostos indiretos, o que "é ainda mais injusto".

Se o Senhor Schäuble, como se a Alemanha tivesse ganhado a Segunda Guerra Mundial, dispara mais umas ameaças/ingerências ao caminho que o povo português democraticamente escolheu, a Direita baba-se de tanto salivar, suspirando "até que enfim a Europa vai pôr estes tipos no seu sítio!".

Se o senhor presidente do Eurogrupo - aquele ministro holandês com nome tão impronunciável como o vulcão islandês que lançou, em 2010, o caos na aviação mundial - com o ar hipócrita de quem sabe que muita da riqueza produzida em Portugal paga (baixos) impostos no seu país por força de uma vergonhosa e antipatriótica opção fiscal de empresários portugueses, tece umas críticas sobre o rumo que Portugal, soberanamente, escolheu, a Direita saliva de satisfação, antevendo o desejado chumbo do Orçamento nacional em Bruxelas.

Se o colégio de Comissários Europeus produz, esquecendo os relatórios técnicos produzidos pela Comissão Europeia que reconhecem o erro das políticas impostas pela troika a Portugal, um relatório que, entre outras coisas, critica o aumento do salário mínimo em menos de 1euro/dia, a Direita saliva de regozijo, clamando "veem, nós temos razão!".

Mas tanta salivação não afoga a realidade. Afinal, os juros, depois de uma subida, baixaram para mínimos históricos - provando que as flutuações dos mercados financeiros têm razões que a razão desconhece... -, o Orçamento foi aprovado em Portugal e em Bruxelas e o novo salário mínimo aí está (tal como a reposição de feriados e a diminuição da sobretaxa de IRS, o aumento das deduções específicas por filho em sede de IRS, a diminuição do IVA na restauração).

O que demonstra que, apesar do caminho difícil e minado (externa e internamente), afinal, não havia apenas um caminho único como os agora salivantes nos venderam. O que, sendo penalizador para quem tanto o jurou, não justifica a defesa do "quanto pior melhor". Que a Direita deseja, independentemente das consequências para os portugueses na expectativa de que isso a leve ao poder que as eleições lhe tiraram.

* Engenheiro

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