quinta-feira, 17 de março de 2016

Angola. AS NOSSAS CRIANÇAS ESTÃO A MORRER



O Hospital Pediátrico David Bernardino é mais um que tenta prestar apoio a um número acima das suas capacidades. As consequências do caos em que se encontra o sistema de saúde nacional estão na morgue.

Eram três da tarde quando encontramos Jamila Dala com a sobrinha ao colo à porta da sala de urgências do Hospital Pediátrico David Bernardino (HDB), em Luanda. Aflita e pálida, o aspecto daquela criança de dois anos de idade chamava a atenção de quem por ali passasse. A bebé, diagnosticada com malária e à espera de uma doação de sangue, chegou ao hospital às 5h30 da manhã e ainda aguardava atendimento.

“Estou há uma semana no vai e vem e não me atendem. Mandaram-nos fazer análise de hemoglobina num outro local porque aqui não estavam a fazer. Trouxemos os resultados, agora a médica de serviço diz que exames feitos fora daqui não servem. A criança já está com uma hemoglobina abaixo de 6 [a media é em gramas por decilitro de sangue, e estes valores normalmente indicam um caso de anemia]. Não sabemos mais o que fazer”, lamentou a tia da criança.

Moradora do bairro Camama 1, Jamila teve que ficar no lugar da irmã mais velha, que se viu obrigada a regressar para casa devido ao cansaço pelas voltas dadas com a criança ao colo e por se encontrar grávida. Segundo a tia, a criança já havia sido diagnosticada com 20 parasitas por campo (a análise calcula a razão de parasitas por campo microscópico analisado; cada 0,25 ml leva à análise 100 campos), foi dada como curada mas continua a sofrer com a doença.

Luana André também aguardava pelas enfermeiras nas urgências. Devido à escassez de camas, acompanhava o seu filho que se encontrava há 6 horas deitado no chão frio daquela unidade e suplicava pela intervenção dos médicos, alegando que apenas lhe foi aplicado soro e o quadro parecia piorar, temendo que o pior acontecesse a qualquer instante.

Por seu lado, Mariana, moradora do São Paulo, chegou às primeiras horas do dia ao HDB vindo de outras clínicas com o seu filho ao colo ainda a arder em febre e igualmente a precisar de sangue. “Já passamos pela Hospital Geral dos Cajueiros e pelo Hospital Américo Boavida. Os bancos de sangue se encontram vazios. Aqui as enfermeiras passam, olham para ele e apenas pedem para aguardar. Já não sei o que fazer, estou a ver o meu filho a morrer nos meus braços”, lacrimejava Mariana.

O cenário nas urgências da maior unidade pediátrica do país é penoso. Durante a nossa visita, de cerca de três horas, o Rede Angola pôde observar quatro crianças a serem levadas para a morgue e o desespero das mães que aos prantos acusavam os enfermeiros de “falta de amor ao próximo”.

Nas camas do HDB constatamos a presença de até quatro doentes por cama, cada um com um diagnóstico diferente. Cadeiras a servirem de camas, escassez de recursos humanos, pacientes no chão, ar condicionado fora de manutenção, cheiro pouco agradável e ainda a queixa de falta de alimentos para acudir as crianças internadas.

Morgues lotadas

A directora clínica do HBD, Elisa Gomes, reconheceu a falta de capacidade para atender a demanda e aponta o problema dos deficientes hospitais localizados nas periferias da cidade de Luanda.

“Temos tido nos últimos dias uma afluência em massa de crianças. Sabemos bem o que se passa na rede periférica. Em média observamos 500 crianças por dia e internamos mais de 100. O que os utentes nos dizem é que já foram a vários hospitais e não encontraram médicos. Queríamos pedir às outras instituições, dos vários municípios, que ajudassem a drenar um bocadinho os doentes que nós temos, aqueles que podem ser seguidos nas instituições periféricas”, solicita  Elisa Gomes.

Segundo a directora clínica, os pacientes vêm de todos os pontos da cidade, inclusive de zonas onde existem hospitais municipais e o número de enfermeiros é muito limitado, pelo facto de já há alguns anos não haverem concursos públicos.

Por seu lado, Rodrigo João, chefe-adjunto da equipa do banco de urgência, confirma que das 8h (de segunda-feira) às 8h (de terça-feira) registaram-se 31 óbitos. Dos 530 pacientes observados foram internados 195 e 26 receberam altas.

O responsável afirmou ao Rede Angola que das altas atribuídas, muitas delas foram apressadas devido à necessidade de entrada de novos pacientes em estado mais graves.

“A situação é crítica. Após a alta fazemos o acompanhamento dos pacientes que vão para casa e caso o quadro piore voltamos a interná-los”, explica.

Por seu lado, os responsáveis da morgue do hospital pediátrico de Luanda lamentam o facto de já não haver espaço para acomodar o elevado número de crianças que estão a morrer de hora a hora no banco de urgência do HDB. A patologia mais frequente é a malária e a anemia severa.

População sensibiliza-se

Depois do apoio do ministro da Saúde com camas e materiais gastáveis, ontem, igualmente, o Hospital Pediátrico David Bernardino em Luanda recebeu a visita da Associação dos Jovens Angolanos Provenientes da Zâmbia (Ajapraz) que doou cerca de 20 mil seringas, soro fisiológico, luvas cirúrgicas, álcool, fármacos diversos, água oxigenada, materiais gastáveis e leite.

“Pensamos doar nas próximas 24h cerca de 3 toneladas de bens alimentares. Já contactamos os nossos parceiros em Portugal e deve estar a chegar muito material gastável no sábado, por avião”, afirmou Bento Raimundo, presidente da Ajapraz.

O responsável que comprometeu-se em apoiar mais algumas unidades hospitalares da periferia da cidade, de formas a mitigar a situação apelou ainda às pessoas de boa-fé, principalmente aos empresários a darem a sua contribuição.

Já o director administrativo do hospital pediátrico, Mário Correia Júnior, embora reconheça o esforço que a sociedade civil vem fazendo no apoio ao HDB, apela que o mesmo seja feito de maneira ordenada e não como tem estado a acontecer pelas redes socais de uma forma que sugere até uma certa anarquia.

“Muito do que é dito nem sequer é do nosso conhecimento, nem da nossa responsabilidade e seria bom que fosse em coordenação connosco”, apela Mário Correia Júnior.

Das necessidades mais gritantes no HDB, o responsável aponta para os materiais gastáveis dado a afluência de pacientes mas não descura da necessidade de recursos humanos para atender a massa populacional que ali se dirige à procura de atendimento.

O recém-nomeado ministro da Saúde, Luís Gomes Sambo, em seis dias de mandato já visitou por duas vezes aquela unidade hospitalar e orientou, entre outros, que se fizessem reforços do número de camas. O hospital recebeu, ontem, mais de 30 camas, material gastável e medicamentos.

“Sobre o número de pacientes por cama, de uma forma geral há um rácio entre doentes e o número de técnicos. São rácios internacionalmente aceites para uma prestação com o mínimo de qualidade, quando este rácio é superado no sentido de haver muito mais doente do que gente a atender além do tempo de espera enorme, a qualidade do atendimento também não pode ser das melhores”, explica o director administrativo do hospital pediátrico, Mário Correia Júnior.

Waldney Oliveira – Rede Angola – Foto: Ampe Rogério

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