Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Aguardamos
com tédio indisfarçável os próximos episódios do melodrama da eventual
aplicação de sanções a Portugal por violação, em 0,2%, do máximo prescrito pela
regra de ouro inscrita no pacto orçamental. No fundo, isto não passa de uma
querela religiosa entre o campeão da ortodoxia financeira germânica, Wolfgang
Schäuble, e os seus idólatras lusitanos que, como todos se recordam,
desempenharam com fervor a rábula do discípulo exemplar da única doutrina
verdadeira, quando soaram as trombetas da condenação e expulsão impiedosa dos
hereges gregos, relapsos e contumazes! Meio ano bastou para demonstrar que o
país não estava condenado aos caprichos dos mercados financeiros nem à tutela
paternal dos credores internacionais e dos seus diligentes burocratas. E que ao
Governo da República compete defender os interesses do povo que o legitimou.
Mas
diziam que não! Que não era possível. Primeiro, não havia alternativa ao pedido
de resgate perante a situação de bancarrota iminente a que o
"despesismo" dos governos socialistas irresponsavelmente conduzira o
país. Passos Coelho, Paulo Portas, toda a Oposição parlamentar e até o
Presidente da República, proclamavam, em 2011, que não era possível exigir mais
sacrifícios ao povo, nem sequer aquele acréscimo de austeridade que o Governo
socialista tinha conseguido negociar com Bruxelas, no quadro do famigerado
quarto "Pacto de Estabilidade e Crescimento". Depois, conseguiram que
a bancarrota se tornasse de facto iminente e que o Governo derrubado se visse
obrigado a subscrever, relutante, o ansiado pedido de resgate mais o memorando
de entendimento que Passos Coelho e Paulo Portas iriam adotar como fundamento
supremo e exclusivo da sua longa governação. É por demais conhecido o resto da
história mas é imperativo recordar as amargas lições que aprendemos ao longo
dos últimos quatro anos para não recair nos mesmos erros. Se em 2011, antes das
eleições de junho, achavam que a austeridade era excessiva, já em 2015, antes
das eleições de outubro, iriam proclamar o fim da austeridade! Para efeitos
restritos às conveniências da sua campanha eleitoral, o país regressava
temporariamente à esperança de que todos os sacrifícios sofridos, graças à
intervenção redentora de Passos e Portas, se tinha finalmente libertado do
fardo das políticas de austeridade.
Puro
engano! Tudo não passou de uma ilusão passageira. Uma vez concluído o
escrutínio da longa noite eleitoral de 5 de outubro e assegurada a vitória
ambígua que concedia o primeiro lugar à coligação governante mas lhe retirava a
maioria absoluta que antes lhe havia confiado o poder por uma legislatura
inteira, a coligação mascarada de Pàf retomou o seu rosto original e
propunha-se governar por mais uma legislatura, à sombra dos mesmos embustes e
artifícios que usara no mandato anterior. E até conseguiu formar governo. E
voltou a ameaçar os eleitores e os seus representantes eleitos com as penas do
inferno despesista que alegadamente conduzira o país à bancarrota. E contaram
com a cumplicidade do mesmo presidente que lhes permitira governar durante um
mandato inteiro. Mas o Parlamento soube interpretar a vontade dos eleitores e
não consentiu. O programa do segundo Governo do PSD/CDS foi chumbado, a
corajosa solução governativa apresentada pelo PS foi sufragada pela maioria dos
representantes eleitos e a alternativa de Esquerda - vencedora das eleições
legislativas de outubro - ficou habilitada a governar para cumprir as
esperanças sistematicamente atraiçoadas por uma Direita hipócrita, demagógica e
desacreditada.
A
economia global continua anémica, a conjuntura internacional é explosiva e a
Europa, depois da tentativa odiosa de expulsão da Grécia e do catastrófico
referendo britânico, continua sem vontade de responder aos desafios de que
depende a sua própria sobrevivência e a segurança dos seus vizinhos. No cenário
mais improvável, contudo, o Governo da Esquerda conseguiu provar que afinal
havia alternativa. Que é possível governar em sintonia com as aspirações
expressas pelo voto popular. Que a democracia continua a fazer sentido e
continua a ser o menos mau de todos os sistemas políticos inventados até hoje.
* Deputado e professor de direito constitucional
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