Eventual
decisão de sanções é ilegal - o ato sancionado não pode ser julgado em função
de atos posteriores, escreve ex-coordenador do BE e atual Conselheiro de Estado
Francisco
Louçã – Diário de Notícias, opinião
Confesso
que nem esperava que o tremor provocado pelo Brexit em Portugal fosse tão
profundo entre as elites, nem que a discussão sobre o futuro da União fosse tão
assustada. Afinal, o Reino Unido sempre foi visto como uma extravagância no
concerto europeu e a sua economia está protegida do euro, o que indiciaria uma
saída fácil e sem riscos de maior. Tudo poderia ser arrumado a contento, mas
não: a Comissão é um pandemónio e ninguém parece saber o que fazer agora. Ora,
lamento muito, mas o susto não tem que ver com as desventuras do reino de Sua
Majestade Isabel II, tem antes que ver com a percepção trágica e continental do
falhanço do "projecto europeu". Foi o espelho que atraiçoou os
palácios de Bruxelas e foi deste lado da Mancha.
A
UE como projecto falhado
Para
discutir algumas implicações deste falhanço, parto de três premissas
explícitas.
Primeira,
o "projecto europeu" ganhou uma forte hegemonia social porque
prometia tudo: paz e prosperidade com convergência. Enquanto na Europa se
acreditou na imitação do sucesso e na escada da mobilidade social, os pobres
adoraram a União e dispuseram-se a pagar qualquer preço pelo ingresso. Os seus
maiores entusiastas passaram a ser os que à esquerda pregam esta miragem de
melhorismo transcendental.
Segunda,
e aqui começa o problema, este projecto revelou-se outra coisa que nem é paz
nem pão e não melhora nada: constitucionalizou a liberdade dos capitais (e
portanto desemprego permanente) e instituiu um regime punitivo contra qualquer
desvio da lógica da acumulação alemã. Os evangelistas deste poder são
perigosos, pois nada fazem se não pedir-nos que ajoelhemos, esperando a
redenção do que sabem estar perdido.
Terceira,
a União é deste modo uma história de desigualdade e de divergência. A escada
social e a imitação do sucesso não funcionam. Pior, a União acentuou sempre a
divergência quando confrontada com cada crise. Sempre foi assim e nesta crise
não vai ser diferente. O risco da União não é o Reino Unido, é ela própria.
Por
isso mesmo, o debate sobre "isto" só se podia tornar mais agreste. De
um lado, não há um consistente Plano B para o Brexit, mesmo quando os sintomas
de novas crises de regime já se espalham pela Europa. Do outro lado, os
defensores do "projecto europeu" desesperam: só têm a oferecer uma
miragem que é desmentida cruelmente pelos factos, só têm a pedir paciência e
sofrimento para mais divergência. Por isso, os euroadoradores radicalizam-se:
Raposo escreveu no Expresso que o Brexit é uma "traição à Europa enquanto
espaço civilizacional". Quem lê jornais sabe que quando se chega a esta
enfatuação é porque não sobra muito mais.
Antes
de prosseguir, devo sublinhar que um dos argumentos mais lúcidos nesta polémica
foi o do deputado do CDS, Michel Seufert, que condenou os que querem fazer do
Reino Unido a besta odiosa: "Por outro lado, também não vale a pena ter
grandes ilusões: o mercado comum existe porque as regulamentações mantêm em
equilíbrio os, a meu ver maioritariamente ilegítimos, interesses de vários
intervenientes. O mesmo se diga para as regras da moeda única que quase por
definição existem para garantir que a coexistência numa zona monetária comum é
sequer possível. (...) Contra este tipo de UE vale a pena lutar. Resta saber se
dentro, se fora." Pois é, o "espaço civilizacional" tem que se
lhe diga.
Mas
o que é preciso é acreditar
Com
este lastro, toda a questão Brexit se coagulou em Portugal no debate sobre as
sanções (escrevo na véspera de se saber da decisão da Comissão), para incómodo
do argumento bruxelense. E foi mais um episódio de radicalização, não será o
último.
Quanto
às instituições, responderam até hoje unidas. O Presidente viajou, discursou e
pressionou, puxando por um consenso frágil. O Primeiro-ministro manteve a
atitude de recusar a punição do "bom aluno" que fez os recados da
troika e de recusar as ameaças que buscam condicionar a política nacional.
Do
lado da direita, a coisa está mais difícil. O PSD e o CDS respondem
defensivamente ao evidente incómodo de serem os responsáveis pelos actos
sancionáveis e, sobretudo, por ser o seu partido europeu a promover as sanções,
assestando baterias contra o governo. Se para isso a sua única munição for a
prosápia de Maria Luís Albuquerque, que ficou aprisionada no tempo a lastimar
não ser ministra, então não vai ser difícil a Costa capitalizar contra Passos
Coelho.
Porque
a pergunta, se houver sanções, será esta e vai ser Passos quem vai ter que
responder: o PSD continuará a fazer parte do PPE que domina a Comissão Europeia
e que agrava o défice português como punição pelo seu anterior governo?
Aceitará que os contribuintes tenham que pagar a factura da exibição política
de Schauble?
Sendo
a eventual decisão de sanções absolutamente ilegal - o acto sancionado, que é a
execução orçamental de 2013 a 2015, não pode ser julgado em função de actos
posteriores, como a decisão de um parlamento eleito depois - torna-se ainda
mais arbitrária se for o pretexto para condicionar o Orçamento em curso. Nesse
caso, a União evidenciaria o perigo de uma instituição sem regras, em que
qualquer discricionariedade é permitida. Esse é o reino do príncipe
maquiavélico, o poder manda e é tudo.
As
sanções e o referendo
Então,
o que fazer? No seu discurso no final da Convenção do Bloco, Catarina Martins
repetiu que não havia que reagir ao Brexit replicando esse referendo e que,
para o que conta, a maioria tem agora que resolver o problema do Orçamento, que
serão negociações difíceis. Acrescentou que uma única circunstância colocaria o
referendo na agenda imediata e essa seria a das sanções ilegítimas, ilegais e
abusivas. O assunto incendiou os comentadores e animou os seus adversários, que
não foram poucos.
A
direita multiplicou a sua indignação, um referendo nunca, seria indigno que os
eleitores se pronunciassem sobre assuntos tão elevados (em 2005 isso era
prometido por CDS e PSD, mas paciência). Francisco Assis, que usa o truque de
atacar Costa atacando Catarina, chama-lhe um "número de circo",
achando que distribuir uma bordoada é suficiente para estabelecer as suas
próprias credenciais europeias.
Mas
foi no PCP que se revelou uma distinção mais surpreendente. Jerónimo reagiu com
sobriedade, questionando a oportunidade e perguntando detalhes sobre o objecto.
É natural num partido que sempre viu com alguma reserva os referendos (por
temer derivas plebiscitárias, o que aplaudo), que sempre se evitou expor neste
domínio (contrariou o segundo referendo sobre o aborto, no que creio que não
teve razão) e que escolhe a sua tática com autonomia.
Mas,
contrariando Jerónimo, outros dirigentes escolheram o insulto: João Oliveira
("Isto é táctica para desviar a atenção dos disparates que fazem ou é
sintoma da doença infantil de que não se conseguem libertar?"), João
Ferreira ("O referendo é um instrumento demasiado sério para ser usado
para levar a água ao moinho de estreitas e oportunistas agendas mediáticas
(...) Lamento, mas quedai-vos sozinhos em tal pântano") e Ângelo Alves
("brincadeiras mediáticas, de um indisfarçável populismo e politicamente
desonestas"). Tudo elegante.
Ora,
este jogo tem dois problemas. Um é o insulto em si: se um dirigente quer falar
só para os seus militantes neste tom, pode eventualmente ter sucesso interno;
mas não está a falar para o povo. O segundo é que o PCP tem no seu programa
eleitoral europeu o compromisso com o "direito inalienável do povo
português de debater e se pronunciar de forma esclarecida, incluindo por
referendo, sobre o conteúdo e objectivos dos acordos e tratados, actuais e
futuros". Ao argumentar agora que o referendo de um Tratado actual é
inconstitucional, o PCP muda de opinião. Se tivesse hoje razão, então porque é
que o seu programa propunha um referendo inconstitucional? E, se tiver razão, o
que nos diz é que vai depender sempre de uma maioria parlamentar, ou seja do
PS, para combater as imposições europeias?
Deixemos
esse debate, porque o mais relevante até é outro tema: como é que Portugal vai
responder às sanções, se elas existirem? O que as críticas que citei aliás
revelaram é uma grande dificuldade em alinhar estratégias concretas no combate
às sanções. Não é uma boa notícia.
Quanto
ao referendo, cada demonstração política da Comissão vai-nos relembrar como ele
é incontornável. Pois ficará a questão: mesmo que as autoridades europeias
ainda tenham o discernimento de recuar nas sanções, amanhã e depois haverá
mais. E como é que Portugal vai escolher o seu futuro, no meio do euro que nos
amarra ao empobrecimento e de uma União que nos prende ao autoritarismo?
Um
referendo, que nos dizem impossível, será inevitável. A minha conclusão é para
a política que vem: a luta pela democracia para nos libertar das imposições vai
ser um factor chave na reconstituição da política nacional com a crise da União
Europeia.
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