terça-feira, 5 de julho de 2016

UE-PT. “SANÇÕES E REFERENDO: O IMPOSSÍVEL SERÁ INEVITÁVEL” - Louçã




Eventual decisão de sanções é ilegal - o ato sancionado não pode ser julgado em função de atos posteriores, escreve ex-coordenador do BE e atual Conselheiro de Estado

Francisco Louçã – Diário de Notícias, opinião

Confesso que nem esperava que o tremor provocado pelo Brexit em Portugal fosse tão profundo entre as elites, nem que a discussão sobre o futuro da União fosse tão assustada. Afinal, o Reino Unido sempre foi visto como uma extravagância no concerto europeu e a sua economia está protegida do euro, o que indiciaria uma saída fácil e sem riscos de maior. Tudo poderia ser arrumado a contento, mas não: a Comissão é um pandemónio e ninguém parece saber o que fazer agora. Ora, lamento muito, mas o susto não tem que ver com as desventuras do reino de Sua Majestade Isabel II, tem antes que ver com a percepção trágica e continental do falhanço do "projecto europeu". Foi o espelho que atraiçoou os palácios de Bruxelas e foi deste lado da Mancha.

A UE como projecto falhado

Para discutir algumas implicações deste falhanço, parto de três premissas explícitas.

Primeira, o "projecto europeu" ganhou uma forte hegemonia social porque prometia tudo: paz e prosperidade com convergência. Enquanto na Europa se acreditou na imitação do sucesso e na escada da mobilidade social, os pobres adoraram a União e dispuseram-se a pagar qualquer preço pelo ingresso. Os seus maiores entusiastas passaram a ser os que à esquerda pregam esta miragem de melhorismo transcendental.

Segunda, e aqui começa o problema, este projecto revelou-se outra coisa que nem é paz nem pão e não melhora nada: constitucionalizou a liberdade dos capitais (e portanto desemprego permanente) e instituiu um regime punitivo contra qualquer desvio da lógica da acumulação alemã. Os evangelistas deste poder são perigosos, pois nada fazem se não pedir-nos que ajoelhemos, esperando a redenção do que sabem estar perdido.

Terceira, a União é deste modo uma história de desigualdade e de divergência. A escada social e a imitação do sucesso não funcionam. Pior, a União acentuou sempre a divergência quando confrontada com cada crise. Sempre foi assim e nesta crise não vai ser diferente. O risco da União não é o Reino Unido, é ela própria.

Por isso mesmo, o debate sobre "isto" só se podia tornar mais agreste. De um lado, não há um consistente Plano B para o Brexit, mesmo quando os sintomas de novas crises de regime já se espalham pela Europa. Do outro lado, os defensores do "projecto europeu" desesperam: só têm a oferecer uma miragem que é desmentida cruelmente pelos factos, só têm a pedir paciência e sofrimento para mais divergência. Por isso, os euroadoradores radicalizam-se: Raposo escreveu no Expresso que o Brexit é uma "traição à Europa enquanto espaço civilizacional". Quem lê jornais sabe que quando se chega a esta enfatuação é porque não sobra muito mais.

Antes de prosseguir, devo sublinhar que um dos argumentos mais lúcidos nesta polémica foi o do deputado do CDS, Michel Seufert, que condenou os que querem fazer do Reino Unido a besta odiosa: "Por outro lado, também não vale a pena ter grandes ilusões: o mercado comum existe porque as regulamentações mantêm em equilíbrio os, a meu ver maioritariamente ilegítimos, interesses de vários intervenientes. O mesmo se diga para as regras da moeda única que quase por definição existem para garantir que a coexistência numa zona monetária comum é sequer possível. (...) Contra este tipo de UE vale a pena lutar. Resta saber se dentro, se fora." Pois é, o "espaço civilizacional" tem que se lhe diga.

Mas o que é preciso é acreditar

Com este lastro, toda a questão Brexit se coagulou em Portugal no debate sobre as sanções (escrevo na véspera de se saber da decisão da Comissão), para incómodo do argumento bruxelense. E foi mais um episódio de radicalização, não será o último.

Quanto às instituições, responderam até hoje unidas. O Presidente viajou, discursou e pressionou, puxando por um consenso frágil. O Primeiro-ministro manteve a atitude de recusar a punição do "bom aluno" que fez os recados da troika e de recusar as ameaças que buscam condicionar a política nacional.

Do lado da direita, a coisa está mais difícil. O PSD e o CDS respondem defensivamente ao evidente incómodo de serem os responsáveis pelos actos sancionáveis e, sobretudo, por ser o seu partido europeu a promover as sanções, assestando baterias contra o governo. Se para isso a sua única munição for a prosápia de Maria Luís Albuquerque, que ficou aprisionada no tempo a lastimar não ser ministra, então não vai ser difícil a Costa capitalizar contra Passos Coelho.

Porque a pergunta, se houver sanções, será esta e vai ser Passos quem vai ter que responder: o PSD continuará a fazer parte do PPE que domina a Comissão Europeia e que agrava o défice português como punição pelo seu anterior governo? Aceitará que os contribuintes tenham que pagar a factura da exibição política de Schauble?

Sendo a eventual decisão de sanções absolutamente ilegal - o acto sancionado, que é a execução orçamental de 2013 a 2015, não pode ser julgado em função de actos posteriores, como a decisão de um parlamento eleito depois - torna-se ainda mais arbitrária se for o pretexto para condicionar o Orçamento em curso. Nesse caso, a União evidenciaria o perigo de uma instituição sem regras, em que qualquer discricionariedade é permitida. Esse é o reino do príncipe maquiavélico, o poder manda e é tudo.

As sanções e o referendo

Então, o que fazer? No seu discurso no final da Convenção do Bloco, Catarina Martins repetiu que não havia que reagir ao Brexit replicando esse referendo e que, para o que conta, a maioria tem agora que resolver o problema do Orçamento, que serão negociações difíceis. Acrescentou que uma única circunstância colocaria o referendo na agenda imediata e essa seria a das sanções ilegítimas, ilegais e abusivas. O assunto incendiou os comentadores e animou os seus adversários, que não foram poucos.

A direita multiplicou a sua indignação, um referendo nunca, seria indigno que os eleitores se pronunciassem sobre assuntos tão elevados (em 2005 isso era prometido por CDS e PSD, mas paciência). Francisco Assis, que usa o truque de atacar Costa atacando Catarina, chama-lhe um "número de circo", achando que distribuir uma bordoada é suficiente para estabelecer as suas próprias credenciais europeias.

Mas foi no PCP que se revelou uma distinção mais surpreendente. Jerónimo reagiu com sobriedade, questionando a oportunidade e perguntando detalhes sobre o objecto. É natural num partido que sempre viu com alguma reserva os referendos (por temer derivas plebiscitárias, o que aplaudo), que sempre se evitou expor neste domínio (contrariou o segundo referendo sobre o aborto, no que creio que não teve razão) e que escolhe a sua tática com autonomia.

Mas, contrariando Jerónimo, outros dirigentes escolheram o insulto: João Oliveira ("Isto é táctica para desviar a atenção dos disparates que fazem ou é sintoma da doença infantil de que não se conseguem libertar?"), João Ferreira ("O referendo é um instrumento demasiado sério para ser usado para levar a água ao moinho de estreitas e oportunistas agendas mediáticas (...) Lamento, mas quedai-vos sozinhos em tal pântano") e Ângelo Alves ("brincadeiras mediáticas, de um indisfarçável populismo e politicamente desonestas"). Tudo elegante.

Ora, este jogo tem dois problemas. Um é o insulto em si: se um dirigente quer falar só para os seus militantes neste tom, pode eventualmente ter sucesso interno; mas não está a falar para o povo. O segundo é que o PCP tem no seu programa eleitoral europeu o compromisso com o "direito inalienável do povo português de debater e se pronunciar de forma esclarecida, incluindo por referendo, sobre o conteúdo e objectivos dos acordos e tratados, actuais e futuros". Ao argumentar agora que o referendo de um Tratado actual é inconstitucional, o PCP muda de opinião. Se tivesse hoje razão, então porque é que o seu programa propunha um referendo inconstitucional? E, se tiver razão, o que nos diz é que vai depender sempre de uma maioria parlamentar, ou seja do PS, para combater as imposições europeias?

Deixemos esse debate, porque o mais relevante até é outro tema: como é que Portugal vai responder às sanções, se elas existirem? O que as críticas que citei aliás revelaram é uma grande dificuldade em alinhar estratégias concretas no combate às sanções. Não é uma boa notícia.

Quanto ao referendo, cada demonstração política da Comissão vai-nos relembrar como ele é incontornável. Pois ficará a questão: mesmo que as autoridades europeias ainda tenham o discernimento de recuar nas sanções, amanhã e depois haverá mais. E como é que Portugal vai escolher o seu futuro, no meio do euro que nos amarra ao empobrecimento e de uma União que nos prende ao autoritarismo?

Um referendo, que nos dizem impossível, será inevitável. A minha conclusão é para a política que vem: a luta pela democracia para nos libertar das imposições vai ser um factor chave na reconstituição da política nacional com a crise da União Europeia.

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