“O
Minotauro Global”, expõe, com didatismo e profundidade, reviravoltas da
Economia global no pós-guerra. Na fase atual, mundo serve aos EUA e à
aristocracia financeira — mas ainda falta quem cumpra o papel de Teseu
Edemilson
Paraná* – Outras Palavras - Imagem: Daniel Carlos
Certa
vez, o economista e ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis definiu a
si mesmo como um “marxista errático”. Ainda que uma regra básica do bom senso
nos aconselhe a não aceitar sem exame crítico aquilo que alguém diz sobre si
mesmo, poucos qualificativos poderiam resumir melhor o conteúdo de seu livro
que acaba de ser publicado no Brasil. Do começo ao fim, O Minotauro
Global é, de fato, em todas as suas muitas riquezas e poucas lacunas, a
obra de um perspicaz e criativo “marxista errático”.
Em
sua abertura, franqueza e desapego a dogmas, a boa heterodoxia econômica de
Varoufakis mostra-se fecunda tanto na demonstração das graves deficiências das
teorias neoclássicas dominantes (aqui chamadas “teorias tóxicas”, em estreita
relação com o seu papel no surgimento dos “ativos tóxicos”) – que soberbamente
ousaram postular que uma crise global como a de 2008 não poderia acontecer –,
quanto na construção de uma sólida narrativa alternativa sobre as origens e
causas do atoleiro em que se encontra a economia mundial pós-crise.
Desse
modo, buscando explicações sistêmicas, e equacionando sofisticada leitura
macroeconômica às dinâmicas geopolíticas, o autor consegue traçar o caminho que
nos trouxe até a crise sem escorar sua análise, como se tornou corrente, em
algum anedotário moralizante sobre ganância e rentismo, sobre a ação de bons e
maus capitalistas, ou em qualquer outro discurso ad hoc sobre a
reprovação per se da ação do Estado nas economias.
Talvez
mais do que a especialistas e estudiosos, a obra se dirige a leigos
interessados no que acontece a sua volta. Outro mérito: sua análise econômica
não se furta a entrar no debate público. Sem com isso perder em profundidade, o
texto é desenvolvido em linguagem fluída, didática e bem-humorada, recorrendo a
potentes imagens da cultura pop e da mitologia grega para dissecar e
apresentar, em inúmeros e elucidativos exemplos, cada um dos argumentos que
mobiliza.
E
é justamente uma destas alegorias que dá título à obra: o Minotauro de Creta.
Metade homem, metade animal, o ser é produto da relação entre a mulher de
Minos, rei de Creta, e um touro (um castigo dos deuses a Minos por este não ter
atendido ordens divinas). De modo a conter a voracidade da besta, um labirinto
foi construído como sua morada e, no interior deste, sua inusitada dieta se
dava à base de seres humanos jovens. Para satisfazer sem maiores problemas o
monstro, o rei Minos força os atenienses, após vencê-los em uma guerra, a todos
os anos enviar sete rapazes e sete moças para serem devorados pelo Minotauro.
Conforme
nos lembra Varoufakis, historiadores tendem a relacionar o mito à real
hegemonia política e econômica de Creta na região do Mar Egeu – a quem
cidades-estados menos poderosas tinham de pagar tributos regulares em troca de
proteção e manutenção da paz. A imagem é mobilizada como analogia ao papel político-econômico
dos Estados Unidos da América (EUA) no mundo pós-revogação do regime de Bretton
Woods, a partir do início da década de 1970 – veremos por quê. O livro está
encadeado, assim, pela descrição dos antecedentes que dão surgimento à besta
ianque, passando pelo seu período áureo, até chegar a 2008, quando esta é
praticamente ferida de morte. Percorrendo este traçado, apresenta uma didática
e concisa história do capitalismo mundial, especialmente a partir do
pós-guerra, até o momento presente.
A
obra começa com uma breve e bastante pragmática discussão sobre os antecedentes
de formação do capitalismo mundial, bem como o desenho de seus mecanismos
gerais de funcionamento, explicados – raramente recorrendo a citações diretas –
a partir das formulações de Karl Marx, John Maynard Keynes e Joseph Schumpeter.
Em alguns momentos, e mesmo que não sejam citados diretamente, argumentos
presentes em Karl Polanyi, Suzzane de Brunhoff e Hyman Minsky aparecem –
articulação, aliás, que se mostra bastante produtiva.
Assentado
em tais bases, a história que Varoufakis desenha é composta por três eras.
Primeiro, da revolução industrial até 1945 – período que inclui a Crise (com
‘C’ maiúsculo) financeira mundial de 1929 e as duas grandes guerras. Em
seguida, o boom do pós-guerra, ou os “anos gloriosos” do capitalismo
mundial, período que vai de 1945 até 1971. A esse período ele dá o nome de
“Plano Global”, quando os EUA se tornam a maior economia superavitária a ocupar
o centro da ordem econômica internacional. Finalmente, aparece o “Minotauro
Global”, a era das altas finanças, de 1971 a 2008, quando os EUA se tornam uma
grande economia deficitária, mantendo, de forma renovada, sua mesma posição
central.
A
tese fundamental e fio condutor teórico-conceitual da análise de Varoufakis ao
longo deste percurso é a de que o capitalismo não pode funcionar de maneira
minimamente estável sem dispor de umMecanismo Geral de Reciclagem de Excedentes(MGRE).
Partindo da ideia de que as economias tendem a observar diferenciais de
produtividade inerentes às diferenças setoriais e regionais, o autor sustenta
que, diante deste fato, e a bem de uma composição comercial mais ou menos
equilibrada, faz-se necessário a construção de mecanismos que permitam investir
lucrativamente os excedentes acumulados nas regiões e setores superavitários em
suas contrapartes tendencialmente deficitárias (“das áreas urbanas para as
rurais, das mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas”, etc.).
No
interior de uma economia nacional, por exemplo, isso é feito por meio de
unidade fiscal, que possibilita a realização de transferências da União (em
bens, serviços, infraestrutura, isenções, incentivos, etc.) em prol dos Estados
e regiões menos vigorosas economicamente – algo que também pode ser feito por
meio de sistemas federalizados de seguridade e saúde, por exemplo.
Entre
as economias nacionais, distintamente, as diferentes taxas de câmbio, a
depender das condições, podem igualmente constituir um mecanismo natural de
reciclagem: uma vez que o acumulo de déficits tende a levar à desvalorização
cambial, esta pode acabar redundando em estímulo às exportações e desestimulo
às importações, além de contribuir para atrair outros capitais excedentes
graças às taxas de juros mais elevadas, bem como ao preço relativo mais baixo
de seus ativos. Assim, tanto o “Plano Global” quanto o “Minotauro” são, em
verdade, como veremos, arranjos sustentados em formas distintas de MGRE (o
primeiro tendo nos EUA um imenso polo superavitário, o segundo, seu inverso,
tendo neste um polo deficitário).
Tendo
vivido e aprendido com a catástrofe econômica de 1929, que só seria plenamente
resolvida, de acordo com o autor, graças à enorme destruição produzida pela
Segunda Guerra Mundial, os idealizadores estadunidenses do “Plano Global”
aproveitaram a enorme oportunidade com a qual se depararam ao fim do conflito
para desenhar uma nova ordem. O novo arranjo deveria, ao mesmo tempo em que
funcionasse de modo a impedir grandes desequilíbrios que pudessem levar a
eclosão de uma nova crise global, servir para cristalizar sua nova posição
hegemônica no interior do “mundo livre”.
Assim,
com base em muitas das prescrições keynesianas, a Conferência de Bretton Woods
deu nascimento a um sistema de governança econômica global que levou à criação
do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Internacional para
Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), e a constituição de um sistema de
administração cambial que fixava a percentuais determinados a flutuação das
taxas de câmbio dos demais países em relação ao dólar, e deste ao ouro – com a
consequente conversibilidade direta do dólar em ouro.
Algumas
das mais importantes (e ousadas) propostas de Keynes, no entanto, ficariam de
fora do novo arranjo, graças a não aceitação do novohegemon: a criação de uma
União Internacional de Divisas, um Banco Central Internacional e uma moeda
única a ser utilizada em transações comerciais entre nações (o bancor),
que objetivavam a constituição de uma governança econômica multilateral
equilibrada, durável, e politicamente compartilhada. A razão da recusa não era
nada ocasional: os EUA queriam gerir eles mesmos, e através de sua própria
moeda, a nova ordem econômica mundial.
O
sofisticado “Plano Global”, acreditavam seus idealizadores, parecia ter tudo
para dar certo. Assim, os EUA, a maior economia superavitária do planeta,
passaram, a bem da garantia de sustentabilidade do novo arranjo, a investir
seus enormes excedentes na reconstrução dos países arrasados pela guerra. Esse
investimento permitia ainda sustentar a demanda por seus produtos e a
lucratividade dos capitais invertidos. De modo a constituir zonas regionais
para o amortecimento de eventuais choques econômicos globais, os arrasados e
humilhados Alemanha e Japão foram escolhidos como “pupilos” – os novos hubs,
destinos preferenciais do mais generoso suporte político e econômico americano.
Enquanto eram incentivados a fortalecer suas zonas econômicas e moedas
regionais, estes dois países sustentavam a penetração e fortalecimento
acelerado do dólar como dinheiro mundial. Um MGRE, sustentado no “privilégio
exorbitante” do dólar, estava garantido e, com ele, a “idade de ouro” do
capitalismo regulado nos países do capitalismo central.
Contudo,
tal ordem de coisas só poderia permanecer inabalável sob uma condição: a de que
os EUA seguissem indefinidamente como uma economia superavitária. Mas seus
idealizadores não ousaram considerar a sério a hipótese de tal prospecto não
ser sustentável no médio prazo. Foi exatamente isso que ficou patente, no
entanto, a partir do início da década de 1970: os déficits americanos
crescentes passaram a atentar contra o próprio arranjo que o país havia ajudado
a conceber em seu favor.
Os
déficits estadunidenses apareceram, explica Varoufakis, na esteira da
rápida recuperação e dos ganhos de competitividade e produtividade dos outrora
“pupilos” do pós-guerra (Alemanha e Japão), com a consequente queda de
competitividade relativa dos EUA (junto da abertura de seu mercado para a
entrada de produtos de tais competidores, especialmente do Japão), somado,
ademais, aos crescentes gastos do governo, especialmente com guerras, como a do
Vietnã. A expansão monetária vinculada ao aumento de gastos do governo
americano redundou na desvalorização de sua moeda. Desse modo, vinculada à
exportação de dólares para outros países e à consequente valorização das moedas
nacionais destes, emergiram questionamentos sobre a real garantia de
convertibilidade ouro-dólar então vigente. O “Plano Global” estava com os dias
contados.
Diante
de novos e sonoros questionamentos a sua posição “privilegiada”, os Estados
Unidos responderam com ações enérgicas e medidas drásticas (que Paul Volcker,
presidente do Federal Reserve durante os governos Jimmy Carter e
Ronald Reagan, mais tarde denominou “uma desintegração planejada da economia
mundial”): o rompimento unilateral do acordo de Bretton Woods, com a quebra da
conversibilidade ouro/dólar, e consequente desvalorização da moeda americana. A
depreciação do dólar representou um duro golpe nas exportações japonesas e
europeias. Mas dado que todos estavam a esta altura já presos ao dólar como
moeda de reserva global, pouco restava a fazer. A posição privilegiada que os
americanos haviam construído estava garantida, e agora em bases renovadas. “A
moeda é nossa. O problema é de vocês”. Começava, sob o tacão deste choque, a
nova era do “Minotauro Global”.
Com
seu nascimento, os EUA mostraram ao mundo que, contanto que fossem capazes de
controlar a moeda mundial, que lhes permitiria continuar reciclando o excedente
econômico global, ao mesmo tempo em que se mantivesse como a maior e mais
importante força no comércio internacional, pouco importava ser uma economia
superavitária ou deficitária. O que o mundo viu acontecer na era pós-1971
foi, então, uma reversão do fluxo comercial e dos excedentes de capital entre
os Estados Unidos e os demais países. Pela primeira vez na história mundial, o
poder hegemônico se fortalecia aumentando deliberadamente seus déficits.
Donos
da moeda fiduciária mundial, os EUA tornam-se, sob um sistema monetário e
financeiro internacional hegemonizado pelo dólar flexível, o grande polo de um
novo MGRE às avessas: funcionando como uma espécie de “consumidor de primeira
instância”, o enorme corpo gravitacional dos déficits gêmeos (comercial
e orçamentário) americanos serviram como força de atração para o investimento
dos excedentes acumulados em outras regiões do globo. Resumidamente: enquanto
os seus persistentes saldos comerciais negativos suscitavam o avanço da
produção em outros países e regiões, os déficits orçamentários serviam para
transformar os excedentes comerciais destas em títulos da dívida americana. À
medida que o mundo acumulava tais títulos, o capital mundial fluía inadvertidamente
para o mercado financeiro estadunidense. Para se ter uma ideia da dimensão
deste movimento, no início dos anos 2000, pouco antes da crise, mais de 70% das
saídas globais de capitais tinham os EUA como destino final.
Tal
qual um mostro cretense redivivo, a voracidade do Tio Sam era alimentada por
oferendas estrangeiras. Com uma importante diferença: os “carismas do
Minotauro” (seu poder geopolítico e a manutenção do dólar como moeda de reserva
mundial), garantiam, distintamente ao mito, que os pagamentos ao “Minotauro
Global” fossem “voluntários”. Para que o movimento global de capitais se
configurasse e se comportasse exatamente sob esse padrão, duas tarefas foram
necessárias: de um lado uma recuperação da competitividade das empresas
americanas face, especialmente, às alemãs e japonesas, de outro a elevação da
taxa de juros paga aos títulos de sua dívida soberana.
Como
isso foi alcançado é história amplamente conhecida. À enorme redução dos custos
do trabalho nos EUA somou-se a crise do petróleo (estimulado pelo próprio
governo americano, segundo Varoufakis), que afetou de modo especial aos
dependentes Japão e Alemanha, que não dispunham de produção própria
significativa. Na outra ponta, as taxas de juros foram paulatinamente elevadas
ao longo da década, até alcançarem níveis recordes em 1979 – uma verdadeira
catástrofe para países endividados em dólar, como os latino-americanos e
europeus do leste. A metamorfose havia sido concluída.
Mas
ao conseguir emplacar mais este feito notável, o sucesso trágico de Washington,
ao mesmo tempo em que reforçou seu domínio, implantou as sementes de sua
própria desgraça: uma expansão financeira sem precedentes. Sob a direção dos
“serviçais do Minotauro” (as teorias tóxicas, Wall Street, o sistema Walmart e
as políticas da trickle-down economics), as décadas de financeirização
acelerada sob esse equilíbrio desequilibrado redundaram, por fim, na
hecatombe de 2008.
Enquanto
absorvia uma imensidão de capitais vindos de todas as partes, Wall Street,
livre de regulamentações, barreiras e constrangimentos políticos de outrora, se
encarregava de ativar uma verdadeira farra desvairada de criação de dinheiro
privado por meio de ativos tóxicos (dentre os quais estão as famigeradas
classes de derivativos bizarros que o mundo veio a conhecer). Fusões e
aquisições alavancadas por bolhas financeiras e a produção e circulação de
capital fictício em quantidade inimaginável encontram-se, especialmente ao
longo das últimas duas décadas, com a concessão de hipotecas e enorme expansão
de crédito pessoal para aqueles mesmos trabalhadores que não percebiam aumento
real em seus salários desde 1973. Ativado pela espantosa criação de dinheiro
privado, o consumo sustentado parecia indicar que tudo estava indo muito bem
obrigado.
Até
as vésperas da crise, Wall Street, e todos as suas gambiarras outrora
eufemisticamente conhecidas como “inovações financeiras”, atraiu capital
mundial suficiente para reciclar a contento os excedentes obtidos pelos demais
países e, inclusive, sustentar certa reconversão destes em mais investimentos
produtivos, e novas vendas para os EUA – o que ensejava novos superávits
daqueles países e, assim, a continuidade, em dimensão ampliada, da mesma
roda-viva. Enquanto isso, os desiquilíbrios no comercio internacional seguiam
se ampliando. Quando a música parou, o número de cadeiras era pequeno demais
para a quantidade de pessoas que circulavam em seu redor. O dinheiro privado
evaporou, e o sistema bancário quebrou. O resto é história (que nosso autor
descreve, aliás, em minucias).
Desde
então agonizante, gravemente ferido, o Minotauro, conforme aponta Varoufakis,
não é mais capaz dos feitos de outrora: sua demanda por bens e serviços já não
é mais a mesma, e tampouco Wall Street tem sido capaz, mesmo diante da astúcia
em manter-se no comando, de gerar a enorme quantidade de dinheiro privado que
outrora sustentou a escalada de consumo e investimento. Em consequência, com
Europa, Japão e China em marcha lenta, os exportadores de commodities e
produtos primários são juntos arrastados para o rosário de agonias do mundo
pós-2008, um mundo de desesperança e acelerada desagregação política e social.
E
assim nosso autor encerra sua teratologia da economia mundial. Seja
desestabilizado pela expansão do dinheiro estatal-público, seja pelo avanço
desgovernado do dinheiro privado-bancário, conclui o economista grego, MGREs
dessa forma geridos – sem dispor de mecanismos de coordenação global
multilateral análogos ao sugeridos por Keynes em Bretton Woods –
tendem a sustentar, como em um equilíbrio desequilibrado, fôlego curto.
*Edemilson
Paraná é pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), mestre e doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Autor do livro “A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução
informacional” (Ed. Insular, 2016).
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