Em
duas cidades com milênios de História, na Síria e Iraque, duas coalizões
distintas lutam contra o Estado Islâmico. Mas os Estados Unidos têm um Plano B
diferente…
Pepe
Escobar – Outras Palavras
Não
há dúvidas de que Bagdá precisa retomar Mosul, do ISIS. Não pôde fazer antes.
Em teoria, o momento é agora.
A
verdadeira questão são os motivos conflitantes do vasto “quem é quem” que está
fazendo a coisa: a 9ª Divisão do Exército do Iraque; a Peshmerga curda, sob a
batuta do esperto, oportunista e corrupto Masoud
Barzani; líderes tribais sunitas; dezenas de milhares de milicianos xiitas
do sul do Iraque; “apoio” operacional das Forças
Especiais dos EUA; a precisão “cirúrgica” do bombardeio pela Força Aérea
dos EUA. Espiando do fundo, a Força Aérea e as Forças Especiais da Turquia.
Convenhamos
que é receita perfeita para muita confusão.
Muito
semelhante a Aleppo, Mosul é – literalmente – material
de que se fazem as lendas. Cidade que sucedeu a ancestral Nínive, foi
fundada há 8 mil anos; ex-capital do Império Assírio no governo de Sennacherib no
século 7º AC; conquistada pelos babilônios no século 6º AC; mil anos depois,
anexada ao império muçulmano e governada pelos umaiadas e abassidas; núcleo, do
século 11 ao século 12, do estado medieval Atabegs; entreposto comercial chave
dos otomanos numa pós-Rota da Seda no século 16 que se estendia do Oceano
Índico até o Golfo Persa, o vale do Tigre, Aleppo e Trípoli no Mediterrâneo.
Depois
da 1ª Guerra Mundial, todos queriam Mosul – da Turquia à França. Mas foram os
britânicos que passaram a perna na França e conseguiram que Mosul fosse anexada
à então mais nova colônia do Império Britânico: o Iraque. Depois veio o longo
período de domínio pelo partido árabe nacionalista Ba’ath. E na sequência,
vieram a Operação Choque & Pavor e o inferno; a invasão e ocupação pelos
EUA; o tumultuado governo de maioria xiita de Nouri al-Maliki em Bagdá; e a
tomada pelo ISIS no verão de 2014.
Os
paralelos históricos de Mosul podiam não ter, mas têm um sabor especial. Aquele
estado medieval dos séculos 11-12, tinha praticamente as mesmas fronteiras que
o falso “Califato” do Daech – engolfando ambas: Aleppo e Mosul. Em 2004, Mosul
foi governada de facto pelo fracassado e desgraçado general David
Petraeus. Dez anos depois da falsa “ofensiva” de Petraeus, Mosul já era
governada por um falso califato nascido dentro de uma prisão norte-americana
perto da fronteira com o Kuwait.
Desde
então, centenas de milhares de residentes fugiram de Mosul. A população está
reduzida praticamente à metade dos 2 milhões de habitantes originais. É gente
demais para ser, propriamente dito, “libertada”.
A
“queda” de Aleppo
A
narrativa hegemônica sobre a Batalha de Aleppo (Leste) reza que um “eixo do mal” (expressão criada por Hillary Clinton)
formado de Rússia, Irã e “o regime sírio” estaria bombardeando incansavelmente
inocentes civis e “rebeldes moderados”, ao mesmo tempo em que estaria causando
horrenda crise humanitária.
Na
verdade, a maioria absoluta dessa força de vários milhares de “rebeldes
moderados” está realmente incorporada na e/ou associada à Jabhat Fatah al-Sham
(Frente da Conquista da Síria), que nada é além da Jabhat al-Nusra, também
conhecida como al-Qaeda na Síria, acrescentada de alguns outros grupos
jihadistas, como Ahrar al-Sham (os objetivos da Frente Al-Nusra – e dos que a
apoiam – estão completamente expostos e documentados aqui).
Enquanto
isso, alguns civis permanecem sem poder sair de Aleppo Leste – não mais de 30
ou 40 mil, de uma população inicial de 300 mil.
E
isso nos leva ao xis da questão que explica (i) a ação de sabotagem, pelo
Pentágono, do cessar-fogo Rússia-EUA; (ii) os chiliques de fúria da embaixadora
dos EUA na ONU, Samantha Power; e (iii) a ininterrupta conversa “repercutida”
sem parar, de que a Rússia estaria cometendo “crimes de guerra”.
Se
Damasco controlar, além da capital, Aleppo, Homs, Hama e Latakia, controlará a
Síria que interessa; 70% da população e todos os centros industriais/comerciais
importantes. O jogo estará praticamente decidido. O resto é fundo do fundo,
rural, quase deserto.
Para
a linha de política exterior padrão galinha-degolada-correndo-pelo-pátio
atualmente adotada pelo governo pato manco de Obama, o cessar-fogo foi meio
para ganhar tempo
e rearmar os grupos que Washington chama de “rebeldes moderados”. Pois mesmo
esse nada foi demais para o Pentágono, que enfrenta uma aliança determinada,
constituída de Síria/Irã/Rússia, contra todas as declinações de jihadistas
salafistas dementes — só a terminologia varia — e que luta para manter indiviso
o território e o estado da Síria.
Por
isso, reconquistar toda a cidade de Aleppo tem de ser prioridade para Damasco,
Teerã e Moscou. O Exército Árabe Sírio (EAS) jamais terá soldados em número
suficiente para reconquistar o fundão rural, sunita ultra hardcore.
Damasco pode também jamais recuperar o nordeste curdo, o embrião de Rojava;
afinal o YPG é diretamente apoiado pelo Pentágono. Se algum dia algum Rojava
independente verá a luz do dia, é questão ainda por decidir.
O
Exército Árabe Sírio, mais uma vez, está terrivelmente superdistendido. Por
isso, a luta para reconquistar Aleppo Leste é, sim, luta duríssima. Há uma
crise humanitária. Há danos colaterais. E isso é só o começo. Porque mais cedo
ou mais tarde o exército, com apoio do Hezbollah e de milícias xiitas
iraquianas, terá de reconquistar Aleppo Leste também com coturnos em
solo – apoiados pelos jatos russos.
O
xis da questão é que o ex “Exército Sírio Livre”, já absorvido pela al-Qaeda na
Síria e outros jihadistas salafistas, está a ponto de ser varrido de Aleppo
Leste. Mudança de regime e/ou “Assad tem de sair” – a via militar – já é hoje
impossível em Damasco. Daí o mega desespero que têm mostrado o secretário de
Defesa dos EUA, Ash Carter; as células neoconservadoras plantadas por toda a
extensão da equipe Pata Manca de Obama; e suas hordas de vassalos “midiáticos”.
Entra
em cena o Plano B: a Batalha de Mosul.
Fallujah remixed?
O
plano do Pentágono é enganadoramente simples: apagar todos os traços de Damasco
e do Exército Árabe Sírio a leste de Palmira. E é aí que a Batalha de Mosul
converge com o recente ataque pelo Pentágono contra Deir Ezzor. Ainda que se tenha
uma ofensiva nos próximos poucos meses contra Raqqa – pelos curdos do YPG ou,
mesmo, por forças turcas – ainda há um “principado salafista” do leste da Síria
ao Iraque ocidental todo mapeado, exatamente como a Agência de Inteligência da
Defesa planejava (sonhava?) em 2012.
Nizar
Nayouf, historiador sírio que vive em Londres, e fontes
diplomáticas não identificadas confirmaram que Washington e Riad
fecharam acordo para
deixar milhares de jihadistas do falso Califato escaparem do oeste de Mosul,
desde que entrem diretamente na Síria. Se se examina o mapa dos combates [1] vê-se que Mosul está cercada por
todos os lados, exceto pelo lado oeste.
Mas
e o presidente da Turquia, “sultão” Recipp Erdogan, nisso tudo? Anda dizendo
que Forças Especiais turcas
entrarão em Mosul como entraram em Jarablus na fronteira turco-síria: sem
disparar um tiro, quando a cidade estiver limpa de jihadistas.
Entrementes,
Ancara está preparando sua entrada espetacular no campo de batalha, com Erdogan
em todo seu esplendor sultânico atirando às cegas. Para ele, “Bagdá” não passa
de “um administrador de um exército feito só de xiitas”; e os curdos do YPG
“serão removidos da cidade síria de Manbij” depois da operação Mosul. Para nem
dizer que Ancara e Washington estão discutindo ativamente a ofensiva contra
Raqqa, dado que Erdogan ainda não abandonou seu sonho de uma “zona segura” de
5.000 km no norte da Síria.
Em
resumo, Mosul não passa de show de intervalo, para Erdogan. As prioridades dele
ainda são uma Síria fragmentada, “zona segura” incluída; e esmagar os curdos do
YPG (ao mesmo tempo em que trabalha lado a lado com o movimento Peshmerga no
Iraque).
No
que tenha a ver com o Plano B dos EUA, xeque Hassin Nasrallah, líder do
Hezbollah leu
com perfeita clareza nas entrelinhas de todo o esquema: “Os
norte-americanos planejam repetir o enredo de Fallujah, quando abriram uma
trilha para que o ISIS escapasse na direção do leste da Síria, antes de os
aviões iraquianos atacarem o comboio dos terroristas.” Acrescentou que “o
exército iraquiano e as forças populares” têm de derrotar o ISIS em Mosul; se
não, terão de caçá-los por todo o leste da Síria.
Também
não surpreende que o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov,
também tenha visto com toda a clareza Grande Quadro: “Tanto quanto
sei, a cidade não está completamente cercada. Espero que assim seja porque não
conseguiram fechar o cerco, não porque não tenham querido fechá-lo. Mas esse
corredor gera o risco de os combatentes do Estado Islâmico escaparem de Mosul
por ali, e entrarem na Síria.”
É
claro que, se acontecer desse modo, Moscou não se ficará de lado, só olhando:
“Espero que a coalizão liderada pelos EUA, que está ativamente engajada na
operação para tomar Mosul leve em consideração isso tudo.”
Claro
que Mosul – ainda mais que Aleppo – impõe grave questão humanitária.
O
Comitê Internacional da Cruz Vermelha estima que um milhão de pessoas possam
ser afetadas. Lavrov vai diretamente ao que importa, quando insiste que “nem o
Iraque, nem seus vizinhos têm atualmente capacidade para acomodar tal
quantidade de refugiados, e isso tem de ser considerado no planejamento da
Operação Mosul.”
Talvez
não tenha sido. Afinal, para a coalizão “liderada pelos EUA” (pela
retaguarda?), a prioridade número um é garantir que o falso Califato sobreviva
em algum lugar no leste da Síria. Mais de quinzer anos depois do 11 de
Setembro, a cantilena não muda, e a “guerra ao terô” (como Bush pronunciava as
palavras) continua a chover, como perene maná.
[1] Excelentes mapas em “Nasrallah: Discurso na 10ª
noite de Ashura” (legendas em fr., traduzidas em O Empastelador) [NTs].
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