quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

HISTÓRIA DE DOIS IRMÃOS E UM IMPÉRIO





Abdulrahman sucumbiu aos 16 no Yemen, numa das milhares de operações de assassinato autorizadas por Obama. Agora, Trump decretou a morte de Nawar, sua irmã de 8 anos

Glenn Greenwald - Outras Palavras Tradução: Inês Castilho

Em 2010, o presidente Obama orientou a CIA a assassinar um cidadão norte-americano no Yemen, Anwar al-Awlaki, a despeito do fato de ele nunca ter sido acusado (muito menos condenado) de nenhum crime. A CIA levou adiante essa ordem um ano depois, com um ataque de drone bem sucedido em setembro de 2011. O assassinato suscitou um amplo debate. A União Americana para as Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), agora novamente celebrada — processou Obama para impedi-lo  de cometer assassinatos com base no direito a um “processo devido”. Como  seu processo foi rejeitado, acionou Obama novamente depois do assassinato ser cometido. Mas um outro ataque de drone realizado depois disso talvez tenha sido mais significativo, embora despertando relativamente menos atenção.

Duas semanas depois do assassinato de Awalki, um outro ataque de drone da CIA sobre o Yemen matou seu filho de 16 anos nascido nos EUA, Abdulrahman, juntamente com um primo de 17 anos e vários outros yemenitas inocentes. A certa altura os EUA alegaram que o rapaz não era um alvo, mas apenas um “dano colateral”. O avô de Abdulrahman, Nasser al-Awlaki, devastadado pelo luto, instou o Washington Post “a visitar a página do memorial de Abdulrahman no Facebook”, dizendo: “Olhe para essas fotos, seus amigos e seus hobbies. Sua página do Facebook mostra um adolescente típico.”

Poucos acontecimentos desmarcararam, como este, a equipe do então presidente. O fato evidenciou como o governo Obama estava devastando o Yemen, um dos países mais pobres do mundo. Poucas semanas depois de ganhar o Prêmio Nobel, Obama usou bombas de fragmentação que mataram 35 mulheres e crianças yemenitas. Até mesmo os humoristas liberais que apoiavam Obama zombavam dos argumentos dos seus assessores, sobre por que ele supostamente teria o direito de executar norte-americanos sem acusação: “Processo devido significa apenas que há um processo que você faz”, comentou sarcasticamente Stephen Colbert. Uma tempestade armou-se quando o ex-secretário de imprensa de Obama, Robert Gibbs, deu uma justificativa sociopata para o assassinato do adolescente nascido no Colorado, aparentemente culpando-o por sua própria morte ao dizer que ele deveria ter “tido um pai mais responsável”.

Abdulrahman Awlaki, morto por ordem de Obama,
 em 2011
O assalto dos EUA aos civis do Yemen prosseguiu e ampliou-se radicalmente nos cinco anos seguintes, até o fim da presidência de Obama. Washington e Londres, armaram, apoiaram e ofereceram apoio crucial a sua aliada íntima, a Arábia Saudita, à medida em que esta devastava o Yemen através de uma campanha de bombaredeios inclementes. Agora o Yemen enfrenta fome em massa, aparentemente exacerbada, deliberadamente, pelos ataques aéreos apoiados pelos EUA e Inglaterra. A responsabilidade evidente do ocidente por essas atrocidades fez com que elas recebecem tímida atencial nos países que as praticavam.

Num odioso símbolo da continuidade bipartidária da barbárie dos EUA, Nasser al-Awlaki acaba de perder outro de seus jovens netos para a violência dos EUA. Domingo, a Equipe 6 das forças especiais da Marinha, usando drones armados Reaper (Anjos da Morte) como cobertura, promoveu um ataque ao que diziam ser uma fortificação usada por oficiais da Al Qaeda na Península Arábica. Uma declaração feita pelo presidente Trump lamentou a morte de um membro do serviço americano e vários outros que foram feridos — mas não fez menção a nenhuma morte de civis. Oficiais militares dos EUA inicialmente negaram qualquer morte de civis e (consequentemente) a reportagem da CNN sobre o ataque nada disse sobre isso.

Mas relatos vindos do Yemen rapidamente trouxeram à tona que 30 pessoas foram mortas, incluindo 10 mulheres e crianças. Entre os mortos: Nawar, a neta de 8 anos de Nasser al-Awlaki, filha de Anwar Awlaki.

Nawar Awlaki, morta por ordem de Trump
Como observou meu colega Jeremy Scahill – que entrevistou longamente os avós no Yemen para seu livro e filme nas “Guerras Sujas” de Obama – a menina foi “atingida no pescoço”, sangrando até a morte durante duas horas. “Por que matar crianças?”, perguntou o avô. “Essa é o novo governo (dos EUA) – é muito triste, um grande crime.”

O New York Times reportou ontem que oficiais militares estiveram planejando e debatendo o ataque durante meses, durante o governo Obama — mas decidiram deixar a escolha para Trump. O novo presidente autorizou pessoalmente o ataque semana passada. Alegou-se que o “alvo principal” do ataque “eram arquivos de computador existentes dentro da casa, que poderiam ter pistas sobre futuras tramas terroristas.” O jornal citou um oficial do Yemen dizendo que “ao menos oito mulheres e sete crianças, de idade entre 2 e 13, foram mortas no ataque”, que também “danificou severamente uma escola, um centro de saúde e uma mesquita”.

Como mostrou em detalhes meu colega Matthew Cole, poucas semanas atrás, a Equipe 6 das forças especiais da Marinha, com toda a sua glória pública, tem uma longa história de “vinganças, mortes injustificadas, mutilações e outras atrocidades”. E Trump jurou publicamente durante a campanha transformar em alvo não apenas terroristas mas também suas famílias. Tudo isso exige inquéritos corajosos e independentes sobre esta operação.

O mais trágico de tudo é que – assim como acontecia no Iraque – a Al Qaeda tinha muito pouca presença no Yemen antes do governo Obama começar a bombardear o país e atacá-lo com drones, matando civis e empurrando as pessoas para os braços do grupo militante. Como disse o jovem escritor yemenita Ibrahim Mothana ao Congresso em 2013:

Os ataques de drones estão causando nos yemenitas cada vez mais ódio pelos americanos e levando-os a aderir aos militantes radicais… Infelizmente, vozes liberais nos Estados Unidos estão ignorando amplamente, ou perdoando, as mortes de civis e assassinatos extrajudiciais no Yemen.

Durante a presidência de George W. Bush, a ira teria sido tremenda. Mas hoje há pouco clamor, ainda que o que esteja acontecendo seja, em vários aspectos, uma continuidade ampliada das políticas de Bush…

Os defensores de direitos humanos precisam pronunciar-se. A política de contraterrorismo dos EUA no Yemen está não apenas tornando o país menos seguro — ao fortalecer o apoio para a A.Q.A.P. [Al-Qaeda na Península Arábica] — mas poderia, em última instância, colocar em perigo os Estados Unidos e o mundo inteiro.

Essa é a razão por que é crucial – no momento em que  surgem protestos urgentes e necessários  contra os abusos de Trump – não permitir que a história recente dos EUA seja esquecida. A selvageria de longa data praticada pelo país não pode ser vista de modo simplório, como aberração trumpiana — nem se deve esquecer a estrutura da Guerra ao Terror, que engendra esses novos assaltos. Alguns dos abusos atuais são obra específica de Trump, mas – como descrevi domingo — boa parte delas é produto de décadas de uma mentalidade e de um sistema de guerra e de poderes executivos que todos precisamos enfrentar.

Esconder esses fatos, ou permitir que os responsáveis por eles posem de opositores a tudo isso, não é apenas enganador, mas também contraprodutivo. Muito do que se faz agora vem em odiosa continuidade e não apareceu do nada.

É verdadeiramente estimulante ver a raiva gerada pelo banimento, por Trump, de refugiados, e de pessoas que têm visto, vindas de países como o Yemen. Mas também dá muita raiva que os EUA continuem a massacrar civis yemenitas, tanto diretamente quanto por meio de seus parceiros sauditas. Não é apenas Trump que precisa de oposição veemente — mas uma mentalidade e um sistema.

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