A
empresária angolana Isabel dos Santos, multimilionária que – segundo diz –
começou nessa vida (a de empresária) a vender ovos nas ruas de Luanda, deu uma
entrevista à BBC em que afirmou que ser filha do presidente de Angola, nunca
nominalmente eleito e no poder há 38 anos, José Eduardo dos Santos, traz
vantagens mas também “muito preconceito”. Estamos quase a chorar…
Norberto
Hossi*
“Não
há dúvida que há muito preconceito sobre isso, tenho um percurso inesperado”,
disse a presidente da Sonangol (cargo para a qual foi nomeada pelo seu pai e
perante os protestos de todos quantos não se renderam ao regime) numa
entrevista com o jornalista Paul Bakibinga.
“Sou
privilegiada no sentido em que tive uma boa educação, no sentido em que pude
ver o mundo, sou uma pessoa muito exposta, eu pude interagir com pessoas de
todos os espectros da vida. E penso que é tudo”, disse a empresária.
Nessa
interacção “com pessoas de todos os espectros da vida” estarão incluídos os 20
milhões de angolanos que (sobre)vivem na miséria? Estarão incluídas as crianças
que não chegaram a ser adultos porque apenas constam da lista que coloca Angola
na primeira posição do ranking mundial da mortalidade infantil?
“Juntando
isso com o preconceito e a sensação de que essas vantagens foram de alguma
forma injustas ou obtidas através de favor e de favoritismo, acho que isso é
preconceito”, explicou Isabel dos Santos numa tentativa, mais uma, de nos
passar um atestado de menoridade intelectual de matumbez hereditária.
Isabel
dos Santos é filha mais velha do presidente angolano e, desde Junho a
presidente da petrolífera do regime por nomeação do pai, igualmente presidente
do MPLA e Titular do Poder Executivo. A empresária é a mulher mais rica de
África e a sua fortuna, avaliada em 3,1 mil milhões de dólares pela edição de
Março da Forbes, é a nona maior do continente. Tudo normal num país que,
certamente só por acaso, também está no top dos países mais corruptos do mundo.
A
nomeação de Isabel dos Santos gerou várias críticas no país e o Tribunal
Supremo de Angola (órgão submisso e subserviente, por questões de
sobrevivência, a sua majestade o rei) recebeu uma acção por parte de advogados
angolanos – certamente matumbos e pertencentes a uma organização de malfeitores
– sobre o caso. A justiça do regime (já que Angola não é um Estado de Direito
com separação dos poderes) declarou a nomeação legal.
A
empresária contou que enfrenta ainda mais desafios por ser uma mulher, pela
idade que tem e por ser africana. “Mas não é um problema angolano nem africano.
Os problemas de género são globais e são comuns em todo o mundo”, continuou
Isabelinha dos Santos, esquecendo-se de dizer que nenhum desses problemas é
válido em Angola desde que se tenha origem no clã Eduardo dos Santos.
A
empresária defendeu ainda que as raparigas devem ser ambiciosas e confiantes e
lutar para cumprirem os seus objectivos. Tem razão. Devem, aliás, começar por
se filiar no MPLA (por alguma razão o partido está no poder há 41 anos),
licenciar-se em servilismo e doutorar-se em bajulação. Se a isso conseguirem
juntar comprovativo médico de ausência de coluna vertebral e capacidade para
pensar pela cabeça dos donos do país, então o futuro estará garantido.
Isabel
dos Santos foi eleita uma das 100 mulheres de topo no mundo pela BBC em 2015 e
foi comparada no mês passado a Ivanka Trump num artigo da mesma estação de
televisão.
Permitam-nos
reconhecer que esta entrevista nos deixou tristes. E neste sentimento somos
acompanhados por milhões de outros angolanos, nomeadamente pelos 20 milhões de
pobres que habitam no mesmo país de Isabel dos Santos.
Embora
dizer o que pensamos seja, quando não é o mesmo que o regime do paizinho de
Isabel dos Santos pensa (raramente isso acontece, assumimos), um crime contra a
segurança do Estado e prova de tentativa de golpe de Estado, não é mau manter a
memória alimentada pela verdade, mesmo que seja à base de mandioca e não de
lagosta.
Continuemos.
E então como é que Isabel dos Santos se tornou – não sabemos quantas vezes –
milionária? Desde logo porque – graças ao pai ser o dono do reino esclavagista
(20 milhões de pobres, repita-se) – ficava, fica e ficará com uma parte das
empresas que se estabelecem em Angola. Quando assim não é, o seu pai trata de
mandar fazer leis, decretos e regulamentos que permitam a Isabel facturar sobre
tudo o que entenda. Simples, não é?
Pena
é que, como Isabel diz, nem todos percebam a normalidade do processo e a
caluniem dizendo que ela é o que é graças ao paizinho. É por isso que ela se vê
obrigada, em legítima defesa, a desmentir tudo, assumindo-se como uma santa e
acusando todos os que divulgam estas “mentiras” e que, como é bom de ver, são
pagos para andar pelo mundo a denegrir a impoluta e divina imagem e labuta de
figuras honoráveis como ela e, é claro, como o seu pai e restante clã familiar.
Certo
é que Isabel dos Santos é milionária e que no seu(?) país cerca de 70% dos
habitantes vivem com menos de 2 dólares por dia. A Forbes escreveu até que “é
uma rara janela para a mesma trágica narrativa cleptocrática em que ficam
presos muitos outros países ricos em recursos naturais”.
Citemos
a Forbes sobre o santo pai da santa Isabel: “É uma forma de extrair dinheiro do
seu país, enquanto se mantém à distância, de maneira formal. Se for derrubado,
pode reclamar os seus bens, através da sua filha. Se morrer enquanto está no
poder, ela mantém o saque na família.”
Não
se sabe com rigor em que negócios Isabel dos Santos está, de facto, metida.
Mesmo assim, tem posição preponderante e decisiva na Endiama, a empresa
concessionária da exploração mineira (criada por decreto… presidencial, que
exigia a formação de um consórcio com parceiros privados).
Os
parceiros privados da filha do Presidente, que incluíam negociantes israelitas
de diamantes, criaram a Ascorp, registada em Gibraltar. Na sombra, diz a
Forbes, citando documentos judiciais britânicos, tinha o negociante de armas
russo Arkadi Gaidamak, um antigo conselheiro do Presidente angolano durante a
guerra civil de 1992 a 2002. Tudo bons rapazes, igualmente impolutos e
honoráveis cidadãos.
O
escrutínio internacional dedicado aos ‘diamantes de sangue’, explica a revista,
aconteceu no mesmo período em que Isabel dos Santos transferiu a sua parte do
negócio, que a Forbes classifica como “um poço de dinheiro”, para a mãe, uma
cidadã britânica. Tudo continua em família. Antes do Povo está o clã Eduardo
dos Santos. Obviamente.
Do
ponto de vista mediático, mesmo no âmbito da Educação Patriótica que o regime
pretende dar a todos os angolanos desde a barriga da mãe até à morte, Isabel
dos Santos é a heroína do reino. Prova disso é dada pelo Pravda do regime
(também conhecido por Jornal de Angola) que escreveu: “Estamos maravilhados por
a empresária Isabel dos Santos se ter tornado uma referência do mundo das
finanças. Isto é bom para Angola e enche os angolanos de orgulho.” Referia-se
aos angolanos afectos ao regime, os outros – os que foram gerados com fome,
nasceram com fome e estão no corredor da morte cheios de… fome – sentem-se
envergonhados.
*Folha 8
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