Há
exatamente um ano o jornalista Alberto Castro, radicado em Londres, colaborador do PG, chamava-nos à
atenção para um artigo no Maka Angola, da autoria de Rafael Marques de Morais,
sobre aspetos subordinados ao título acima mencionado. A centralização do tema
exposto é o racismo encapotado e o branqueamento da história. Dizia-nos então
em adenda Alberto Castro: “Depois desse artigo, suspeito que Rafael Marques vá
perder muitas das relações "afetuosas", diretas e indiretas, que tem
em Portugal”.
Passou
um ano. Consideramos que não foi perceptível que a perda de “afetos” de Rafael
Marques de Morais em Portugal tenha sido declarada e significativa. Quererá isso mostrar
que há portugueses que preferem meter a cabeça na areia e nem se manifestarem?
Ou, então, que estão de acordo com aquilo que Rafael Marques expõe no texto? Que
apresentamos a seguir se continuar a ler. Não esqueça, desde que o escreveu até hoje
passou um ano. Desconhecemos repercursões reativas.
MM
| PG
OS
AFECTOS ENTRE PORTUGAL E ANGOLA E O RACISMO ENCAPOTADO
Tem
sido recorrente, sobretudo pela voz de negociantes, políticos e consultores
portugueses, a romantização das relações entre Angola e Portugal. No programa
“Expresso da Meia-Noite”, da SIC, Vítor Ramalho, secretário-geral da União das
Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) e ex-deputado do Partido
Socialista afirmou mesmo que a ligação entre os dois países “é uma relação de paixão em
que se entrecruzam afectos”. O que quer isto dizer?
Trata-se
de uma narrativa que pretende, acima de tudo, limpar a história. Portugal
escravizou e colonizou os angolanos durante 500 anos. Ao longo desses cinco
séculos, houve, claro, uma evolução nas relações entre Portugal e o que é hoje
Angola. Os portugueses deixaram de maltratar os angolanos como bestas de
trabalho, sem humanidade, e passaram, com o colonialismo, a tratá-los como
seres inferiores – os indígenas. Ou seja, como bestas remuneradas.
Nas
relações actuais entre estados soberanos, há uma cumplicidade atroz entre os
governantes portugueses e a sua elite de negócios no apoio à pilhagem de Angola
pelo poder do MPLA e de José Eduardo dos Santos, a sua família e o sistema de
repressão que os sustenta. Grande parte do saque é investido em Portugal, e
isso é muito positivo para o país. É quanto basta.
Disponibiliza-se
todo o afecto necessário para o dinheiro e para os recursos angolanos, e nenhum
afecto para o povo. Buscam-se todas as justificações para defender o sofrimento
dos angolanos como algo natural, decorrente da guerra, do seu estado
“africano”.
Porque
se recorre, então, com o maior dos cinismos, ao argumento das paixões e dos
afectos? Lembrei-me de um episódio ocorrido há alguns anos numa das minhas
visitas a Lisboa.
Uma
ilustre figura da sociedade portuguesa convidou-me para jantar num dos mais
sofisticados hotéis em Lisboa. Queria dar-me conta do seu grande empenho pelo
bem dos angolanos. A ideia animou-me. Durante o jantar, essa ilustre
personalidade relatou-me as diligências que encetara junto do então presidente
da Assembleia-Geral das Nações Unidas, na altura um português, para que usasse
dos seus poderes no sentido de promover a paz em Angola. O meu anfitrião
perorou sobre a necessidade de se alcançar finalmente a paz em Angola, o país
onde Portugal deixara a sua maior invenção durante as aventuras coloniais. Que
invenção?, perguntei. O meu interlocutor convidou-me, então, para no dia
seguinte ir ao seu escritório e tomar contacto directo com o registo da sua
diligência. Assim, ficaria a saber pelos meus próprios olhos.
No
seu gabinete, abriu o cofre e de lá retirou uma cópia certificada de uma carta,
muito bem preservada num plástico, e deu-ma a ler. No documento, argumentava
que a maior invenção de Portugal, do seu heroísmo colonial, era “a mulata”.
Fiquei sem palavras. Entusiasmado, o ilustre fez uma fotocópia e ofereceu-ma
com todo o seu afecto. Recebi, impotente e incrédulo.
Sozinho,
li e reli a carta. Pensei e repensei. Finalmente, sempre incrédulo, reagi.
Queimei a carta, para queimar também os sentimentos negativos que me invadiam e
a humilhação que sentia.
Ocorreu-me
o exemplo da África do Sul, que gerou uma das maiores comunidades miscigenadas
em África, mais vasta do que a angolana. Os brancos implementaram e mantiveram,
até há 22 anos atrás, o hediondo regime do Apartheid.
Senti-me igualmente insultado quando, no mesmo “Expresso da Meia-Noite”, Vítor Ramalho recorreu também a uma teoria pseudo-antropológica para defender a ideia de que a corrupção é algo natural ou esperado “nas famílias africanas”. “A família africana tem outro conceito que não o nosso”, afirmou Vítor Ramalho, procurando ao mesmo tempo buscar legitimidade para os seus argumentos com o facto de ter nascido em Angola. Quer dizer, conhece melhor esse “outro” africano. É a questão do preto, sem mais conversas.
Senti-me igualmente insultado quando, no mesmo “Expresso da Meia-Noite”, Vítor Ramalho recorreu também a uma teoria pseudo-antropológica para defender a ideia de que a corrupção é algo natural ou esperado “nas famílias africanas”. “A família africana tem outro conceito que não o nosso”, afirmou Vítor Ramalho, procurando ao mesmo tempo buscar legitimidade para os seus argumentos com o facto de ter nascido em Angola. Quer dizer, conhece melhor esse “outro” africano. É a questão do preto, sem mais conversas.
Tudo
isso serve para justificar o poder político-económico de Isabel dos Santos em
Portugal, detentora de uma fortuna cuja origem é comprovadamente a pilhagem de
Angola. Para reforçar a sua tese da “família africana”, citou também o caso de
Valentina Guebuza, filha do ex-presidente moçambicano Armando Guebuza. Ou seja,
os líderes africanos aparentemente saqueiam por amor às suas famílias.
As
“famílias africanas” têm sofrido horrores precisamente por causa de líderes
como José Eduardo dos Santos, que não olham a meios para roubarem e reprimirem
o seu próprio povo, para impedirem o seu desenvolvimento humano e o usufruto da
liberdade.
Tais
tendências têm origem na legitimação do abuso de poder e no contexto histórico.
Não são “naturais” às "famílias africanas". Por outro lado, tais
líderes, como José Eduardo dos Santos, mantêm a mentalidade e o estatuto de
inferiores, que precisam sempre de agradar os seus superiores europeus,
reproduzindo os piores métodos do colonialismo contra os seus próprios povos.
Recorrendo
ao exemplo do circo do congresso brasileiro, bem se pode descrever esta relação
apaixonada entre políticos portugueses e angolanos como um voto pelo sim ou
pelo não por parte da classe dominante portuguesa.
Sim
à lealdade a José Eduardo dos Santos e à sua mimada filha Isabel, pelo
dinheiro, pelo paternalismo, pela família, pela bajulação e pelo oportunismo.
Não
à liberdade do povo angolano, ao seu bem-estar e ao respeito pelos seus
direitos elementares, pelo racismo, pela família, pelo neocolonialismo e pela
ditadura.
Os
argumentos defendidos pelo político português Vítor Ramalho ofendem a honra e a
dignidade de qualquer cidadão africano de bom senso.
Basta!
É hora da palavra.
Rafael Marques de Morais
| Maka Angola | 24 de Abril 2016
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