Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
O
Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, empreendeu um estudo coletivo e interdisciplinar sobre
trabalho e políticas de emprego que procura cobrir os variados ângulos das
políticas públicas nestes domínios em Portugal. Este trabalho, publicado em
livro, inscreve-se numa tradição de economia política que tem sido uma das
marcas do Observatório. Procura-se nesta obra, não só proceder a uma detalhada
análise dos processos socioeconómicos que têm atravessado o nosso país, mas
também oferecer propostas e pistas de ação alternativas que sirvam de
contraponto ao discurso dominante. Trata-se de uma análise sobre os
antecedentes da crise, sobre os impactos concretos no seu período crítico com a
imposição das políticas do (e para além do) "Memorando", e sobre os
danos causados que se projetam no tempo.
No
chamado "processo de ajustamento", a troika e o Governo PSD/CDS
assumiram o trabalho como a principal variável de ajustamento da economia, no
pressuposto, absolutamente mentiroso, de o trabalho (salário direto e indireto,
direitos, proteção no desemprego) ter sido a causa dos desequilíbrios
desencadeadores da crise. A implementação da política de desvalorização interna
que concretizou tal opção foi injusta e errada. Injusta porque provocou redução
de salários, de prestações sociais e de importantes direitos laborais
(individuais e coletivos), um forte aumento do desemprego, a fragilização de
políticas sociais, o enfraquecimento do Estado e uma pior distribuição da
riqueza. Errada porque foi fortemente recessiva, conduziu à perda de capacidade
produtiva e reforçou emigração. O chamado novo emprego e os "novos"
vínculos contratuais que surgiram a partir daí ampliam as precariedades e
tendem a consolidar uma matriz de baixos salários.
A
desestruturação das relações laborais, provocada pelas alterações impostas nas
instituições que enquadram as relações de trabalho e pela transferência de
rendimentos e de poder do fator trabalho para o fator capital, foi, muito provavelmente,
a maior transformação que o nosso país sofreu. Eduardo Ferro Rodrigues,
presidente da Assembleia da República, ao apresentar esta obra assumiu que
"com maior ou menor investimento, com mais ou menos cortes, com mais ou
menos cativações, não se pode dizer que os sistemas públicos de saúde, educação
e segurança social se tenham totalmente descaracterizado. Mas na área do
trabalho não terá sido assim". Quer isto dizer que nas políticas sociais,
da educação e outras, há feridas que é preciso ir paulatinamente tratando, mas
na área do trabalho existem feridas que podem estar a transformar-se em chagas
mortíferas.
Ferro
Rodrigues, depois de lembrar que "a tolerância das sociedades democráticas
com políticas que geram mais desigualdades está próxima do zero" e que
"não basta criar emprego" nem "crescer de qualquer maneira"
afirmou, "dar valor ao trabalho é de facto urgente", ou seja, será
pela colocação do trabalho revalorizado no centro das políticas que poderemos
romper com as peias que continuam a atrofiar no plano estratégico a nossa
economia e o desenvolvimento da sociedade. A dignidade no trabalho não
sobrevive entregue às regras do mercado. Em muitos casos, os salários podem ser
melhorados, apenas impondo-se regras que assegurem partilha da prosperidade.
Estamos
em tempo de inovação tecnológica e de uma globalização que constantemente
armadilha direitos no trabalho. Isso desafia os atores sociais e políticos e,
em particular, os governos, a redobrado cuidado nas escolhas políticas. Repor
equilíbrios nas relações laborais, na contratação coletiva e nos vínculos de
trabalho é prioritário.
*
Investigador e professor universitário
1 - Manuel Carvalho da Silva, Pedro Hespanha e José Castro Caldas (Coords.),
Trabalho e políticas de emprego. Um retrocesso evitável. Coimbra: Actual.
2 - Fundação Calouste Gulbenkian, 21/09/2017. Apresentação de Eduardo Ferro
Rodrigues e Raymond Torres.
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