Thierry
Meyssan*
Pronunciando
um discurso orientador diante dos mais importantes diplomatas franceses, o
Presidente Macron revelou a sua concepção do mundo e a maneira como pensa
utilizar as ferramentas de que dispõe. Segundo ele, acabou a soberania popular,
tanto em França, como na Europa, portanto não existe mais democracias nacionais
ou supra-nacionais. Já não há mais Interesse colectivo, ou República, mas, sim
um catálogo heterogéneo de coisas e de ideias que constituem os bens comuns.
Descrevendo aos embaixadores o trabalho que deverão realizar, ele informou-os
que não deveriam continuar a defender os valores do seu país, mas, antes buscar
oportunidades para actuar em nome do Leviatã europeu. Entrando em detalhe
quanto a certos conflitos acabou descrevendo um programa de colonização
económica do Levante e de África.
Participando
na tradicional semana dos embaixadores, o Presidente Macron pronunciou o seu
primeiro discurso geral quanto a política externa desde a sua chegada ao
Palácio do Eliseu [1].
Todas as citações entre aspas neste artigo são extractos do mesmo. O Presidente
não traçou um quadro das relações internacionais actuais, nem explicou qual o
papel que ele concebe para a França no mundo, mas, antes a maneira como
pretende utilizar esse instrumento.
Segundo
ele, a França não foi capaz de se adaptar às mudanças do mundo a partir de
1989, da queda do Muro de Berlim, da dissolução da União Soviética e do triunfo
da globalização norte-americana. Para reconstruir o país, seria absurdo querer
voltar ao antigo conceito de soberania nacional. Pelo contrário, é preciso
avançar apoderando-se, para tal, das alavancas disponíveis. É por isso que,
para ele, hoje em dia : «a nossa soberania é a Europa».
Claro,
a União Europeia é um monstro, «um Leviatã» [2]. Ela não tem legitimidade popular,
mas legítima-se quando protege os seus expatriados. No seu formato actual, ela
é dominada pelo par franco-alemão. Ele, Emmanuel Macron, e a Chancelerina
Angela Merkel podem, portanto, em conjunto dirigi-la. Assim, ele pôde ir à
Polónia, na qualidade de Presidente francês e, com o acordo da sua parceira
alemã, a qual não se podia permitir o luxo de atacar a Polónia face aos olhos
da história, pronunciar-se lá como representante implícito da União, aí
insultar a Primeiro-ministro lembrando-a de que não tem poder soberano e
fazê-la voltar ao redil europeu.
Desde
logo, junto com a Chancelerina, ele decidiu agir em quatro domínios:
a protecção dos trabalhadores;
a reforma do direito de asilo e da cooperação europeia em matéria migratória ;
a definição de uma política comercial e de instrumentos de contrôlo dos investimentos estratégicos ;
o desenvolvimento da Europa e da Defesa.
Estes
objectivos determinando, evidentemente, as políticas nacionais de cada um dos
Estados-Membros, incluindo a França. Por exemplo, os ordenamentos que o seu
Governo acaba de adoptar sobre a reforma do Código do Trabalho estabelecem
os limites mínimos de protecção dos trabalhadores conforme as instruções
estabelecidas, desde há muito, pelos funcionários de Bruxelas. A cooperação
europeia em matéria migratória fixará os limites de hospitalidade permitindo
fazer funcionar a indústria alemã [3],
enquanto que a reforma do Direito de asilo determinará a capacidade de
acolhimento da França no seio do espaço Schengen. A Europa da Defesa permitirá
unir os exércitos da União e de os integrar colectivamente nas ambições da
OTAN.
Para
fazer avançar mais rapidamente a União Europeia, a França e a Alemanha
organizarão cooperações reforçadas sobre diferentes temas, em tal escolhendo os
seus parceiros à unha. Será mantido, entretanto, o princípio de decisão por
unanimidade, mas unicamente com os Estados pré-selecionados que estejam já de
acordo com eles.
A
coesão deste conjunto será mantida em volta de quatro valores comuns:
«a democracia eleitoral e representativa,
o respeito pela pessoa humana,
a tolerância religiosa e a liberdade de expressão,
e a crença no progresso».
«A democracia eleitoral e representativa» só se aplicará ao nível local (agrupamentos de comunas e regiões administrativas, os municípios e os departamentos destinados a desaparecer), uma vez que não haverá mais qualquer soberania nacional.
«O respeito pela pessoa humana, a tolerância religiosa e a liberdade» deverão ser entendidas no sentido da Convenção de salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e não mais da Declaração de 1789, portanto colocada no preâmbulo da Constituição. _ «A crença no progresso» irá permitir mobilizar os cidadãos europeus numa altura em que todos vêem países no Médio-Oriente Alargado, antes em bom estado, subitamente varridos do mapa e atirados de volta para a Idade da Pedra.
O
método Macron
A
França deverá utilizar o instrumento europeu para se adaptar ao «mundo multipolar
e instável». Sendo claro que está fora de questão restabelecer a aliança
franco-russa, que o Presidente Sadi Carnot e o Imperador Alexandre III haviam
concluído, já que a União Europeia é o componente civil da Aliança Militar
Atlântica, de nada serve basear a diplomacia francesa na História ou nos
valores.
Convêm,
pelo contrário, jogar o papel de «contrapeso» afim de manter «os laços com as
grandes potências cujos interesses estratégicos divergem». Compreenda-se, o
Presidente não fala sobre os interesses que divergem entrepor um lado os
Estados Unidos e por outro a Rússia e a China, mas em manter os laços que essas
duas grandes potências devem ter com os Estados Unidos.
«Para
isso precisamos (...) inserir-nos na tradição das alianças existentes e, de
maneira oportunista, construir alianças de circunstância que nos permitam ser
mais eficazes». O papel dos diplomatas não é mais, portanto, o de defender a
longo prazo os valores da França, mas rastrear a curto prazo as oportunidades,
as boas opções a concretizar.
«A
estabilidade do mundo»
Sendo
este o quadro de trabalho europeu e este o método estabelecidos, a função da
diplomacia francesa será tanto a de garantir a segurança dos Franceses,
participando na «estabilidade mundial», como a de ganhar influência defendendo
para isso «os bens comuns universais».
Uma
vez que desde a queda do Muro de Berlim, e o fim da soberania nacional, já não
existe um inimigo convencional, a França não necessita mais de um exército para
defender o seu território. Pelo contrário, ela tem que fazer face a um inimigo
não-convencional, o «terrorismo islamista», que exige dela ao mesmo tempo uma
força policial omnipresente e um exército de projeção capaz de intervir nos
focos de terrorismo no exterior: a Síria e o Iraque por um lado, a Líbia e o
Sahel por outro. É evidentemente esta mudança de objectivo, e não uma questão
orçamental, o que conduziu o Presidente Macron a demitir o chefe de
Estado-Maior das Forças Armadas. Falta agora reformar a polícia.
A
França continuará a proteger os seus cidadãos muçulmanos ao mesmo tempo que
mantêm no seu discurso um elo entre a ideologia política islâmica e a religião
muçulmana. Deste modo ela poderá continuar a vigiar a prática do culto
muçulmano, a enquadrá-la, e de facto a influenciar os seus
seguidores.
A
luta contra o terrorismo envolve também o corte do seu financiamento, que a
França persegue através de numerosas instituições internacionais; tendo em
vista que, devido «crises regionais e divisões, divisões em África e divisões
do mundo muçulmano», certos Estados participam secretamente nesse financiamento.
Ora, sendo primeiramente o terrorismo um método de combate e não um assunto
particular, e em segundo lugar sendo as ações terroristas consideravelmente
melhor financiadas a partir do momento em que se pretende interditá-las, é
evidente que este dispositivo foi implementado por Washington não contra os
Irmãos Muçulmanos, mas contra o Irão. Muito embora isso aparentemente não tenha
nenhuma relação com o financiamento do terrorismo, o Presidente Macron aborda,
então, a questão do antagonismo saudo-iraniano para tomar o partido da Arábia
Saudita e condenar o Irão.
Desde
os ataques do Daesh contra «os nossos interesses, as nossas vidas, o nosso
povo», a paz no Iraque e na Síria constitui «uma prioridade vital para a
França». Daí a mudança de método, em curso desde o mês de Maio: certo, Paris
«tinha sido posto à margem» das negociações de Astana, mas faz hoje em dia
«avançar concretamente a situação» discutindo com os participantes das reuniões
da Astana, um a um. Convenceu-os a adoptar o objectivo fixado há longo tempo
pelo Presidente Obama: a interdição de armas químicas e o acesso humanitário
às zonas de conflito. Por fim, a França criou um «grupo internacional de
contacto», que se reunirá por ocasião da Assembleia Geral da ONU, em torno de
Jean-Yves Le Drian. O retorno da Síria ao Estado de Direito «deverá ser
acompanhado da justiça pelos crimes cometidos, nomeadamente pelos dirigentes
desse país».
O
Presidente Macron faz assim marcha-atrás em relação às suas declarações
precedentes. Não se trata mais, como ele deixara perceber numa entrevista com
o JDD, de aceitar a República Árabe Síria e de ombrear com ela contra o
Daesh (EI), mas, pelo contrário, de prosseguir o jogo duplice anterior:
utilizar o pretexto humanitário para continuar a aprovisionar os jiadistas em
armas contra Damasco. O anúncio da intenção de julgamento dos dirigentes sírios
equivale ao da derrota da República Árabe Síria, uma vez que jamais,
absolutamente nunca, um Estado julgou por crimes de guerra os seus generais
vitoriosos. O Presidente Macron não concretiza que tribunal deverá julgar esses
líderes, mas a sua formulação remete para o plano do Director dos Assuntos
Políticos da ONU, Jeffrey Feltman, o qual previa desde 2012 (quer dizer, antes
da guerra generalizada) a «condenação» de 120 dirigentes sírios; um plano que
tinha sido redigido sob a direcção de um funcionário da Sra Merkel, Volker
Perthes [4].
No
que diz respeito à Líbia e ao Sahel, o Presidente Macron lembrou a sua
iniciativa de La-Celle-Saint-Cloud, durante a qual reaproximou o
«Primeiro-ministro líbio», Fayez Sarraj, e o «chefe do exército nacional
líbio», Khalifa Haftar; cimeira onde ele tinha assegurado aos dois homens o
apoio da União Europeia com a condição que eles passem ao balancete do
esquecimento o misterioso desaparecimento de 100 mil milhões(bilhões-br) de
dólares do Tesouro Nacional Líbio [5].
A
primeira consequência do derrube da Jamahiriya árabe Líbia foi a
desestabilização do Mali, país no qual ela muito largamente subvencionava a
economia [6].
Este cindiu-se então em dois: de um lado, os sedentários bantos, do outro os
nómadas tuaregues. A intervenção militar francesa tomou esses factos em
consideração e impediu as suas consequências imediatas sobre os civis. O
G5-Sahel foi criado pela França para impedir as consequências da guerra contra
a Líbia e prevenir o choque entre negros e árabes que apenas Muammar Gaddafi
tinha conseguido conter. A aliança para o desenvolvimento do Sahel visa, em si
mesma, substituir ---com meios muito mais escassos--- o programa de ajuda ao
desenvolvimento que a Líbia tinha implementado nesta região. O conjunto dessas
medidas irá garantir a estabilidade desta parte de África até que, dentro de
uma dezena de anos, o Pentágono acione o seu plano de extensão do caos ao
continente negro [7].
O
Presidente Macron evoca a declaração conjunta que acaba de fazer adoptar por
parceiros de África e da Europa instituindo gabinetes de imigração europeus no
continente africano. Trata-se de triar à partida os migrantes que serão aceites
pela União e de acabar com os percursos do êxodo. «As rotas da necessidade
devem tornar-se caminhos da liberdade»; uma fórmula que resume o pensamento
presidencial: a África, é a necessidade, a Europa é a liberdade.
Para
Emmanuel Macron, «restabelecer a segurança» em África passa pelos três D :
«Defesa, Desenvolvimento e Diplomacia», quer dizer, a presença do exército de
projeção francês, os investimentos franceses e a administração francesa ; o
programa clássico da colonização económica.
A
defesa dos bens comuns
Longe
de negligenciar o trunfo que representa a francofonia e o turismo, o Presidente
Macron consagrou-lhe longas explicações. A este propósito, ele impulsionou a
ideia de aproveitar o sistema jurídico francês para estender a influência do
país. Ao fazê-lo, ele retoma à sua conta a «doutrina Korbel», segundo a qual a
maneira pela qual um tratado é redigido estende a influência do país que fixou
os conceitos; doutrina aplicada pela sua filha, Madeleine Albright, e depois
pela sua filha adoptiva, Condoleeza Rice, para transcrever em Direito
anglo-saxónico os tratados internacionais.
O
primeiro bem comum, é o planeta.
Este
discurso foi pronunciado durante a «semana dos Embaixadores», no decurso da
qual o Ministro veio explicar ao seu pessoal que a partir de agora a função
primeira da sua administração era a diplomacia económica. Quando era ministro
dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius teve a ideia de mobilizar a rede
diplomática francesa para desenvolver as exportações. Para isso, ele criara a
Business France, uma organização pública à cabeça da qual ele colocara Muriel
Penicaud. Esta usou o dinheiro público que lhe fora confiado para lançar a
campanha eleitoral de Emmanuel Macron no estrangeiro, o que lhe vale os
problemas actuais com a Justiça. Agora ela é a Ministra do Trabalho e redigiu
as ordenações fixando a «proteção dos trabalhadores». Laurent Fabius, quanto a
ele, tornou-se Presidente do Conselho Constitucional. Foi a este título ---e em
violação do papel que lhe atribui a Constituição--- que ele redigiu um Pacto
para o ambiente que o Presidente Macron apresentará às Nações Unidas.
O
segundo bem comum, é a paz.
Através
«da Europa da Defesa», o Presidente Macron entende «dar um novo fôlego» à OTAN.
A Aliança visa com efeito a promoção «da paz»… como se vê no Afeganistão, no
Iraque, na Líbia, na Síria e na Ucrânia.
O
terceiro bem comum compõe-se da Justiça e das liberdades.
O
Presidente Macron, que havia previamente evocado os valores comuns da União
Europeia que são o «respeito pela pessoa humana, a tolerância religiosa e a
liberdade de expressão», assegura agora que «o lugar das mulheres, as
liberdades de imprensa, o respeito pelos direitos civis e políticos» são
valores universais. Infelizmente, ele não especificou a distinção que faz entre
aqueles que são europeus e os que considera universais. Muito embora ele se
encha de filosofia após o seu encontro com Paul Ricoeur, ele parece não ter
reflectido sobre a filosofia política e confunde no seu discurso o Direito
Humanitário com os Direitos do Homem, e a este propósito o seu significado
anglo-saxónico (proteção do indivíduo face aos abusos do Estado) e o seu
significado francês (responsabilidades dos homens, dos cidadãos e da Nação).
O
quarto bem comum, é a cultura.
O
Presidente Macron tinha declarado durante a sua campanha eleitoral que não há
cultura francesa, mas cultura em França. Identicamente, ele não concebe a
cultura em geral como um desenvolvimento do espírito, mas como uma coleção de
bens transacionáveis. Por isso, ele continuará a obra do seu antecessor quanto
à proteção de bens culturais, e não de pessoas, nos teatros de guerra.
Conclusão
Será
preciso muito tempo para extrair todas as conclusões quanto à visão do mundo do
Presidente Macron.
O
ponto mais importante que fica é que, segundo ele, o tempo da soberania popular
passou, tanto para os franceses como para os europeus em geral. O ideal
democrático pode continuar... ao nível local, mas não tem sentido ao nível
nacional.
Secundariamente,
a sua concepção do Bem comum (res publica), a qual todos os regimes políticos
---sejam monárquicos, imperiais ou republicanos--- abraçaram, parece igualmente
de um outro tempo. Na sua óptica, tratava-se de servir --- ou de pretender
servir--- um interesse colectivo. Emmanuel Macron evoca, é verdade, a Justiça e
as liberdades, mas para imediatamente colocar esses nobres ideais ao mesmo
nível que os objectos, como a Terra e os produtos culturais transacionáveis, e
de forma desonrosa propõe a vassalagem à OTAN. Parece, pois, que a República
está também morta.
No
final deste discurso, o auditório aplaudiu-o calorosamente. Nem a imprensa
nacional, nem os líderes da oposição emitiram qualquer objecção.
*Intelectual
francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace.
As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe,
latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous
nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras: L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand,
2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
Notas:
[1]
« Discours
d’Emmanuel Macron à la semaine des ambassadeurs de France » («Discurso
de E. Macron na semana dos embaixadores da França»- ndT), Emmanuel
Macron, Réseau Voltaire, 29 août 2017.
[2] Leviathan,
Thomas Hobbes, 1651.
[3]
“Como a União Europeia
manipula os refugiados sírios”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 2 de Maio de 2016.
[4]
“A Alemanha e a ONU
contra a Síria”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria), Rede
Voltaire, 28 de Janeiro de 2016.
[5]
“Macron/Libia =
‘Rothschild Connection’”, Manlio Dinucci, Tradução Maria Luísa de Vasconcellos, Il
Manifesto (Itália) , Rede Voltaire, 2 de Agosto de 2017.
[6]
« La guerre contre
la Libye est une catastrophe économique pour l’Afrique et l’Europe »
(«A guerra contra a Líbia é uma catástrofe económica para a África e a Europa»-
ndT), entrevista com Mohammed Siala, Réseau Voltaire, 3 juillet 2011.
[7]
“O projecto militar dos
Estados Unidos pelo mundo”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 22 de Agosto de 2017.
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