sexta-feira, 26 de maio de 2017

UMA FARSA ASSASSINA


Em pouco mais de duas palavras: os familiares dos inocentes de Manchester, Londres, Paris e Nice deveriam antes pedir responsabilidades aos governos dos seus países por fomentarem o terrorismo que os vitimou.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

Segundo informações oficiais norte-americanas, corroboradas pelo governo Macron em França, divulgadas perante o silêncio abespinhado de Londres, o principal suspeito do atentado terrorista de Manchester é um indivíduo filho de refugiados líbios, residente nos subúrbios da cidade, que se terá convertido ao terrorismo islâmico numa viagem à Líbia. Em torno destes dados adensam-se especulações, contra informações, silêncios oficiais e enxurradas de relatos sensacionalistas vomitados pelos tablóides e outros meios de comunicação que também o são, embora se considerem «respeitáveis».

O retrato sumário do suposto autor do atentado é paralelo ao de outros terroristas europeus dos anos mais recentes: nascidos nos países onde cometem os crimes, inseridos nos contingentes de excluídos e marginalizados das sociedades desses países, transformados em agentes de violência no convívio com os cenários de guerras alimentadas pelos governos desses países.

O caso particular do bombista de Manchester parece ser ainda mais explícito: dizem-no filho de «fugitivos» ao regime líbio de Muammar Khaddaffi, agora cidadão britânico que se terá «licenciado» em terrorismo islâmico junto dos grupos de assassinos que a NATO usou para derrubar o mesmo Khaddaffi e a seguir transformaram o território líbio numa anarquia produtora de terroristas. O terrorista de Manchester é, pois, um fruto da «libertação da Líbia» pela Aliança Atlântica, desencadeada com especial envolvimento do governo de Londres.

Em pouco mais de duas palavras: os familiares dos inocentes de Manchester, Londres, Paris e Nice deveriam antes pedir responsabilidades aos governos dos seus países por fomentarem o terrorismo que os vitimou.

Outros atentados se seguirão – falta saber quando, como e onde – e então ouviremos palavas indignadas e definitivas dos mesmos ou de outros dirigentes políticos geminados, seremos inundados pela repetitiva verborreia de uma comunidade mediática vampiresca, ficaremos reféns de mais sentenciamentos de medidas arbitrárias que nos confiscarão e militarizarão direitos cidadãos – para que seja possível eliminar o terrorismo.

Porque em pleno rescaldo do atentado de Manchester…

A primeira-ministra britânica, Theresa May, decidiu tomar as medidas de excepção a que ainda resistira na sequência do atentado em Whitehall, junto ao Parlamento, e decretou a militarização da segurança através da atribuição de funções policiais aos militares, isto é, à NATO…

… E o recém-empossado presidente francês, Emmanuel Macron, aproveitou a oportunidade para prolongar o estado de excepção no seu país, que vigora há quase dois anos, pelo menos até 1 de Novembro. Em cinco meses, por certo e para fatalidade dos cidadãos que tais governantes têm, não faltarão ocasiões para novas prorrogações porque nesta Europa há governos que são, ao mesmo tempo, expoentes do terrorismo e da «guerra contra o terrorismo». Uma Europa onde o terrorismo e a abolição gradual de direitos dos cidadãos se tornaram tão certos como a morte.

Sem qualquer margem de erro, permitam-me que deduza o seguinte: Theresa May e Emmanuel Macron castigam civicamente os seus povos na sequência de actos bárbaros perpetrados por concidadãos oriundos dos grupos de mercenários usados pelos seus antecessores Sarkozy, Hollande e Cameron, através do aparelho da NATO, para «libertar» países como a Líbia, a Síria, o Afeganistão, o Iraque e alguns outros.
Enquanto isto…

Mais de 1500 presos políticos palestinianos estão há 40 dias em greve de fome lutando pela aplicação dos seus direitos, reconhecidos como universais mas que ainda não chegaram ao farol da democracia, dos direitos humanos e do «nosso modo de vida» que se chama Israel.

Essa luta cidadã contra o terrorismo praticado pelo regime israelita não cabe no universo mediático internacional que se alimenta do sangue gerado pelo terrorismo. Alguém já disse, com absoluta razão, que estamos perante uma omertà, o silêncio dos cúmplices mafiosos para protegerem práticas e ligações criminosas. Uma cumplicidade que vale por mil censuras.

Os presos políticos palestinianos estão sujeitos, por exemplo, ao regime de «detenção administrativa». No muito peculiar direito israelita, esta medida significa que os detidos podem penar sem culpa formada, acusação ou julgamento durante seis meses, período indefinidamente prorrogável através da arbitrariedade de juízes, quase sempre militares. Isto é, os presos políticos palestinianos cumprem prisão perpétua sem que seja pronunciada qualquer culpa contra eles. Apenas porque lutam pela independência do seu país, um direito que lhes é reconhecido pela generalidade dos dirigentes políticos aliados de Israel, mas que não mexem um dedo para que isso se cumpra.

A luta de morte contra o terrorismo, travada pelos presos políticos palestinianos, prossegue em silêncio enquanto a generalidade dos dirigentes mundiais, agora com Trump à cabeça, continuam a entoar um mantra vazio de conteúdo fazendo crer que defendem a solução de dois Estados na Palestina.

A crueldade desta farsa é reforçada pelo sadismo implícito, porque nenhuma das vozes que tal recita corresponde a um gesto firme capaz de contribuir para pôr fim à colonização sistemática da Cisjordânia praticada por Israel durante os últimos cinquenta anos, acelerada por Benjamin Netanyahu, até agora imparavelmente.

Ao mesmo tempo continua a falar-se de «processo de paz» em tom papagueado, sabendo nós que a credibilidade desse voto é medida pelo facto de à cabeça do «quarteto» pacificador, constituído por Estados Unidos, Rússia, União Europeia e ONU, estar um criminoso de guerra e mentiroso contumaz chamado Tony Blair.

Enquanto isso, o governo de Israel prossegue a ocupação até deixar de haver território em condições compatíveis com a criação de um segundo Estado soberano e independente na Palestina, isto é, uma nação que não seja um protectorado ou uma autonomia fictícia.

No entanto, este cenário que tornaria os palestinianos reféns de tutelas alheias, com a cumplicidade de sectores internos, começa a desenhar-se com nitidez. A Administração «autónoma» de Ramallah, sob um mandato há muito expirado do presidente Mahmud Abbas, está cada vez mais isolada internamente, além de manietada pelas cumplicidades com Israel e os compromissos com um cadáver a que ainda chamam «processo de paz».

A realidade desta situação torna-se dia-a-dia mais penosa e teve um episódio recentíssimo que fere a memória e mina a energia de quantos lutaram e lutam pela independência palestiniana. Nas 48 horas que se seguiram ao encontro de Abbas com Donald Trump o regime de Ramallah prendeu 12 compatriotas por se manifestarem solidários com os presos políticos em greve de fome nas cadeias israelitas. Entre eles o próprio Abu Khamis, que há três meses foi libertado do cárcere de Israel onde passou 12 anos.

Poucas horas depois de ter estado com Mahmmud Abbas, o presidente norte-americano preferiu voltar a sublinhar uma «amizade com Israel», construída «sobre o nosso amor comum à liberdade e o nosso respeito pela dignidade humana».

A farsa assassina representada pelos dirigentes mais poderosos do mundo continua.

UM TRUMP “CLINTONIANO”!


Martinho Júnior | Luanda 

1- A reconversão do republicano Donald Trump ao “estado profundo”, ou seja uma rendição-prostração à aristocracia financeira mundial e ao “diktat” dos termos da globalização neoliberal conforme à hegemonia unipolar, está confirmada agora com a sua primeira visita de estado ao exterior, que começou por um dos estados menos democráticos e mais implicados no caos e no terrorismo internacional: a Arábia Saudita!

De certo modo é a vingança do clã Clinton, a um desamparado Trump que investiu tudo na fugacidade “protecionista” da época eleitoral, quando a corrida é uma corrida de fundo que não permite nem ingénuos, nem alienados, muito menos gente sem escrúpulos cuja “missão” é afinal tornarem-se “sargentos às ordens” dos falcões do costume!

Um Trump “clintoniano” é pior que os próprios do clã Clinton, pior mesmo que a “muito rodada Killary”; explico: a sua proverbial inexperiência, meio buçal, meio alienada, serve como uma maquiavélica luva ao “diktat” dos falcões!

Os falcões não podiam esperar melhor, pois nenhum Clinton atingiu esta craveira à sombra de um tão esclarecedor “the americans first”: a assinatura dum acordo para venda de armas à Arábia Saudita no valor de 110.000 milhões de dólares, armas essas que, por via dos múltiplos sistemas de“transvases” de que as monarquias arábicas sunitas e wahabitas são “useiras e vezeiras” em conformidade com os “costumes da CIA”, (que servem de paradigma aos serviços de inteligência dos Estados Unidos e de todos os vassalos da NATO), irão parar em parte às mãos dos que se propõem disseminar mais caos e terrorismo, mais “revoluções coloridas” e “primaveras árabes” em cima do já existente e onde quer que seja.

O périplo de Trump não podia ser senão “exemplar”: de seguida vai a Israel, para depois ir até à Cidade do Vaticano, à avassalada Bélgica (sede da NATO e da União Europeia) e à “doce” Itália,“matriz” das “redes stay behind” tão úteis aos 1% no seu contínuo afã de dominar o mundo!

Enquanto investido na pele de mais um falcão, há que render visita a todos eles, aos falcões de Israel e aos da NATO (Bélgica e Itália), com um “mea culpa” no Vaticano próprio dum confessionário cínico e hipócrita até à medula, quiçá para rebuscar a doutrina e a ideologia do “Le Cercle” dos tempos da “Guerra Fria” (na tentativa de a reconverter) em nome da “civilização judaico-cristã ocidental”, provavelmente para que a Igreja Católica Apostólica Romana seja menos“franciscana” e venha a abençoar todo o caos e terrorismo que vem pela frente.

2- … E o caos e terrorismo já não se distende só pela Europa do Leste, pelos Balcãs, pelo Cáucaso, pelo sul da Ásia, por alguns focos na Oceânia e por África (continuo a afirmar que se está em plena IIIª ou IVª Guerra Mundial, como o queiram): agora com um Trump “clintoniano” toda a América Latina está a mercê dos falcões e dos seus agentes facilmente recrutados em qualquer oligarquia de feição, a latino-americana incluída!

A oligarquia de feição na Venezuela Bolivariana, aninhada na coligação MUD, funcional desde 2008, uma coligação que mais parece um ninho de gatos, está na vanguarda das opções dum Trump “clintoniano” para a América Latina, verificável até no papel do “Ministério colonial” que é a servil Organização dos Estados Americanos, OEA!

De há 50 dias que as acções violentas nas ruas das principais cidades da Venezuela ocorrem, multiplicando as “praças Maidan” na persistente tentativa de introduzir o fascismo engendrado pelas políticas neoconservadoras e neoliberais, já reconhecidas em tantos lugares e recentemente reeditadas em França, em função do engodo duma eleição representativa à mercê dos interesses dos falcões!

Por outro lado, enquanto em Pequim se celebra o início do “Belt and Road” que se distende antes de mais pelo maior continente da Terra, o continente euro-asiático, como o único programa geoestratégico global que se levará a cabo por via duma “globalização inclusiva” durante o século XXI, o “falcão à força” (?) insiste no enquistamento da resistência da hegemonia unipolar na Europa, no Médio Oriente e na América latina, onde agora tenta lutar contra o tempo e subverter os progressos alcançados desde os finais do século passado, em prol da independência, da soberania, do aprofundamento da democracia, da integração, da solidariedade e da inclusão entre os povos, as nações e os estados latino-americanos!

Resistir na Venezuela Bolivariana e em todos os países da América Latina aspirantes à independência, à soberania, ao aprofundamento da democracia, ao progresso e à possibilidade de lutar contra o subdesenvolvimento crónico que advém do passado.

Resistir está inerente à lógica com sentido de vida que é a única opção para uma humanidade ávida de paz e por isso é necessário ganhar-se a consciência do que efectivamente é preciso em benefício de todos os povos da Terra, algo que nada tem a ver com os interesses dos falcões que, sentindo perder terreno, só se importam em semear caos, terrorismo, tensões, divisões, conflitos e guerras, ou não fosse para isso que existem as mais de 800 bases dos Estados Unidos espalhadas pelo planeta!

A Venezuela Bolivariana dá o exemplo da resistência vital que é necessário levar a cabo e por isso só existe para com ela uma opção: pela vida do próprio planeta, pela paz, pelo aprofundamento da democracia, pela Constituinte, nem mais um palmo de espaço sócio-político dominador e enganador ao MUD, ou de chão para uso e abuso dos falcões, sabendo que o Comando Sul do Pentágono não está satisfeito com as bases que até agora espalhou até ao cone sul do continente americano!... 

Ilustrações: Um Trump “clintoniano”; Um Trump “parceiro” da Casa Saud, em nome dum remoto “the americans first”; O símbolo sempre presente do Departamento da Defesa em socorro dos falcões; O símbolo do South Command, o dispositivo do Pentágono permanentemente implicado contra o progresso da América Latina; A CELAC, uma das organizações progressistas latino-americanas empenhadas contra a hegemonia unipolar, em nome da paz, da integração, da solidariedade e da dignidade.

BRASIL, CRISE E SAÍDA NÃO-ORTODOXA


Moysés Pinto Neto provoca: “Vivemos um momento extraordinário. Tudo está em aberto. A decomposição do instituído é nossa grande oportunidade”

Moysés Pinto Neto | Outras Palavras | Imagem: Alice Kohler, Brincando no Xingu

A década passada foi inegavelmente um grande momento para o Brasil. O bolo cresceu e foi distribuído também aos pobres, promovendo um deslocamento na estrutura de classes brasileira e uma reconquista da autoestima nacional. O que hoje é regra, a depreciação do Brasil, tinha virado cafonice. Nosso país tornava-se um dos projetos de futuro mundial, invertendo a equação colonizada de que deveríamos copiar tudo do Norte. Durante a crise de 2008, víamos as economias de lá despencarem enquanto vivíamos nosso melhor momento, podendo até tripudiar a crise chamando-a de “marolinha”. Por todo o mundo, o Brasil era visto como potencial modelo porque combinava uma nova estabilidade institucional, conquistada pela Constituição de 1988 e transição serena entre tucanos e petistas, estabilidade econômica, com responsabilidade fiscal, controle da inflação e crescimento, e um caldeirão sociocultural e ambiental ainda inexplorado, mas cheio de vitalidade.

No entanto, os arranjos do poder não eram auspiciosos. Do ponto de vista político, formava-se um grande bloco no poder — o “condomínio pemedebista” — cuja gestão era disputada pelos petistas e tucanos. As relações com o setor privado estavam despidas de toda transparência. Sabíamos que as campanhas ficavam cada vez mais caras, o “Mensalão” fora o prenúncio da crise do financiamento que indicava ter o PT perdido qualquer diferencial em relação ao resto do sistema. A combinação entre esses negócios e a gestão pemedebista — fundada em supermaioria parlamentar comprada com cargos e, hoje dá para dizer tranquilamente, grana — formava um regime oligárquico e plutocrático, onde o poder político tradicional (p.ex., Sarney, Calheiros) e os “supercampeões” (Odebrecht, Friboi, OAS, Andrade Gutierrez) atuavam em conluio bem distante da população. O Plano de Aceleração do Crescimento, programa número 1 do imaginário petista pós-2008, tinha esse “lado B”. Se o “lado A” era o discurso do crescimento virtuoso, da geração de empregos, do impulsionamento do mercado interno e aventura no mercado global como player, o “lado B” era a corrosão democrática, o domínio das construtoras nas cidades, o governismo apático, a ofensiva sobre os índios e a devastação ambiental.

A pauta do transporte público, em 2013, foi o catalisador de uma indignação geral contra esses arranjos. A pax lulista, que se prolongou nos primeiros anos da gestão de Dilma, é desarranjada pelos movimentos que reivindicam outro modelo de urbanismo, outra experiência da democracia, mais ousadia na configuração do nosso futuro. Em seguida, a classe média invade a rua e pede menos corrupção, mais educação e saúde. Mas o processo não para por aí: das Câmaras Municipais ocupadas no Brasil, passando pelos rolezinhos até o #naovaitercopa, é possível ver que o movimento nunca se deixou domesticar totalmente pelas forças da direita ou da esquerda ou seus interesses partidários imediatos. Ele vira uma hidra de muitas cabeças — e todas as tentativas de hermenêutica do fenômeno acabam fracassando diante da sua multiplicidade, todas as tentativas de redução sociológica acabam revelando mais as idealizações políticas dos cientistas sociais que o dispêndio energético do momento cujos efeitos sentimos até hoje. Sem dúvida, a única aproximação possível é com a ideia de acontecimento, pensada tanto pela filosofia alemã (Heidegger, Benjamin) quanto pelo pensamento francês (Althusser, Foucault, Derrida, Deleuze, Badiou), no sentido daquilo que excede o possível, estoura as capacidades de predição do estado anterior e aponta para o imponderável.

No entanto, em 2014 somos confrontados com a mesquinharia daqueles que colocam o processo eleitoral acima de tudo e de todos. A radicalidade daqueles que não disputavam uma cadeira no Palácio do Planalto, mas um projeto de futuro, é substituída pelo apoio “apesar de tudo”, pela esperança hoje surreal da “guinada à esquerda”. O hibridismo de 2013 e início de 2014 torna-se uma polarização identitária focada no poder institucional, colocado no plano de emergência e fim do mundo, como se tudo que ocorresse naquela eleição fosse questão de vida ou morte. E a vitória melancólica de Dilma não alivia o quadro: a direita não aceita o resultado, povoa as ruas, e a esquerda é capturada na defesa de um projeto muito aquém do que foi destinado o voto. O compromisso com a manutenção do governo paralisa a radicalidade do pensamento, tornando a crítica refém do dogmatismo esquerdista, fazendo com que as perspectivas radicais fossem engolidas pela defesa do indefensável. A perspectiva de futuro encurta-se drasticamente — e esse encurtamento mostra-se bem quando a questão procedimental começa a tomar a frente dos debates políticos, numa redução do político ao jurídico. Chega-se às raias de sustentar o “direito subjetivo” da governante permanecer no cargo, como se o poder destituinte não fosse uma ferramenta muito mais interessante que esse conservadorismo jurídico ad hoc, inventado para proteger um partido específico da pressão política.

Caímos no imediatismo. E é o mesmo imediatismo que, mesmo numa crise abissal desde 2015, torna as eleições de 2018 a única pauta. Novamente, caíamos na lógica eleitoral sequestrando a política. Não que eleições não sejam importantes. Mas sem repensar os fundamentos do nosso apoio político, todo apoio cairá na mesma lógica atual. Repetiremos o mesmo círculo vicioso.

Do ponto de vista de longo prazo, o momento é extraordinário. Nunca as oligarquias políticas estiveram tão emparedadas. É verdade que o Poder Judiciário e o Ministério Público não são forças revolucionárias e não raro — como vimos no caso Joesley — protegem o empresariado de sanções tão duras quanto as que impõem à plebe sem pudores. Trata-se também de uma casta político-burocrática, não raro herdeira de grandes arranjos aristocráticos-familiares (“nobreza togada”), política e socialmente conservadora e formada também não raro por manuais de direito puramente dogmáticos, que repetem o conteúdo da lei e as decisões dos tribunais de forma decorada, não-crítica, sem preocupação com os fundamentos filosóficos e as consequências sociais dos atos (explorei a relação dessa casta com os “concurseiros” em outro texto). Além disso, carecem de legitimidade popular, por mais que tenham o apoio midiático, uma vez que não foram eleitos pelo voto.

E, mesmo assim, não dá para ser tão maniqueísta na análise. Bem ou mal, a blindagem absoluta que protegia a classe dominante no Brasil está abatida. As previsões que destacavam a seletividade das investigações, supostamente apenas dirigidas ao PT, falharam miseravelmente. Aécio Neves, principal nome da oposição, está afastado e os grandes articuladores do PMDB — Eduardo Cunha, Eliseu Padilha, Renan Calheiros e Moreira Franco — estão na mira da operação. O próprio presidente, Michel Temer, está sob fogo cerrado. Empresários da Odebrecht, OAS e outras construtoras foram presos e tiveram que entregar seus esquemas. Essa força em direção à transparência não está ligada a uma grande manipulação arquitetada por forças em conluio secreto: ela é um processo incontrolável, ligado fundamentalmente à nova matriz tecnológica, que provoca um tremor no conceito de esfera pública. Vários filósofos — como Derrida, Guattari, Latour e Stiegler — pensaram esse fenômeno em toda sua radicalidade, mas infelizmente parece que os intelectuais brasileiros fracassaram rotundamente em fazer a mediação entre conhecimento e militância política. Reféns da agenda eleitoral e dos compromissos partidários ou parapartidários, submetem as análises a categorias pobres, como as de manipulação da mídia, grande conspiração e alienação do povo.

Sem subscrever totalmente a descrição de Marcos Nobre, é no entanto possível usar sua imagem do sistema da Nova República como um mapa para se entender o impacto da Lava-Jato. Para Nobre, haveria um bloco progressista, o “social-desenvolvimentismo”, composto de petistas e tucanos — com o intuito reformista e voltado para a modernização do país. Esse bloco teria que negociar com o “centrão”, bloco pemedebista (no sentido amplo), movido pelo arcaico e pela fisiologia e cujo apoio é condição da governabilidade. Foi esse grande arranjo que desabou. A capacidade dos progressistas mediarem o “imobilismo em movimento” da Nova República desabou em 2013, quando as ruas atacaram a própria condição antidemocrática da “governabilidade”. A composição desaba e hoje não temos forma; estamos, rigorosamente, em desconstrução. Ninguém pode antever o futuro: como diz Derrida, “ele só se anuncia na forma de monstruosidade”.

Há, basicamente, três argumentos do campo progressista contra a Lava-Jato: o econômico, o jurídico e o conservador. Pelo argumento econômico, o dinheiro recuperado e o combate à corrupção não compensariam os danos econômicos provocados nas grandes empresas nacionais, causando desemprego e recessão. O argumento jurídico consiste em criticar, a partir da matriz garantista (defesa dos direitos individuais dos acusados), os abusos judiciais da Operação, chegando a afirmar que estaríamos em estado de exceção. Finalmente, o argumento conservador é baseado simplesmente no medo: o que virá depois de quebrarmos nossas estátuas, de destruir nossos ídolos?

O argumento econômico mostra bem que o “capitalismo de laços” brasileiro é um patrimonialismo. Não importa que as empresas estivessem colonizando o espaço público e enfraquecendo a democracia, não importa que recebessem vantagens competitivas em relação a pequenas empresas na disputa do mercado, tudo se resume a “dar empregos” ou “promover o PIB”. É o mesmo argumento medíocre do progressismo que tolera o neoextrativismo: o agronegócio sustenta nosso crescimento, então às raias para índios e ecologia. Como se não fosse possível pensar em outros modelos não inspirados em megalomanias macropolíticas e macroeconômicas, impulsionando um menor no campo e na indústria, talvez sem o mesmo impacto nos números, mas mais disseminado, distribuído, conectado com a vida das pessoas e menos refém do capitalismo predatório que hoje corrói o tecido urbano com condomínios, blocos gigantescos, estacionamentos e shopping centers, ou o campo com barragens, monoculturas, exploração de trabalho escravo e etnocídio indígena.

O argumento jurídico é pequeno perto do que está em jogo: quando mesmo o Brasil viveu uma “normalidade institucional” desse ponto de vista? Quando as garantias individuais foram respeitadas até o limite em que esses juristas invocam, por exemplo, com a população pobre? O direito é invocado como blindagem de classe, ele se apresenta como uma fantasia que encobre as relações de poder e finge que a decisão é principiológica, quando a rigor o que está em jogo é interesse de classe. Alertar para erros e abusos jurídicos pontuais é mais que necessário. Mas, quando se traduz o cenário em ruptura com um direito que estaria assentado na normalidade e na lei, o que se faz é revestir privilégio em direito, confundir blindagem e garantia. As críticas que se faz em torno dos limites dos poderes judiciais ou dos abusos acusatórios do Ministério Público em geral estão corretas e são justas, mas daí a considerar que isso significaria, em termos políticos, uma ruptura institucional é um passo que ignora a forma normal que funciona o sistema penal. É bom lembrar que boa parte dos juristas que hoje anunciam o estado de exceção devido ao golpe parlamentar ou, pior ainda, diante das violações de direitos individuais de Lula protestavam quando se criticava a violência policial diante das manifestações, as operações militares nas favelas cariocas ou a repressão ao #naovaitercopa como medidas de exceção. É preciso então decidir: se vivemos em estado de exceção, é preciso reconsiderar as posições anteriores, perceber que ele começou bem cedo (na verdade, nunca saímos) e extrair as conclusões devidas disso (que certamente não convergem para um garantismo); se, por outro lado, trata-se de afirmar a normalidade institucional, então as recentes violações não são suficientes para nos jogar em outro momento, pois lá atrás tampouco eram.

Finalmente, o argumento conservador, por ser baseado no medo, é muito frágil. A pergunta é sempre a mesma: o que fazer, então? Silenciar diante do desvio de dinheiro público, fazendo vista grossa à colonização da esfera pública pelos poderosos? Não enfrentar os interesses dominantes porque, ao fim e ao cabo, eles dão empregos e fazem crescer a economia? Construir uma aura santa sobre os políticos de esquerda que os tornam imunes a investigações? Evidentemente, nenhuma dessas posições se sustenta minimamente.

O momento é extraordinário porque, ao mesmo tempo em desaba o patrimonialismo, se abre uma janela histórica para formular novos projetos. É verdade que o processo atual é um diagrama complexo de interesses em que mídia, burocracia judiciária, mercado financeiro e oligarquias políticas tentam impor suas cartas. A questão, no entanto, é deixar de lado as teorias conspiratórias, passando uma navalha de Ockham, e se focar no entrechoque aleatório que gera o imponderável. Mais que nunca, a imagem de Lucrécio, revivida por Althusser, hoje parece dar frutos. Não o grande esqueleto ideal platônico, a República organizada e ordenada, mas o choque de átomos que provoca encontros e desvios, sendo irredutível a qualquer configuração prévia que se possa imprimir. A energia destituinte pode ser revolucionária se cuidarmos para organizá-la, tirar do estado bruto e lhe dar plasticidade. As pessoas não estão interessadas em defesas de figurões ou partidos, ou de identidades políticas, mas de ideias. Os liberais já apresentaram — a ganharam alguma força popular — seu projeto de futuro. Eles querem um Estado menor e mais eficiente, um mercado mais competitivo, uma educação mais individualista e meritocrática e uma ética do trabalho forte.

E o outro lado? Não está claro ainda o projeto. É a janela que se abre para pensarmos um modelo descentralizado de política, que possa aproximar mais o cidadão do representante, com inovações como mandatos coletivos, municípios fortes e muitas outras. Um modelo de economia pautado na inovação tecnológica, que aproveita a energia criativa do brasileiro e pensa a indústria fora do modelo decrépito da fábrica, estimulando pequenos empreendimentos, mais próximo do local, em detrimento dos grandes players. Um modelo ambiental que estabeleça um balanço justo entre os seres vivos que compõe a ecologia brasileira, dos biomas à atmosfera, das profundezas à floresta, do mineral ao humano, do campo à cidade. Um modelo que permita restabelecer aquilo que nos torna adversários dos liberais — uma noção forte do “social” — que se inspire na solidariedade social como um pilar fundante para qualquer coletivo e que relativize o papel do dinheiro, da riqueza, como uma única fonte de reconhecimento social. Que valorize mais, por exemplo, o tempo como o bem mais precioso que alguém pode ter, no contrafluxo da aceleração niilista que percorre o mundo, ou a qualidade de vida como contraponto à hegemonia do poder e do dinheiro. E com isso um novo modelo trabalhista e previdenciário ainda inspirado na solidariedade social, e não na poupança individual, entendido o coletivo como estrategicamente decisivo para uma boa vida em sociedade. Um modelo que possa integrar educação, esportes e cultura, aproximando toda vitalidade da cultura brasileira de dimensões que, até agora, só copiamos do Norte. Um modelo que precisa ser inventado — mas cuja gestação já está em andamento na sociedade brasileira, nas diversas experiências bem-sucedidas, no conhecimento que já é produzido nas universidades, nos movimentos sociais, nas experiências empreendedoras, nos coletivos da Internet, nas bricolagens populares, nas tradições desperdiçadas.

Tudo isso está em aberto. A decomposição do instituído é nossa oportunidade.

ANGOLA E O ESPAÇO INTERIOR: MAIS OLHOS QUE BARRIGA OU CAMPANHA ELEITORAL?



Angola admite mandar para o espaço mais satélites até 2025. Se ainda nem o primeiro “AngoSat-1” conseguimos que saísse da Terra...

Todas as campanhas eleitorais são caracterizadas pelo exagero das promessas, mesmo as inexequíveis. Mas manda o bem senso que há algumas que nunca devem ser abordadas ou trazidas para o circo eleitoral sob pena de tudo o que pode, de bom, ter sido dito deixar que ser considerado válido. Ou seja, os "artistas eleitorais" acabam por matar as boas ideias.

Ora esta é claramente uma ideia não só difícil - diria, quase inexecutável - como problemática, porquanto sabemos que o País não nada em dinheiro - o custo de um satélite e o seu lançamento são inquantificáveis - como desde meados do ano passadio estamos em forte recessão.

É certo que o preço do petróleo tem estado a subir. Mas também sabemos que já circulam nos meetings internacionais sobre energia que, provavelmente, vai deixar de haver viaturas com combustíveis fósseis,  na Alemanha o parlamento já aprovou  que, a partir de 2030, fica proibida «a comercialização, no mercado local, de automóveis novos movidos por motores de combustão, a gasolina ou a gasóleo». Também a Noruega, Holanda e - até - a Índia, só admitirão a circulação de veículos eléctrico a partir de 2035.

Ora, com a nossa economia a continuar fortemente dependente do petróleo - e desconheço se algum programa partidário prevê alguma alteração qualitativa e quantitativa quanto a esta "monodependência" económica - não vejo como poderemos inverter a actual situação de crise económica e financeira.

Consequentemente, como poderemos fazer a apologia do lançamento de satélites de teledeteção remota1 – também dito “sensoriamento remoto” (em português brasileiro) ou “ereção remota” (em português europeu); nisto, paradoxalmente, nós somos menos sensuais na terminologia – dentro de dois anos, no programa de Estratégia Espacial até 2025, com tão parcos recursos?

Caros Governantes, há, claramente e nesta altura, outras prioridades para os nossos cidadãos! Não tenhamos mais olhos que barriga...

1 Satélites de teledeteção remota: De acordo com o Wikipédia são, ou contém, instrumentos que possibilitam «a obtenção de informações sobre alvos na superfície terrestre (objectos, áreas, fenómenos), através do registo da interacção da radiação electromagnética com a superfície, realizado por sensores distantes, ou remotos. Geralmente estes sensores estão presentes em plataformas orbitais ou satélites, aviões e a nível de campo. ANASA é uma das maiores captadoras de imagens recebidas por seus satélites»

*ELCAlmeida | Ph.D (DSSc - Investigador/Researcher/Pós-Doutorando

*Eugénio Costa Almeida – Pululu - Página de um lusofónico angolano-português, licenciado e mestre em Relações Internacionais e Doutorado em Ciências Sociais - ramo Relações Internacionais - nele poderão aceder a ensaios académicos e artigos de opinião, relacionados com a actividade académica, social e associativa.

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