Ora
a perda de cem vidas humanas, nas circunstâncias em que ocorreu – dois picos de
vagas incendiárias muito concentradas no tempo e imprevisivelmente
diversificadas no espaço –, não é um acidente: é uma matança, um selvático
assassínio em série.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Anuncia-se
que, por ora, as chamas estão extintas; fazem-se os enterros, recolhem-se os
salvados, secam-se as lágrimas, respeita-se o luto, limpam-se os destroços,
recontam-se as poupanças – se ainda as há – deitam-se mãos à obra porque a vida
continua e sempre é menos dura sob o abrigo de um tecto. Até à próxima.
Sem
surpresa, e como já percebemos, agora segue-se a campanha feroz contra o
governo, exigem-se cabeças de ministros, sobe de tom a troca de soundbitescomo
balas, exercita-se a caridadezinha público-privada, provavelmente teremos de
assistir às repugnantes práticas de necrofilia política dos que, habituados a
tratar mal os vivos jamais respeitarão os mortos.
Cem
mortos e dezenas de feridos é o rescaldo provisório da hecatombe dos incêndios
deste ano em Portugal. Ano após ano, fogos florestais sempre houve; mas não há
memória de uma tragédia humana com esta envergadura, de uma insegurança, de um
sentimento de fragilidade e de terror que se estende a todos os cidadãos que
habitam no território português.
Onde
havia jogos sujos de madeireiros e se apostavam grandes interesses imobiliários
e florestais tornou-se este ano comum o sacrifício de vidas humanas. Salta à
vista, sente-se no peito, que o País ficou desestabilizado num tempo em
que, finalmente, recomeçava a olhar em frente.
Escrevi
há dois meses que as circunstâncias qualitativamente diferentes dos fogos deste
ano exigiam abordagens, medidas e respostas diferentes. Lembrei o caso, também
único, do Verão de 1975, quando a multiplicação de incêndios, então
centralizados no Alentejo, tinha como objectivo político não apenas a
destruição da Reforma Agrária mas também a expansão de um clima de pânico que
forçasse o país e os seus habitantes a desejarem um recuo drástico na
Revolução.
E
admiti a hipótese de estarmos agora perante uma desestabilizadora operação de
terrorismo puro e duro, uma prática que, embora não pareça a quem se regula
pela comunicação social dominante, não se cinge às malfeitorias do Daesh, nem
sequer ao universo do radicalismo islâmico.