Não
nos enganemos: vitória de Trump e Brexit expressam uma nova fase de
globalização – mais dramática, mais excludente e talvez capaz de eliminar a
democracia
Boaventura
de Sousa Santos | Outras Palavras | Imagem: Adrian Paci, Centro de Permanência
Provisória (2007)
Em
círculos acadêmicos e em artigos de opinião nos grandes meios de comunicação
tem sido frequentemente referido que estamos entrando num período de
reversão dos processos de globalização que dominaram a economia, a política, a
cultura e as relações internacionais nos últimos cinquenta anos. Entende-se por
globalização a intensificação de interações transnacionais para além do que
sempre foram as relações entre Estados nacionais, as relações
internacionais, ou as relações no interior dos impérios, tanto antigos como
modernos. São interações que não são, em geral, protagonizadas pelos Estados,
mas antes por agentes econômicos e sociais nos mais diversos domínios. Quando
são protagonizadas pelos Estados, visam cercear a soberania do Estado na
regulação social, sejam os tratados de livre comércio, a integração regional,
de que União Europeia (UE) é um bom exemplo, ou a criação de
agências financeiras multilaterais, tais como o Banco Mundial e o FMI.
Escrevendo
há mais de vinte anos1, dediquei ao tema muitas páginas e
chamei a atenção para a complexidade e mesmo o caráter contraditório da
realidade que se aglomerava sob o termo “globalização”. Primeiro, muito do que
era considerado global tinha sido originalmente local ou nacional, do hamburger
tipo MacDonald’s, que tinha nascido numa pequena localidade
do meio-oeste dos EUA, ao estrelato cinematográfico, ativamente
produzido no início por Hollywood para rivalizar com as concepções do cinema
francês e italiano que antes dominavam; ou ainda a democracia enquanto regime
político globalmente legítimo, uma vez que o tipo de democracia globalizado foi
a democracia liberal de matriz europeia e norte-americana e, na versão
neoliberal, mais norte-americana que europeia.
Segundo,
a globalização, ao contrário do que o nome sugeria, não eliminava as
desigualdades sociais e as hierarquias entre os diferentes países ou regiões do
mundo. Pelo contrário, tendia a fortalecê-las. Terceiro, a globalização
produzia vítimas (normalmente ausentes dos discursos dos promotores do
processo) que teriam agora menor proteção do Estado, fossem elas trabalhadores
industriais, camponeses, culturas nacionais ou locais, etc. Quarto, por causa da
dinâmica da globalização, as vítimas ficavam ainda mais presas aos seus locais
e na maioria dos casos só saíam deles forçadas (refugiados, deslocados internos
e transfronteiriços) ou falsamente por vontade própria (emigrantes). Chamei a
estes processos contraditórios globalismos localizados e localismos
globalizados. Quinto, a resistência das vítimas beneficiava por vezes das novas
condições tecnológicas tornadas disponíveis pela globalização hegemônica
(transportes mais baratos, facilidades de circulação, internet, repertórios de
narrativas potencialmente emancipatórias, como, por exemplo, os direitos
humanos) e organizava-se em movimentos e organizações sociais transnacionais.
Chamei a esses processos globalização contra-hegemônica e nela distingui o cosmopolitismo
subalterno e o patrimônio comum da humanidade ou jus humanitatis. A
mais visível manifestação deste tipo de globalização foi o Fórum Social
Mundial, que se reuniu pela primeira vez em 2001 em Porto Alegre (Brasil) e do
qual fui um participante muito ativo desde a primeira hora.
Que
há de novo e por que se diagnostica como desglobalização? As manifestações
referidas são dinâmicas nacionais e subnacionais. Quanto às primeiras,
salientam-se o Brexit, pelo qual o Reino Unido (?) decidiu abandonar a UE, e as
políticas protecionistas do presidente dos EUA, Donald Trump, e a sua
defesa do princípio da soberania, insurgindo-se contra os tratados
internacionais (sobre o livre comércio ou a mudança climática), mandando erigir
muros para proteger as fronteiras, envolvendo-se em guerras
comerciais – entre outras, com o Canadá, a China e o México. Quanto
às dinâmicas sub-nacionais, estamos em geral perante o questionamento das
fronteiras nacionais que resultaram de tempos e circunstâncias
históricas muito distintas: as guerras europeias, desde a Guerra
dos Trinta Anos e consequente Tratado de Westfália (1648) até às do
século XX que, devido ao colonialismo, transformaram-se em mundiais,
(1914-18 e 1939-45); a primeira (talvez segunda?) partilha de África na Conferência
de Berlim (1884-85); as guerras de fronteiras nos novos Estados independentes
da América Latina a partir do início do século XIX.
Assiste-se
à emergência ou reacendimento da afirmação de identidades nacionais ou
religiosas em luta pela secessão ou autogoverno no interior de Estados, de
fato, plurinacionais. Entre muitos exemplos: as lutas da Caxemira, da Irlanda
do Norte, de várias nacionalidades no interior do Estado Espanhol, do Senegal,
da Nigéria, da Somália, da Eritreia, da Etiópia e dos movimentos indígenas da
América Latina. Há ainda o caso trágico do Estado ocupado da Palestina. Alguns
destes processos parecem (provisoriamente?) terminados – por exemplo,
a fragmentação dos Balcãs ou a divisão do Sudão. Outros mantêm-se latentes ou
fora da mídia (Quebec, Escócia, Caxemira) e outros têm explodido de forma
dramática nas últimas semanas, sobretudo os referendos na Catalunha e no
Curdistão do Iraque e nos Camarões.
Em
meu entender, estes fenômenos, longe de configurarem processos de
desglobalização, constituem manifestações, como sempre contraditórias, de uma
nova fase de globalização mais dramática, mais excludente e mais perigosa para
a convivência democrática, se é que não implicam o fim desta. Alguns deles,
contra as aparências, são afirmações da lógica hegemônica da nova fase,
enquanto outros constituem uma intensificação da resistência a essa lógica.
Antes
de referir uns e outros, é importante contextualizá-los à luz das
características subjacentes à nova fase de globalização. Se analisarmos os
dados da globalização, concluímos que a liberalização e a privatização da
economia continua a intensificar-se com a orgia de tratados de “livre” comércio
atualmente em curso. A UE acaba de acordar com o Canadá um vasto tratado de
“livre” comércio, o qual, entre outras coisas, vai expor a alimentação dos
europeus a produtos tóxicos proibidos na Europa mas permitidos no Canadá; um
tratado cujo principal objetivo é pressionar os EUA a juntar-se. Foi já
aprovada a Parceria Transpacífico, liderada pelos EUA, para enfrentar o seu
principal rival, a China. E toda uma nova geração de tratados de “livre”
comércio está em curso, negociados fora da OMC, sobre a liberalização e
privatização de serviços que em muitos países hoje são públicos, como a saúde e
a educação.
Se
analisarmos o sistema financeiro, verificamos que estamos perante o ramo do
capital mais globalizado e mais imune às regulações nacionais2. Os dados que têm vindo a público
são alarmantes: 28 empresas do setor financeiro controlam 50 trilhões de
dólares, isto é, três quartos da riqueza mundial contabilizada (o PIB mundial é
de 80 trilhões e além deles haverá 20 trilhões em paraísos fiscais). A
esmagadora maioria dessas instituições está registada na América do Norte e na
Europa. O seu poder tem ainda outra fonte: a rentabilidade do investimento
produtivo (industrial) a nível mundial é, no máximo, de 2.5%, enquanto a do
investimento financeiro pode ir a 7%. Trata-se de um sistema para o qual a
soberania de duzentos potenciais reguladores nacionais é irrelevante.
Perante
isto, não me parece que estejamos diante de um momento de
desglobalização. Estamos antes perante novas manifestações da globalização,
algumas delas bem perigosas e patológicas. O apelo ao princípio da soberania
por parte do presidente dos EUA é apenas o vincar das desigualdades entre
países que a globalização neoliberal tem vindo a acentuar. Ao mesmo tempo que
defende o princípio da soberania, Trump reserva-se o direito de invadir o Irã e
a Coreia do Norte. Depois de terem destruído a relativa coerência da economia
mexicana com o NAFTA e provocado a emigração, os EUA mandam construir um muro
para travá-la e pedem aos mexicanos que paguem a sua construção. Isto,
para além de ordenarem deportações em massa.
Em
nenhum destes casos é pensável uma política igual, mas de sentido inverso. O
princípio da soberania dominante surgira antes na UE com o modo como a Alemanha
pôs os seus interesses soberanos (isto é, do Deutsche Bank) à frente dos
interesses dos países do sul da Europa e da UE.
A
soberania dominante, combinada com a auto-regulação global do capital financeiro,
dá azo a fenômenos tão diversos quanto sub-financiamento dos sistemas públicos
de saúde e educação, a precarização das relações laborais, a chamada crise dos
refugiados, os Estados falidos, o descontrole do aquecimento global,
os nacionalismos conservadores.
As
resistências têm sinais políticos diferentes, mas assumem por vezes formas
semelhantes, o que está na origem da chamada crise da distinção entre esquerda
e direita. De fato, esta crise é o resultado de alguma esquerda ter aceitado a
ortodoxia neoliberal dominada pelo capital financeiro e até se ter
autoflagelado com a ideia de que a defesa dos serviços públicos era populismo.
O populismo é uma política de direita, particularmente quando a direita pode
atribuí-la com êxito à esquerda. Residem aqui muitos dos problemas com que se
defrontam os Estados nacionais. Incapazes de assegurar a proteção e o mínimo
bem-estar dos cidadãos, respondem com repressão à legítima resistência dos
cidadãos.
Acontece
que a maioria desses Estados são, de fato, plurinacionais. Incluem povos de
diferentes nacionalidades etnoculturais e linguísticas. Foram declarados
nacionais pela imposição de uma nacionalidade sobre as outras, por vezes de
modo bem violento. As primeiras vítimas desse nacionalismo interno arrogante,
que quase sempre se traduziu em colonialismo interno, foram o povo andaluz
depois da chamada Reconquista do Al-Ándalus; os povos indígenas das Américas e
os povos africanos depois da partilha de África. Foram também eles os primeiros
resistentes.
Hoje,
a resistência junta às raízes históricas o aumento da repressão e a endêmica
corrupção dos Estados dominados por forças conservadoras ao serviço do
neoliberalismo global. Acresce que a paranoia da vigilância e segurança interna
tem contribuído, sob o pretexto da luta contra o terrorismo, para o
enfraquecimento da globalização contra-hegemênica dos movimentos sociais,
dificultando os seus movimentos transfronteiriços. Por tudo isto, a
globalização hegemônica aprofunda-se, usando, entre muitas outras máscaras, a
da soberania dominante, que acadêmicos desprevenidos e meios de comunicação
cúmplices tomam por desglobalização.
—
1 Toward a New Common Sense, Nova York: Routledge, 1995, com tradução em espanhol, Sociología jurídica crítica. Para un nuevo sentido común en el derecho, Madrid: Editorial Trotta, 2009, 290-453
1 Toward a New Common Sense, Nova York: Routledge, 1995, com tradução em espanhol, Sociología jurídica crítica. Para un nuevo sentido común en el derecho, Madrid: Editorial Trotta, 2009, 290-453
2 Pode consultar-se um dos textos mais
recentes e mais incisivos sobre o capital de autoria do economista brasileiro
Ladislau Dowbor, meu antigo colega na Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra: A era do capital improdutivo. A nova arquitetura do poder:
dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta, São
Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.
*Boaventura
de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale,
professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril,
e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa -
todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela
proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social
Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa
denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.
Sem comentários:
Enviar um comentário