Sinais distópicos: além de
eliminar trabalho humano em massa, máquinas e programas podem, em breve, tornar
infernal o controle sobre os assalariados
Antonio Martins | Outras Palavras
Em “Vida de Galileu”,
provavelmente sua peça mais notável, Bertolt Brecht imagina a fala final do
grande cientista do Renascimento a seus pares. A obra foi escrita durante o
tormento da II Guerra Mundial, em meio os exílios do autor – por isso, o
Galileu de Brecht já não compartilha o entusiasmo automático pela Ciência
presente em outras obras da tradição iluminista e mesmo marxista. Diz ele, em
tom de advertência quase desesperada: “O precipício entre vocês e a humanidade
pode crescer tanto que ao grito alegre de vocês, grito de quem descobriu alguma
coisa nova, responda um grito universal de horror”. Há duas semanas, a revista
britânica Economist publicou um longo
estudo sobre os novos avanços a Inteligência Artificial –
especialmente seu uso nos locais de trabalho. Diante da leitura, é impossível
não sentir de novo o calafrio que assombrou o dramaturgo alemão.
Desenvolver Inteligência
Artificial, explica Economist, significa dotar computadores e
softwares de capacidade para processar imensos volumes de dados e –
principalmente – para encontrar padrões e fazer previsões sem ter
sido programados para tanto. Alguns usos podem parecer neutros, ou até
benéficos. A Amazon e a Leroy Merlin (rede francesa que vende, no varejo,
materiais de construção e de uso doméstico) desenvolveram sistemas que
recompõem estoques com enorme precisão e economia. Podem fazê-lo porque seus
computadores levam em conta, além da simples reposição do que foi comprado
pelos clientes, dados como as previsões de tempo e a ocorrência de feriados
(que podem alterar a frequência às lojas). Os algoritmos permitem prever a
demanda por milhões de produtos, com até 18 meses de antecedência.
Abstraia, por um momento, o interesse nas empresas. Pense nos enormes
desperdícios – sociais, ambientais, econômicos – que poderiam ser evitados se
fosse possível saber antecipadamente, por exemplo, quantos milhões de toneladas
de papel, de tomates ou de alumínio será preciso produzir, num determinado
período, para satisfazer às necessidades humanas.
Mas, em sociedades regidas pelo
lucro, dinheiro atrai dinheiro – e a tecnologia acaba alocada para os setores
em que contribuiu para concentrar riquezas. O Caesar’s, um conglomerado
norte-americano de hotéis e cassinos (presente também no Brasil) usa
Inteligência Artificial, por exemplo, para identificar os prováveis objetos de
consumo de cada cliente e induzir à compra. Os usos mais devastadores, porém,
estão no mundo do trabalho.
A Inteligência Artificial
permitirá eliminar uma imensa quantidade de empregos. A substituição, nos callcenters, de
humanos por sistemas crescerá cinco vezes, até 2021, em todo o mundo. O Metro,
um grupo varejista alemão, planeja trocar os caixas de suas lojas por scanners que
leem o código de barras dos produtos já no carrinho de compras e fazem a
cobrança. A Bloomberg, uma agência global de notícias econômico-empresariais,
já desenvolveu programas que, sem necessitar de qualquer auxílio humano,
examinam relatórios financeiros de empresas e redigem notícias sobre eles.
Convenhamos: são documentos que não requerem análises refinadas. Mas – pergunte
a si mesmo – os redatores liberados de tais tarefas maçantes serão
redicrecionados para outras mais nobres? Poderão, por exemplo investigar o
resultado social da atuação de tais empresas? Ou terminarão ou simplesmente
descartados?
Além de desempregar em massa, a
Inteligência Artificial poderá estabelecer níveis inéditos de controle sobre
quem mantém a ocupação. A relação de novos instrumentos é aterradora. A Amazon
acaba de patentear
uma pulseira que transmitirá, do pulso dos trabalhadores, informações
detalhadas sobre cada passo deles nas instalações da empresa. O mesmo bracelete
emitirá automaticamente pequenas vibrações, quando houver sinais de que o
desempenho do funcionário não atende a todos os requisitos de produtividade.
É um entre muitos exemplos.
O Workday,
outro software, cruza constantemente 60 tipos de informação para prever
comportamento dos empregados. O Humanyze (sim,
os nomes são orwellianos) detecta cada contato dos funcionários com seus
colegas e se conecta com suas agendas e e-mails. O Slack,
um aplicativo de mensagens, avalia a rapidez dos trabalhadores para cumprir
certas tarefas e permite identificar quem esteja divagando, ou em suposta má
conduta. Slack, aliás, é acrônimo para “searchable log of all
conversation and knowledge” (algo como “registro disponível de toda a
conversação e conhecimento”). O Cogito escuta
os diálogos telefônicos entre trabalhadores e clientes e estabelece “rankings
de empatia”. O Veriato, acoplado a
computadores, mede as pausas no trabalho e mesmo a velocidade dos toques no
teclado…
A conjuntura favorece as
empresas. Num cenário de desemprego muito elevado, lembra o estudo do Economist, os
assalariados estão sendo induzidos a assinar contratos de trabalho que
autorizam a invasão de sua privacidade. Este retrocesso é viabilizado por
dispositivos como a “prevalência do negociado sobre a lei”, presente na
contrarreforma trabalhista brasileira.
A Inteligência Artificial é
necessariamente desumanizadora? Para autores como o economista
norte-americano Jeremy
Rifkin, a resposta é, evidentemente, não. Em Sociedade
com Custo Marginal Zero: A Internet das Coisas, os Bens Comuns Colaborativos e
o Eclipse do Capitalismo, Rifkin imagina um cenário completamente
distinto do descrito por Economist – que hoje parece prevalecer. Ele
vê, na convergência de três revoluções tecnológicas (da conectividade, das
novas energias e dos transporttes), a chance de uma brutal economia de
recursos. Ela estaria associada, porém, não à concentração de riquezas, mas à
garantia do acesso de todos aos bens necessários para uma vida digna, com
mínimo consumo dos bens naturais. Uma brevíssima síntese do pensamento do autor
(que hoje presta consultoria ao governo chinês) pode ser vista neste vídeo.
Há anos, Immanuel Wallerstei não
se cansa de alertar: a crise do capitalismo é profunda e provavelmente
terminal. Mas isso não é, necessariamente, uma boa notícia. No lugar do sistema
hoje hegemônico podem surgir tanto uma sociedade muito mais democrática e
igualitária quanto outra, que aprofunde como nunca as marcas de exploração,
hierarquia alienação que já vivemos. Os dilemas, esperanças e ameaças da
Inteligência Artificial – algo que vale estudar em profundidade – parecem lhe
dar toda razão.
*Antonio Martins é editor do Outras Palavras
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