sábado, 12 de maio de 2018

PORTUGAL | Hipocrisia orçamental


Domingos de Andrade* | Jornal de Notícias | opinião

Os escritos avivam a memória. Têm esse efeito extraordinário de nos tirar dos labirintos da ilusão. Do nevoeiro dos dias. E as datas que abaixo se enumeram são demolidoras. Para a forma como um país trata os seus velhos, os seus novos, as suas crianças. Estas têm cancro.

10 de abril. A história já tinha sido denunciada. Mas faltavam os testemunhos. As imagens. É o que o JN faz. Há crianças com cancro tratadas nos corredores do Hospital de S. João, corredores entupidos, lixo à porta dos elevadores. Toda a gente sabe, mas ninguém faz nada. "Condições miseráveis", diz o presidente do Hospital de S. João, que avança ter 22 milhões para a ala pediátrica, mas não os pode usar. Bloqueio das Finanças.

12 de abril. As Finanças, pela voz do ministro Mário Centeno, garantem que a obra na pediatria do S. João vai avançar. Faltam as datas. Que o ministro da Saúde haverá de pôr em cima da mesa cinco dias depois.

17 de abril. Adalberto Campos Fernandes, o ministro da Saúde, diz que a situação é "inaceitável" e que "não há mais tempo nem mais conversa que não seja autorizar a obra, lançar o procedimento e executá-lo no mais curto espaço de tempo". Em 15 dias, garantiu.

4 de maio. Passou quase um mês. Lembram-se? Há crianças com cancro a serem tratadas nos corredores. O lixo continua a acumular-se em frente aos elevadores. As janelas estão despidas de cortinas e de afetos. No dia seguinte, o Conselho de Administração do Hospital S. João vem dizer que tem feito melhorias que permitem aumentar o conforto de crianças e família, e afirma que haverá novas instalações no final de junho.

11 de maio. Conta o JN. Desmente Mário Centeno. Conta com base em fontes. Citando quem quis ser citado. A história diz que as Finanças estão a negociar alterações nos serviços de pediatria no Norte sem a presença tutelar do Ministério da Saúde. E que, nas últimas semanas, administradores de hospitais do Porto foram chamados para justamente responderem a questões sobre os serviços de pediatria.

Não é politiquice. Nem zanga de comadres. Nem a régua que mede o poder de cada um. É um país gerido até ao limite da hipocrisia orçamental. Enquanto há crianças com cancro a serem tratadas no corredor.

P.S. A descentralização está também na atitude. A Região Norte está a bater o pé às intenções do Governo de decidir o que fazer com o que resta dos fundos comunitários do Portugal 2020 sem ouvir os autarcas. Os municípios rejeitam. Numa posição unânime e inédita. É que, se não for assim, qualquer dia estaria o poder central a nomear os presidentes das câmaras.

*Diretor-executivo

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