Leia ou releia a entrevista ao
escritor Éric Vuillard, vencedor do prémio literário mais importante de França,
o Goncourt
Poucos dias antes da atribuição
do prémio literário mais importante de França, o Goncourt, ao livro A Ordem do
Dia, correu o boato de que muitos livreiros estariam descontentes com essa
possibilidade, dado o livro custar apenas €16 (€13,90 em Portugal, na edição da
D. Quixote). O caso, nunca confirmado nem desmentido, provoca um sorriso no
laureado, Éric Vuillard, 50 anos, uma das mais singulares vozes francesas da
atualidade. “Voilà, fake news...”, diz a brincar. Não frequenta as redes
sociais, mas está a par da desinformação de que tanto se fala. Para ele, no
entanto, o grande exemplo das “fake news do século” é a invasão do Iraque; um
político, George W. Bush, a dizer que existem armas que não existem. São essas
encenações que lhe interessam e que ele tenta recriar nos seus livros: a social
e a cultural, e, sobretudo, a económica e a política. Já o fez a propósito da
Revolução Francesa, da questão colonial, do genocídio dos índios americanos e
da Primeira Guerra Mundial.
Volta, agora, a essas encenações a
propósito da Segunda Guerra Mundial. A Ordem do Dia, Prémio Goncourt e sucesso
de vendas em França, é um espantoso fresco sobre os antecedentes daquele
conflito: jogos de bastidores, pactos entre empresários e ditadores, planos
megalómanos e nunca concretizados; e, ainda, as muitas danças sociais entre um
mundo antigo e aristocrático e uma nova desordem liderada por demagogos e
gangsters. De Paris, ao telefone, Éric Vuillard revela à VISÃO a “verdade” que
encontrou, através da ficção, sobre o que nos levou à Segunda Guerra Mundial.
Um estudo recente de uma
associação judia concluiu que muitos jovens norte-americanos não sabem o que
foi o Holocausto. Fica surpreendido com esses resultados?
Completamente. O cenário em
França e na Europa é muito diferente. A nossa cultura ficou muito marcada pelo
Holocausto, com imensos livros e filmes, alguns integrados nos programas
escolares. Claro que o conhecimento do passado, e também da Segunda Guerra
Mundial, é reconfigurado a cada geração.
Em que sentido?
Com o passar do tempo surgiram
mais testemunhos, foi possível ter uma noção concreta do que aconteceu. Além
disso, cada tempo tem a sua ideologia, a sua conjuntura, o que influencia a
maneira como vemos o passado e determina o que valorizamos. Ninguém faz nada,
hoje em dia, ao nível da criação e do pensamento, sobretudo na Europa, sem ter
o Holocausto no horizonte, mesmo que isso seja inconsciente.
No seu livro chega a falar
numa falsa consciência.
É um tema central. A negação ou o
falso conhecimento. De que forma esta se manifesta em nós, enquanto indivíduos
e coletivo, a ignorância de alguma coisa que devíamos saber ou ter sabido? O
que sabiam os franceses, durante a ocupação, sobre as deportações para os
campos de concentração? Esta pergunta determina todas as outras. Quando não
enfrentada, pode levar a uma falsa consciência.
E tornar-se um tema esquecido?
Não diria esquecido, porque é
assunto muito estudado. Mas escrever livros ou ensaios sobre este assunto, ou
outro, nunca tem nada de neutro. Imagino que não se escreva da mesma forma em
Portugal desde a crise económica, que foi muito mais dura do que noutros países
europeus. Certamente que os leitores criaram uma nova relação com os livros,
mudando talvez os seus interesses e a perceção que tinham do país e da atualidade.
Eu próprio, ao escrever este livro, não fui indiferente ao tempo em que estamos
a viver.
Vê paralelismos entre a
atualidade
e a Segunda Guerra Mundial?
Vejo este meu interesse pela
Segunda Guerra Mundial como um sintoma do nosso tempo, das nossas preocupações,
mas não cheguei a conclusões. Em cada época, o futuro é incerto, numa mais do
que noutra. Hoje, ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos dez anos. Vemos
formas autoritárias a emergir por todo o lado e uma intensificação das
desigualdades sociais entre continentes, Estados e classes sociais. No período
que mediou as duas guerras mundiais não foi assim.
Mas ninguém foi capaz de prever
o que aconteceu...
Num certo sentido, ninguém foi.
Porém, quando se viam grupos armados na rua, era possível intuir o que ia
acontecer: um golpe de Estado. E, ao dar-se um em Itália, era possível prever
outro na Alemanha. Nada disso se vê hoje. A incerteza é maior, porque as causas
que levam a determinadas consequências estão escondidas. Até algumas decisões de
grande importância se tornaram invisíveis. Marcaram-me muito os comentários de
Yanis Varoufakis quando era ministro das Finanças da Grécia.
Sobre a opacidade da Europa?
Mais: sobre a proibição de se
tomar notas nas reuniões. “Salvar a Grécia” era uma expressão consagrada e à
conta dela não se podia contestar nada. Do que lá se passou não haverá rasto.
Se não podemos tomar nota ou ninguém redige tudo o que se disse numa comissão,
como é norma nos parlamentos, não podemos confiar no que se diz à saída. Somos
contemporâneos de instituições que tomam decisões que não podem ser
escrutinadas.
Temos falado de temas atuais e
históricos que também são abordados no seu livro. Por que razão os tratou
ficcionalmente
e não num ensaio?
No sentido mais corrente, o meu
livro não é de ficção. Chamam-lhe uma “narrativa”. Não inventei personagens nem
acontecimentos. Mesmo as palavras de Hitler são retiradas das memórias de quem
se cruzou com ele. No entanto, acredito que a verdade tem sempre uma estrutura
ficcional, de montagem e de composição.
É uma construção?
Não nesse sentido pejorativo.
A ficção é intrínseca ao Saber.
Os
acontecimentos que descrevo, e que são anteriores ao início da Segunda Guerra
Mundial, adquirem no seu conjunto um significado maior, exterior ao livro. É a
montagem que cria o efeito de ficção e está profundamente ligada à busca da
verdade que sempre move a literatura.
Um exemplo no livro que pode
ilustrar esse efeito?
Não contar as atrocidades
cometidas nos campos de concentração teve dois efeitos. O primeiro foi o de
libertar-me da falsidade da testemunha: nasci depois da Segunda Guerra Mundial,
não sou filho ou neto de um sobrevivente. Falar como se tivesse conhecimento
direto seria indecente. Não nos podemos apropriar da dor dos outros. O segundo
foi o de poder tratar o assunto de outra forma. No penúltimo capítulo cito
quatro necrologias de judeus que se suicidaram. O jornalista que as assina diz
que se ignoravam os motivos dos seus atos.
Uma frase feita.
E uma falsidade. Todos conheciam
a perseguição aos judeus. Ao falar desses suicídios já estou a falar do
Holocausto que, na verdade, começa aí. Estou a colar, em alguns casos apenas a
sugerir, as causas e as consequências. Isso permite-me sublinhar que na História
existem fios. Podemos seguir uns ou outros. E isso é ficção. Uma ficção que
estrutura a minha relação com a verdade.
A ficção toca o coração do
leitor?
Sem uma tonalidade afetiva não há
literatura. Até um escritor como Flaubert, aparentemente neutro, se revela
extremamente irónico nesse distanciamento. A forma como se escreve é tão
importante como a investigação que se faz. Pelos tons da escrita, as
personagens tornam-se verdadeiras, e o leitor sente o livro.
Como chegou à sequência inicial
dos 24 empresários que se reúnem com Hitler e acabam por financiar
a campanha eleitoral de 1933?
Essa sequência é um bom exemplo
de como escrever indica caminhos. No início, queria mostrar o meu choque com
essa colaboração tão precoce dos empresários. Escrevi-a a frio, no registo da
surpresa. O bom da escrita
é que te diz
quando não funciona.
Como?
Começamos a ouvir um ruído
desagradável, de panelas a bater ou de papel amachucado, o que significa que
nos enganámos. Deitei tudo fora e recomecei. Pois, o que surpreende na
vassalagem daquele poder económico é, precisamente, não ser uma surpresa. É
banal e constante. Todos os patrões pactuaram e continuam a pactuar com
ditaduras. E, quando há embargos, encontram vias para os contornar.
Apesar das atrocidades que cometeram,
dos trabalhos forçados de que beneficiaram, das magras indemnizações que
pagaram, os produtos dessas grandes empresas continuam à venda. O que podemos
fazer?
Às vezes mais, outras menos.
As determinações sociais, como sabemos, são muito
potentes. Definem-
-nos. Felizmente,
há quem consiga libertar-se e desobedecer à ideologia da sua classe ou do seu
tempo. Quanto aos produtos, não deixa de ser curioso sermos representados por
marcas. Já não somos artesanais, mas estandardizados. O mundo económico paga-nos,
mas também nos vende.
A ocupação da Áustria é central
no seu livro. Que significado tem na sua procura de uma verdade superior aos
factos?
É o primeiro grande momento da
expansão nazi. Pode ser resumida em três frases: as autoridades foram
pressionadas; depois vieram os ultimatos; finalmente a Áustria foi ocupada sem
resistência. Se tivermos três parágrafos, como nos manuais escolares, podemos
dar o contexto. E se tivermos ainda mas espaço, conseguimos surpreender o
balbuciar da História.
O balbuciar da História?
Não podemos cair em discursos
grandiosos ou mitificados. A Áustria também tinha o seu ditador.
A diferença é que, ao contrário de Hitler, pertencia a
uma classe social elevada.
Os nazis eram uma amálgama de antigos políticos, de fervorosos prussianos e de gangsters.
Os nazis eram uma amálgama de antigos políticos, de fervorosos prussianos e de gangsters.
Quando esse grupo tão diverso se
confrontou com o Velho Mundo, aristocrata, o que aconteceu?
Os primeiros ganharam e os
segundos, que fizeram frente a comunistas, sindicatos e outras organizações,
cederam. O I Conde de Halifax, que liderou os negócios estrangeiros do Reino
Unido, confundiu Hitler com um empregado, quando este lhe abriu a porta do
carro. Calças e sapatos daqueles só podiam ser de um campónio, pensou. A sua
cegueira era social.
Na ocupação da Áustria,
sobressaem ainda a manipulação de líderes fracos, a diplomacia enganosa e a
realidade longe dos planos megalómanos. Com as devidas diferenças, parece que
estamos a comentar... o presente. Vivemos tempos estranhos?
Todas as épocas são perigosas.
A maior dificuldade, hoje, talvez seja a de
libertarmo-nos de um discurso único, o económico, que se tornou a cantiga
moderna. Quem diria que seria a China a defender o comércio livre face aos EUA?
Isso, sim, parece-me problemático.
E políticos imprevisíveis,
como Trump?
É preciso desconfiar da
imprevisibilidade. Hitler, por exemplo, foi muito previsível na sua ação, mas a
elite, com algumas exceções, não antecipou a ameaça. Devemos temer tanto uns
quanto outros. As políticas atuais são perfeitamente previsíveis, por exemplo.
Em França, vota-se à direita, ao centro ou à esquerda, e o resultado é o mesmo.
As variações são ridículas. É como se uma corrente mais forte passasse por cima
de todas as alternativas. Tenho consciência política há pelo menos 30 anos.
Desde então, só tenho visto, sob a proteção da lei, crescer a desigualdade e a
autoridade. A segurança sobrepõe-se à liberdade. O que mais conta é a eficácia.
Nasceu em maio de 1968. Antecipa
uma revolução?
Apenas sei que vivemos num mundo
que se apresenta como definitivo.
E
isso não existe, como a História nos ensina. Os povos levantarem-se contra as
desigualdades, isso parece-me uma inevitabilidade. Será amanhã? Daqui a dez ou
a 100 anos? Não sei. Mas as revoluções surgem regularmente. Será diferente no
futuro? Não vejo quem possa afirmá-lo.
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