quinta-feira, 7 de junho de 2018

Angola | OLHO POR OLHO E DENTE POR DENTE, CEGOS E DESDENTADOS


O vídeo mostra um agente do Serviço de Investigação Criminal (SIC) que executa selvaticamente um jovem já moribundo. Devo fazer uma declaração pública sobre a minha posição quanto às execuções sumárias levadas a cabo pelo governo (o SIC é organismo sob tutela do Ministério do Interior) sob pena de ficarmos todos no mesmo barco de quem defende os assassinatos sem dó nem piedade ao estilo faroeste.

Sedrick de Carvalho | Folha 8 | opinião

É preciso dar a cara e reafirmar a nossa posição pois vejo pessoas que até há pouco diziam defender o direito humano primário – a vida – dizerem agora que a vida de delinquentes não consta deste direito humano, pelo que o nosso silêncio poderá ser confundido como uma posição favorável às execuções.

E faço esta publicação porque percebi que são perigosamente muitas as opiniões favoráveis às execuções. Li comentários de pessoas que sem pejo assumem-se a favor das execuções, sendo que alguns só pedem ao governo para que mate à noite, discretamente. Mas esta modalidade também tem sido adoptada há tantos anos.

Ora, saibam que já fui assaltado tantas vezes que já perdi a conta. Não é exagero. Perdi mesmo. Cresci no Sambizanga, mas a primeira vez que fui assaltado com uma AK de cano cortado foi em Viana, na Caop-C. Depois seguiram-se outros assaltos com armas também, incluindo uma vez em que me taparam o rosto com a minha camisa, às 5H, no bairro Boa-Fé, também em Viana, e um deles manipulou a arma pronto para disparar, talvez porque eu tenha dificultado o assalto. Aproximavam-se outras pessoas que iam ao trabalho àquela hora, como eu, e largaram-me e foram também assalta-las.

Depois me ordenaram que corresse sem olhar para trás. Já estava descalço e sem a mochila cheia de documentos e dinheiro. Nesse dia quase me cortaram o pé – sempre o meu pé – porque com a atrapalhação os cordões amarraram-se e os ténis não saiam. Droga! Que sufoco.

Estou aqui a contar isso mas é uma realidade que muitos já vivemos e outros a conhecem por conviverem com quem já passou pelo mesmo. Estava com uma raiva brutal dos gatunos e quase meus matadores. Já fui assaltado por familiar, que me disse que quando está na via não há família, isso já no Sambizanga e à luz do dia.

Enquanto jornalista, sempre tive dificuldades para entrevistar familiares de alguém assassinado pelos criminosos de subsistência, e muitas vezes não entrevistei mesmo. Perguntar o quê que não sei a resposta de antemão? Uma mãe, pai ou irmã e irmão querem que se faça justiça, e em muitos casos para elas justiça é também matar quem matou.

Vamos então ao discurso da morte ao matador. Se formos por aí será preciso que se restitua a pena de morte. Assim, pessoas acusadas de crimes hediondos estarão, à partida, conscientes de que serão mortas.

Como fomos julgados e condenados por, em resumo, tentativa de golpe de Estado, então seriamos certamente mortos por termos estado a nos preparar para matar José Eduardo dos Santos e seus auxiliares, talvez cortar a cabeça do ex-governador de Luanda José Maria Ferraz, como ele mesmo disse no tribunal. Seriam 17 jovens condenados e mortos se tivéssemos a pena de morte.

Continuando, com a mesma pena de morte seria condenado José Eduardo dos Santos e outros membros do governo por ao longo de todos esses anos terem originado a morte de milhares de crianças anualmente por terem roubado o dinheiro público que era para combater a malária, por matarem Ricardo de Melo, Chacussanga, Nfulumpinga, Kamulingue e Cassule ou Hilbert Ganga. Só restaria saber como seríamos, eu, os meus 16 companheiros, José Eduardo dos Santos e seus auxiliares, mortos, pois ainda seria preciso decidir se se utilizaria uma cadeira eléctrica, injecção ou enforcamento no largo do 1.º de Maio. Nada disso desejo, nem mesmo para José.

As autoridades policiais não podem agir em desespero. Mas, como claramente há aceitação das suas acções por parte da população claramente desesperada pela constante criminalidade, vejamos então o exemplo do Brasil. Certamente é fácil conversarmos com brasileiros que estão no nosso país e perguntar o que estão achando da presença massiva de militares e polícias nas ruas a executarem os marginais, ou quem tem um simples corte de cabelo igual ao do cantor ou cantora do momento, com tatuagem, com calça rasgada ao joelho, trabalhador madrugador ou activistas como a Marielle Franco e o seu motorista. Tudo que se mexe.

Tenho conversado imenso com brasileiros. E, saibam, a insegurança tem aumentado cada vez que mais militares são postos nas ruas, cada vez que mais corpos aparecem ensanguentados nas esquinas. As pessoas passaram a ter também medo de polícias e militares. O clima de incerteza colectiva se instalou efectivamente quando era suposto o contrário. Oiçamos os brasileiros, da periferia e das grandes cidades do Brasil, de todas as classes sociais.

E falemos também da morte do corpo negro, pois há essa acepção também. Numa altura em que globalmente se está a discutir sobre a flagelação do corpo negro por parte do indivíduo branco, essas execuções feitas por negro ao negro não servem no combate contra as mortes brutais de negras e negros em vários países ocidentais mas com destaque aos EUA. E foi os EUA que o presidente João Lourenço apontou em entrevista à RFI para dizer que os polícias que matam não são responsabilizados. Mata quem para não ser responsabilizado? Corpo negro. Porque quando o indivíduo branco mata corpo branco imediatamente é preso, julgado e condenado. Ligue a tv e veja. E as palavras do presidente João são uma autêntica autorização para matar porque também nos EUA se mata corpo negro.

E justamente nessa semana que falei do sentimento justiceiro que leva adolescentes ao crime. Pois aqui vai mais um elemento. Crianças estão a assistir às nossas ovações adultas às execuções e estão a aprender que matar é um acto heróico, de justiça. Elas, crianças, não compreendem tão bem se é matar apenas bandidos, e assim vão crescendo com a visão faroestiana da morte para tranquilizar a família ou o bairro. Mas será preciso também a paz no prato mais do que a paz das armas, daí que ela também vai usar a mesma arma para levar comida em casa e assim complementar a paz.

No plano político, já que se aproximam as autarquias e visto estar claro que a sociedade pede por execuções sumárias ou, quiçá, que seja legislada a pena de morte, será autarca municipal quem prometer e matar mais bandidos. Não será espanto que uns façam campanha pela morte sumária e armação da população para auto-defesa. Depois, muitos anos depois, depois de tanto nos matarmos, vão pedir que se retire as armas das mãos da população como nos EUA actualmente. E já agora, também vão exigir que sejam mortos os agentes da polícia e militares que vendem as armas aos marginais?

Recomendo também aos que defendem as execuções que prestem atenção aos países onde ainda há pena de morte e vejam o número de pessoas inocentes que foram guilhotinadas. Também pode ser morte por guilhotina. Ou os países, como o Brasil, onde são responsabilizados criminalmente a partir dos 12 anos de idade.

Dente por dente e olho por olho… Só sei que por aí olhos serão arrancados com os dentes. E lembremos: depois de o assassino ser morto por execução sumária o assassino muda de lado. Um assassino assassinado.

E sim, sei que essas letras todas não terão tanto efeito em quem acha que o trabalho do SIC é matar. É apenas uma declaração de repúdio e desabafo.

Só espero que não matem também a mulher que filmou e divulgou o vídeo.

Nota: Artigo, com ligeiras adaptações do Folha 8, publicado no Facebook do autor.

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