quinta-feira, 19 de julho de 2018

Trump, NATO e "agressão russa"


Pepe Escobar [*]

A histeria está num tom agudo. Após a cimeira da NATO em Bruxelas, o declínio definitivo do ocidente foi declarado como um facto consumado quando o presidente Trump se mostrou pronto para encontrar o presidente Putin em Helsínquia. 

Foi o próprio Trump que estipulou querer conversar com Putin por trás de portas fechadas, cara-a-cara, sem quaisquer ajudantes e, em teoria, espontaneamente, depois de a reunião preparatória entre o secretário de Estado Mike Pompeo e ministro russo dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov ter sido cancelada. A cimeira terá lugar no velho Palácio Presidencial do século XIX em Helsínquia, uma antiga residência de imperadores russos.

Como um preâmbulo para Helsínquia, a espectacularblitzkrieg da NATO foi um show memorável; vários "líderes" em Bruxelas simplesmente não sabiam o que os atingira. Trump nem se deu ao trabalho de chegar a tempo para as sessões da manhã que lidavam com o possível acesso da Ucrânia e da Geórgia. Diplomatas confirmaram ao Asia Times que após a investida mordaz de Trump de "pagar mais ou não", a Ucrânia e a Geórgia foram convidadas a abandonar a sala porque o que seria discutido era estritamente uma questão interna da NATO.

Antecipando a cimeira, eurocratas entregaram-se a intermináveis lamentações sobre o "iliberalismo", desde Viktor Orban na Hungria ao sultão Erdogan na Turquia, assim como a choradeira pela "destruição da unidade europeia" (sim, é sempre culpa de Putin). Trump contudo não teria nada com isso. O presidente dos EUA confunde a UE com a NATO, interpretando a UE como rival, tal como a China, mas muito mais fraca. Quanto ao "acordo" dos EUA com a NATO, assim como com o NAFTA, isso é um mau negócio.

A NATO é "obsoleta" 

Trump está correcto em que sem os EUA a NATO é "obsoleta" – como se não existisse. Assim, essencialmente, o que ele fez em Bruxelas foi por a nu o caso da NATO como um esquema de extorsão, com Washington totalmente no direito de aumentar as apostas pela "protecção".

Mas "protecção" contra o que?

Desde o desmembramento da Jugoslávia, quando a NATO foi reposicionada no seu novo papel de imperialista humanitário global estilo Robocop, o registo da aliança é absolutamente deplorável.

Isso fica miseravelmente caracterizado pela perda de uma guerra sem fim no Afeganistão contra uns bandos de guerrilheiros pashtuns armados com réplicas de Kalashnikov; na transformação funcional da Líbia num terreno devastado por milícias e sede de refugiados destinados à Europa; e ter a NATO-Conselho de Cooperação Golfo perdido sua aposta numa galáxia de jihadistas e cripto-jihadistas na Síria, disfarçados como "rebeldes moderados".

A NATO lançou uma nova missão de treino no Iraque, não combatente, 15 anos após a operação Pavor e Choque. Sunitas, xiitas, yazidis e mesmo facções curdas não estão impressionados.

Há então a Iniciativa de Prontidão da NATO, a capacidade de deslocar 30 batalhões, 30 navios de guerra e 30 esquadrões aéreos dentro de 30 dias (ou menos) em 2020. Se não causar estragos através do Sul Global, esta iniciativa é supostamente criada para deter a "agressão russa".

Assim, depois de se interessar pela Guerra Global ao Terror, a NATO está essencialmente de volta à "ameaça" original; a iminente invasão russa da Europa Ocidental –- uma das noções mais ridículas que já houve. A declaração final em Bruxelas destaca-a, com ênfase especial nos itens 6 e 7.

O PIB somado de todos os membros da NATO é 12 vezes o da Rússia. E os gastos com defesa da NATO são seis vezes maiores do que os da Rússia. Ao contrário da incessante histeria polonesa e báltica, a Rússia não precisa "invadir" nada; O que preocupa o Kremlin, a longo prazo, é o bem-estar dos russos étnicos que vivem nas antigas repúblicas soviéticas.

A Rússia não pode ser uma ameaça e um parceiro energético 

E há a questão da política energética europeia – e isso é uma história completamente diferente.

Trump descreveu o gasoduto Nord Stream 2 como "inadequado", mas a sua afirmação de que a Alemanha obtém 70% da sua energia (via importações de gás natural) da Rússia pode ser facilmente desmascarada. A Alemanha obtém no máximo 9% da sua energia da Rússia. Em termos de fontes de energia da Alemanha, apenas 20% é gás natural. E menos de 40% do gás natural na Alemanha vem da Rússia. A Alemanha está rapidamente a transitar rumo à energia eólica, solar, da biomassa e hidráulica, as quais montam a 41% do total em 2018. E o objectivo é de 50% em 2030.

No entanto, Trump tem um ponto excelente quando, salientando que "a Alemanha é um país rico", ele quer saber por que os EUA deveriam "protegê-la contra a Rússia" quando os acordos de energia estão sobre a mesa. "Explique isso! Não pode ser explicado!", como consta ter dito quarta-feira ao secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg.

No fim, é claro, é tudo acerca de negócios. O que Trump realmente está a pretender é que a Alemanha importe shale gás dos EUA, três vezes mais caro do que o gás russo entregue por pipeline.

O ângulo da energia está ligado directamente à infindável novela dos 2% com gastos de defesa. A Alemanha actualmente gasta 1,2% do PIB com a NATO. Em 2024 supõe-se que atinja no máximo 1,5%. E isso é tudo. A maioria dos eleitores alemães, quer de facto que as tropas dos EUA fora do seu país .

Assim, o pedido de Trump de 4% do PIB em gastos de defesa para todos os membros da NATO nunca levantará voo. O seu tom agudo deveria ser considerado por aquilo que é: uma tentativa de "convite" para uma jornada de compras acrescida da UE e da NATO de hardware militar dos EUA.

Em suma, o factor chave é que a blitzkrieg de Trump em Bruxelas apresentou o seu caso. A Rússia não pode ser uma "ameaça" e um parceiro de energia confiável ao mesmo tempo. Por mais que os caniches da NATO possam estar aterrorizados com uma "agressão russa", os factos mostram que não vão aplicar o seu dinheiro na sua histeria retórica.

Está a ouvir agora? 

A "agressão russa" deveria ser um dos tópicos principais discutidos em Helsínquia. Na possibilidade – remota – de que Trump faça um acordo com Putin, a absurdo raison d'etre da NATO ficaria ainda mais desnuda.

Essa não é a agenda "profunda" dos Estados Unidos, é claro, daí a demonização ininterrupta da cimeira mesmo antes de ela acontecer. Além disso, para Trump, o jogador que aposta no Make-America-Great-Again, o resultado ideal seria sempre conseguir mais acordos de armas europeus para o complexo industrial-militar e de inteligência dos EUA.

Aterrorizados por Trump, nestes últimos dias diplomatas em Bruxelas transmitiram ao Asia Times temores quanto ao fim da NATO, o fim da Organização Mundial do Comércio, mesmo o fim da UE. Mas o facto que permanece é que a Europa é absolutamente periférica no Quadro Global.

Em Losing Military Supremacy , livro recente e inovador, o analista militar-naval Andrei Martyanov desconstrói em pormenor como "os Estados Unidos enfrentam duas superpotências nucleares e industriais, uma das quais dispõe de forças armadas de classe mundial. Se a aliança militar-política, em oposição à meramente económica, for formalizada entre a Rússia e a China, isso significará a derrocada final dos Estados Unidos como potência global".

O estado profundo dos EUA (seus burocratas influentes) pode revolver-se em perpétua negação, mas Trump – após muitas reuniões a portas fechadas com Henry Kissinger – pode ter entendido a "estratégia" suicida de Washington de simultaneamente antagonizar a Rússia e a China.

O discurso memorável de Putin em 1 de Março , como enfatiza Martyanov, foi um esforço para "coagir as elites da América se não à paz, pelo menos a alguma forma de sanidade, uma vez que elas estão completamente afastadas das realidades geopolíticas, militares e económicas das novas configurações de poder que agora emergiram no mundo". Estas elites podem não estar a ouvir, mas Trump parece indicar que ele está.

Quanto aos caniches da NATO, tudo o que podem fazer é assistir.

13/Julho/2018

[*] Jornalista.

O original encontra-se em http://www.atimes.com/article/trump-nato-and-russian-aggression/ 

Na foto: Jantar de ministros dos negócios estrangeiros durante a cimeira da NATO em Bruxelas – 11/7/2018. Reuniram-se para discutir a Rússia, o Iraque e o Afeganistão | Foto AFP / Yves Herman.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

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