Novo livro, gigantesco e
aterrorizante, sugere que não seremos capazes de deter a devastação até que
nossos descendentes alimentem-se de insetos e bebam urina reciclada
Nathaniel Rich | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho
Os escritores gostam de se
autoelogiar imaginando para seu trabalho um “leitor ideal”, uma presença
querubina dotada de generosidade infinita, da simpatia de um pai e da
sabedoria, bem, dos próprios autores. Em Carbon Ideologies (Ideologias de
Carbono), William T. Vollmann imagina para si mesmo o oposto: um leitor
barbaramente hostil que zomba de seus argumentos, ridiculariza sua debilidade
mental, desdenha suas patéticas tentativas até a ingratidão. Vollmann não pode
culpar esse leitor, a quem se dirige regularmente no decorrer de Ideologias
de Carbono, porque ela vive no futuro, sob circunstâncias radicalmente
diferentes – habitando “um planeta mais quente, mais perigoso e diminuído
biologicamente”. Ele a imagina virando as páginas de sua obra sobre mudanças
climáticas dentro dos escuros recessos de uma caverna subterrânea onde procurou
abrigo do calor insuportável; pragas, secas e inundações; bolas de fogo de
metano atravessando oceanos ferventes. Como o solo é radioativo, ela sobrevive
de insetos e de urina reciclada, e olha com desprezo implacável seus
ancestrais, que, como o autor lhe diz, “desfrutamos do mundo que possuíamos e
merecemos o mundo que deixamos”.
Ideologias de Carbono é um
trabalho único publicado em duas partes, No Immediate Danger (Nenhum
Perigo Imediato) e No Good Alternative (Nenhuma Alternativa
Boa). A bifurcação deve-se à insistência do exausto editor de Vollmann e
aos limites da moderna encadernação. De todos os escritores em atividade hoje,
Volmann deve ser o mais livre:
ele escreve ficção, ensaios, monografias, críticas, memórias e história,
geralmente misturando várias formas de uma só vez, sobre temas tão diversos
quanto teatro
Nô japonês, passeios
de trem, e a guerra
de Nez Perce, dilatando-os até a extensão que lhe convier.
Como acontece frequentemente com
Vollmann, décadas de atrito com seus editores respingam nas páginas do
livro. Ideologias de Carbonocomeça com a confissão de que o manuscrito
original era “várias vezes mais longo do que o máximo estipulado por contrato”;
depois de “ansiosas negociações”, seu editor “finalmente concordou em
satisfazer-me mais uma vez”. Não seu editor de não-ficção – do qual ele se
afastou depois de receber uma proposta de adiantamento inferior à quantia que
já gastara em pesquisa –, mas seu editor de ficção. (“Espero sinceramente que
algum dia tudo isso valha a pena para você”, escreve ele em amoroso
reconhecimento.) A editora Viking manteve a linha até as notas finais, que
chegam a 129 mil palavras e podem ser examinadas online ou no arquivo de
Vollmann na Ohio State University.
As 1.268 páginas que restam são
tão gloriosa e loucamente inclassificáveis quanto a maioria do trabalho de
Vollmann. A analogia mais próxima é Rising
Up and Rising Down, seu tratado de 3300 páginas sobre violência, com sete
volumes, que Vollmann chama de texto de companhia. Ideologias de Carbono é
sobre outro tipo de violência, a violência infligida pela produção de carvão,
gás natural, petróleo e energia nuclear. As vítimas dessas ideologias de
carbono são não somente as espécies da fauna e da flora que serão extintas, os
frágeis ecossistemas que serão destruídos, e as gerações futuras de humanos que
terão de sobreviver de insetos. As vítimas somos nós – nós que estamos vivendo
agora e que negamos, em vários níveis, o tamanho do dano que estamos causando a
nós mesmos. Ideologias de carbono é uma crônica da automutilação.
É também um almanaque sobre o uso
global de energia. O volume inicial abre com um manual cheio de tabelas, listas
e dados (“garanto que você não perderá nada pulando à página 217” ) e conclui com 80 páginas
de definições, unidades e conversões (“Os leitores devem sentir-se livres para
pular essa seção”). É um diário de viagem a paisagens naturais destruídas pela
produção de energia, principalmente Fukushima (nuclear), West Virginia
(carvão), Colorado (gás natural) e Emirados Árabes Unidos (petróleo). É um
trabalho de história oral, que contém dezenas de entrevistas com operários que
trabalham ou vivem ao lado de reatores nucleares, cavernas e refinarias de
petróleo, juntos nos instantâneos do próprio Vollmann. E é um trabalho piedoso
de antropologia, que tenta dar sentido à falta de capacidade do ser humano para
pesar a catástrofe futura contra o conforto de curto prazo. Ideologias de
Carbono é mais fascinante, contudo, pelo que não é: uma polêmica.
Praticamente todos os livros
sobre mudanças climáticas que foram escritos para o público em geral contêm uma
mensagem de esperança, e frequentemente uma chamada para
a ação. Vollmann declara desde o início que não irá oferecer nenhuma solução,
porque não acredita ser possível: “Nada pode ser feito para salvar [o mundo
como o conhecemos]; portanto, nada precisa ser feito”. Isso faz de Ideologias
de Carbono, com todos os seus méritos e falhas, um dos livros mais honestos já
escritos sobre mudanças climáticas. O empreendimento de Vollmann está na
vanguarda da segunda onda de literatura climática, livros escritos não para
diagnosticar ou resolver o problema, mas para lidar com suas consequências
morais.
É também um projeto profundamente
idiossincrático: o idioleto de Vollmann é obsessivo, meticuloso, inquieto,
hiperobservador e orgulhosamente amador. Os dados que ele apresenta são às
vezes reveladores. Um sem-teto nos Estados Unidos usa duas vezes mais energia
que o cidadão médio global; 61% da energia gerada nos EUA em 2012 “não
realizaram nenhum trabalho útil”; de 1980 a 2011, o uso global de energia
praticamente triplicou. Em outros lugares, os dados são impossivelmente arcanos
(“Desperdício de Energia por Máquinas-Ferramentas”, em “Dedução de máquinas
inativas”) ou desafiadoramente não-científicos (“Sinto muito por não conseguir
tornar minha tabela simples, completa ou precisa”). Seu insaciável apetite por
detalhes produz tanto trivialidades irrelevantes (“Embarcando no Super Limitado
Hitachi Express, que também era conhecido como o Super Hitachi 23 Limited
Express”) como retratos magistrais de paisagens profanadas por escavações e
mais escavações — ou, no caso de Virgínia Ocidental, montanhas com cumes
extirpados.
A seção sobre Fukushima é
especialmente incomum em sua evocação de uma paisagem costeira vibrando com raios
gama. Vollmann respira um vento fresco “cujo grau de contaminação particulada
era, claro, desconhecida”, ouve numa rua silenciosa, à noite, o grunhido de um
javali radioativo, e anda sobre cacos de vidro de uma loja de roupas
abandonada, anunciando uma liquidação com 50% de desconto e povoada por
manequins sem cabeça. Embora fissão nuclear não produza emissão de gases de
efeito estufa, seus horrores passam a representar os das mudanças climáticas,
um vasto terror invisível para os vitimados por ela – pelo menos a curto prazo.
Embora Vollmann refira-se aos capítulos de Fukushima quando escreve que seu
projeto é apoiado em “pouco mais que cegueira, desconforto, desamparo e
ignorância”, ele está descrevendo todas as Ideologias de Carbono.
Essas qualidades atingem sua mais
completa expressão nas declarações feitas por funcionários do governo ou das
corporações contra alertas de ameaça ambiental. Em Fukushima, objetos na zona
de precipitação não são radioativados, mas “contaminados”. Em Virginia Ocidental ,
as montanhas não têm seus cumes arrancados, mas garantem “remoção de
sobrecarga”. A extração de petróleo por explosão de rochas (“Fracking”) “é mais
segura e tem impacto ambiental menor do que dirigir um carro”, alega um diretor
de marketing da Shale Crescent USA, e os mineiros de carvão, segundo o
presidente da Associação de Carvão de Virginia Ocidental, “são os maiores
ambientalistas práticos do mundo”. Vollmann registra essas insanidades ao lado
de observações de personagens como Buda (“As pessoas são ignorantes e
egoístas”), Edmund Spenser (“Pior é o perigo escondido que o descrito”), e
Loren Eiseley (“Assim como os instintos podem falhar num animal submetido a
mudança nas condições ambientais, as crenças culturais do homem podem ser
inadequadas para enfrentar uma nova situação”). Vollmann anseia por provar que
Buda, Spenser e Eiseley estão errados e submete questões-relâmpago a todos os
executivos do setor que encontra; mas, fora do Japão, quase ninguém em posição
de autoridade concorda em comentar.
A maioria das longas entrevistas
que dominam Ideologias de Carbonosão, assim, realizadas com homens que
trabalham em cavernas ou cavas para produzir a energia que desperdiçamos. Se
“nada é mais medonho que ver a ignorância em ação” (Goethe), esses encontros
são um pesadelo desperto. Trabalhadores de refinaria de petróleo no México,
mineiros de carvão em Bangladesh, e operadores de fracking no Colorado estão
unidos em sua grande apreensão pelos danos ambientais que seu trabalho causa,
para não mencionar os fatos básicos das mudanças climáticas e suas
ramificações. “A maioria de suas respostas foram calmas e brandas”, relata
Vollmann, embora isso não o impeça de registrá-las longamente, quase
textualmente. Às vezes suas perguntas provocam uma joia de lirismo acidental,
como quando o trabalhador metalúrgico indiano de uma companhia petrolífera dos
Emirados Árabes Unidos, diante da pergunta sobre sua opinião a respeito das
mudanças climáticas, responde: “Agora um pouquinho bom; mas no futuro, muito
perigo”. Melhor, impossível.
Vollmann não culpa o metalúrgico
imigrante por sua complacência ou ignorância, é claro. Culpa a si mesmo –
frequente e profusamente. Parece deliciar-se especialmente em quantificar, em
cuidadosos detalhes, a energia que queima em atividades como escrever um
rascunho de Ideologias de Carbono, dobrar a esquina de seu hotel em Tóquio
para comprar uma bandeja de tonkatsu numa loja de conveniência e fazer um
milkshake para sua filha. Essas passagens são tão instrutivas quanto tediosas.
Elas dramatizam não só a obstinação de nossa dependência de combustíveis
fósseis, mas a impossibilidade de compreender de verdade nossa própria culpa
pelo destino do planeta. Com que frequência você para pra pensar sobre a
quantidade de carvão queimado cada vez que pega um elevador, carrega seu
telefone ou usa seu liquidificador? Mesmo atos extravagantes de autonegação são
impotentes diante de consumo tão perdulário. Vollmann compara nossos mais
ambiciosos esforços para conservar energia a alguém que faz dieta e continua comendo
sua dose diária de doces e sorvetes … apesar do louvável fato de ter comido
brócolis no almoço da quinta-feira passada.
A fome global por doces é mais
voraz a cada ano que passa. Quaisquer que sejam as economias de bom samaritano
que possamos fazer, melhorando a infraestrutura ou pedalando para o trabalho,
elas serão superadas pela ampliação do sistema de consumo nas próximas décadas.
Cerca de um terço da população humana cozinha suas refeições com biomassa –
madeira, carvão, restos agrícolas e esterco animal. Quase um bilhão de pessoas
não têm acesso à eletricidade. Não será preciso que toda a Índia adote “o modo
de vida norte-americano” para provocar aumentos gigantescos nas emissões
globais. A ascensão da Índia ao modo de vida da Namíbia será suficiente.
Os problema da demanda, do
crescimento, da complexidade, do custo-benefício, da indústria; o problema
político, o do atraso geracional, da negação – Vollmann cataloga
escrupulosamente todos os principais problemas não resolvidos que contribuem
para o colosso das mudanças climáticas. “Qualquer ‘solução’ que eu tivesse
proposto em 2017” ,
escreve, “teria sido adiada até que os oceanos subissem mais dois centímetros!”
(O título do capítulo final, “Um raio de esperança”, deve ser lido
sarcasticamente). Nem os seis anos de viagens pelo mundo tabulando dados e
entrevistando especialistas mudaram qualquer aspecto essencial do seu
pensamento sobre o assunto. O leitor que começa a ler Ideologias de
Carbono sem esperança irá terminá-lo sem esperança. Também o leitor
esperançoso.
Mas há outros tipos de leitores –
aqueles que não buscam conselhos ou encorajamento ou conforto. Aqueles que
estão fartos de cruzadas de desonestidade baseadas em otimismo. Aqueles
que procuram entender a natureza humana e a si mesmos. Porque o verdadeiro
assunto de Vollmann é a natureza humana – e é o que deve ser. A história das
mudanças climáticas depende do comportamento humano, não da geofísica. Vollmann
procura entender como “pudemos não apenas sustentar, mas acelerar o aumento dos
níveis de carbono atmosférico, ao mesmo tempo em que expressamos confusão,
impotência e ressentimento”. Por que assumimos riscos tão insanos? Não
poderíamos ter nos comportado de nenhum outro modo? Podemos nos comportar de
algum outro modo? Se não podemos, a que conclusões podemos chegar sobre nossas
vidas e nosso futuro? Vollmann admite que até mesmo ele esquivou-se
completamente de compreender os danos que causamos. “Nunca me odiei
suficientemente para permitir a punição do pleno entendimento”, escreve ele. “Como
poderia? Ninguém poderia.” Ele está certo, embora livros como o Ideologias
de Carbono nos aproximem disso.
A atmosfera do planeta mudará,
mas não a natureza humana. O insuficiente desejo de Vollmann é que os leitores
futuros compreendam que teriam cometido os mesmos erros que cometemos. Isso
pode parecer uma humilde ambição para um projeto dessa amplitude, mas só se
você toma Ideologias de Carbono, erroneamente, como um trabalho de
ativismo. O projeto de Vollmann não é absolutamente tão convencional. Sua
“carta ao futuro” é uma mensagem de suicídio. Ele não busca uma intervenção –
apenas aceitação. Se não o perdão, pelo menos aceitação.
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