quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Aquecimento global, visão sem esperanças


Novo livro, gigantesco e aterrorizante, sugere que não seremos capazes de deter a devastação até que nossos descendentes alimentem-se de insetos e bebam urina reciclada

Nathaniel Rich | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho

Os escritores gostam de se autoelogiar imaginando para seu trabalho um “leitor ideal”, uma presença querubina dotada de generosidade infinita, da simpatia de um pai e da sabedoria, bem, dos próprios autores. Em Carbon Ideologies (Ideologias de Carbono), William T. Vollmann imagina para si mesmo o oposto: um leitor barbaramente hostil que zomba de seus argumentos, ridiculariza sua debilidade mental, desdenha suas patéticas tentativas até a ingratidão. Vollmann não pode culpar esse leitor, a quem se dirige regularmente no decorrer de Ideologias de Carbono, porque ela vive no futuro, sob circunstâncias radicalmente diferentes – habitando “um planeta mais quente, mais perigoso e diminuído biologicamente”. Ele a imagina virando as páginas de sua obra sobre mudanças climáticas dentro dos escuros recessos de uma caverna subterrânea onde procurou abrigo do calor insuportável; pragas, secas e inundações; bolas de fogo de metano atravessando oceanos ferventes. Como o solo é radioativo, ela sobrevive de insetos e de urina reciclada, e olha com desprezo implacável seus ancestrais, que, como o autor lhe diz, “desfrutamos do mundo que possuíamos e merecemos o mundo que deixamos”.

Ideologias de Carbono é um trabalho único publicado em duas partes, No Immediate Danger (Nenhum Perigo Imediato) e No Good Alternative (Nenhuma Alternativa Boa). A bifurcação deve-se à insistência do exausto editor de Vollmann e aos limites da moderna encadernação. De todos os escritores em atividade hoje, Volmann deve ser o mais livre: ele escreve ficção, ensaios, monografias, críticas, memórias e história, geralmente misturando várias formas de uma só vez, sobre temas tão diversos quanto teatro Nô japonês, passeios de trem, e a guerra de Nez Perce, dilatando-os até a extensão que lhe convier.

Como acontece frequentemente com Vollmann, décadas de atrito com seus editores respingam nas páginas do livro. Ideologias de Carbonocomeça com a confissão de que o manuscrito original era “várias vezes mais longo do que o máximo estipulado por contrato”; depois de “ansiosas negociações”, seu editor “finalmente concordou em satisfazer-me mais uma vez”. Não seu editor de não-ficção – do qual ele se afastou depois de receber uma proposta de adiantamento inferior à quantia que já gastara em pesquisa –, mas seu editor de ficção. (“Espero sinceramente que algum dia tudo isso valha a pena para você”, escreve ele em amoroso reconhecimento.) A editora Viking manteve a linha até as notas finais, que chegam a 129 mil palavras e podem ser examinadas online ou no arquivo de Vollmann na Ohio State University.

As 1.268 páginas que restam são tão gloriosa e loucamente inclassificáveis quanto a maioria do trabalho de Vollmann. A analogia mais próxima é Rising Up and Rising Down, seu tratado de 3300 páginas sobre violência, com sete volumes, que Vollmann chama de texto de companhia. Ideologias de Carbono é sobre outro tipo de violência, a violência infligida pela produção de carvão, gás natural, petróleo e energia nuclear. As vítimas dessas ideologias de carbono são não somente as espécies da fauna e da flora que serão extintas, os frágeis ecossistemas que serão destruídos, e as gerações futuras de humanos que terão de sobreviver de insetos. As vítimas somos nós – nós que estamos vivendo agora e que negamos, em vários níveis, o tamanho do dano que estamos causando a nós mesmos. Ideologias de carbono é uma crônica da automutilação.

É também um almanaque sobre o uso global de energia. O volume inicial abre com um manual cheio de tabelas, listas e dados (“garanto que você não perderá nada pulando à página 217”) e conclui com 80 páginas de definições, unidades e conversões (“Os leitores devem sentir-se livres para pular essa seção”). É um diário de viagem a paisagens naturais destruídas pela produção de energia, principalmente Fukushima (nuclear), West Virginia (carvão), Colorado (gás natural) e Emirados Árabes Unidos (petróleo). É um trabalho de história oral, que contém dezenas de entrevistas com operários que trabalham ou vivem ao lado de reatores nucleares, cavernas e refinarias de petróleo, juntos nos instantâneos do próprio Vollmann. E é um trabalho piedoso de antropologia, que tenta dar sentido à falta de capacidade do ser humano para pesar a catástrofe futura contra o conforto de curto prazo. Ideologias de Carbono é mais fascinante, contudo, pelo que não é: uma polêmica.

Praticamente todos os livros sobre mudanças climáticas que foram escritos para o público em geral contêm uma mensagem de esperança, e frequentemente uma chamada para a ação. Vollmann declara desde o início que não irá oferecer nenhuma solução, porque não acredita ser possível: “Nada pode ser feito para salvar [o mundo como o conhecemos]; portanto, nada precisa ser feito”. Isso faz de Ideologias de Carbono, com todos os seus méritos e falhas, um dos livros mais honestos já escritos sobre mudanças climáticas. O empreendimento de Vollmann está na vanguarda da segunda onda de literatura climática, livros escritos não para diagnosticar ou resolver o problema, mas para lidar com suas consequências morais.

É também um projeto profundamente idiossincrático: o idioleto de Vollmann é obsessivo, meticuloso, inquieto, hiperobservador e orgulhosamente amador. Os dados que ele apresenta são às vezes reveladores. Um sem-teto nos Estados Unidos usa duas vezes mais energia que o cidadão médio global; 61% da energia gerada nos EUA em 2012 “não realizaram nenhum trabalho útil”; de 1980 a 2011, o uso global de energia praticamente triplicou. Em outros lugares, os dados são impossivelmente arcanos (“Desperdício de Energia por Máquinas-Ferramentas”, em “Dedução de máquinas inativas”) ou desafiadoramente não-científicos (“Sinto muito por não conseguir tornar minha tabela simples, completa ou precisa”). Seu insaciável apetite por detalhes produz tanto trivialidades irrelevantes (“Embarcando no Super Limitado Hitachi Express, que também era conhecido como o Super Hitachi 23 Limited Express”) como retratos magistrais de paisagens profanadas por escavações e mais escavações — ou, no caso de Virgínia Ocidental, montanhas com cumes extirpados.

A seção sobre Fukushima é especialmente incomum em sua evocação de uma paisagem costeira vibrando com raios gama. Vollmann respira um vento fresco “cujo grau de contaminação particulada era, claro, desconhecida”, ouve numa rua silenciosa, à noite, o grunhido de um javali radioativo, e anda sobre cacos de vidro de uma loja de roupas abandonada, anunciando uma liquidação com 50% de desconto e povoada por manequins sem cabeça. Embora fissão nuclear não produza emissão de gases de efeito estufa, seus horrores passam a representar os das mudanças climáticas, um vasto terror invisível para os vitimados por ela – pelo menos a curto prazo. Embora Vollmann refira-se aos capítulos de Fukushima quando escreve que seu projeto é apoiado em “pouco mais que cegueira, desconforto, desamparo e ignorância”, ele está descrevendo todas as Ideologias de Carbono.

Essas qualidades atingem sua mais completa expressão nas declarações feitas por funcionários do governo ou das corporações contra alertas de ameaça ambiental. Em Fukushima, objetos na zona de precipitação não são radioativados, mas “contaminados”. Em Virginia Ocidental, as montanhas não têm seus cumes arrancados, mas garantem “remoção de sobrecarga”. A extração de petróleo por explosão de rochas (“Fracking”) “é mais segura e tem impacto ambiental menor do que dirigir um carro”, alega um diretor de marketing da Shale Crescent USA, e os mineiros de carvão, segundo o presidente da Associação de Carvão de Virginia Ocidental, “são os maiores ambientalistas práticos do mundo”. Vollmann registra essas insanidades ao lado de observações de personagens como Buda (“As pessoas são ignorantes e egoístas”), Edmund Spenser (“Pior é o perigo escondido que o descrito”), e Loren Eiseley (“Assim como os instintos podem falhar num animal submetido a mudança nas condições ambientais, as crenças culturais do homem podem ser inadequadas para enfrentar uma nova situação”). Vollmann anseia por provar que Buda, Spenser e Eiseley estão errados e submete questões-relâmpago a todos os executivos do setor que encontra; mas, fora do Japão, quase ninguém em posição de autoridade concorda em comentar.

A maioria das longas entrevistas que dominam Ideologias de Carbonosão, assim, realizadas com homens que trabalham em cavernas ou cavas para produzir a energia que desperdiçamos. Se “nada é mais medonho que ver a ignorância em ação” (Goethe), esses encontros são um pesadelo desperto. Trabalhadores de refinaria de petróleo no México, mineiros de carvão em Bangladesh, e operadores de fracking no Colorado estão unidos em sua grande apreensão pelos danos ambientais que seu trabalho causa, para não mencionar os fatos básicos das mudanças climáticas e suas ramificações. “A maioria de suas respostas foram calmas e brandas”, relata Vollmann, embora isso não o impeça de registrá-las longamente, quase textualmente. Às vezes suas perguntas provocam uma joia de lirismo acidental, como quando o trabalhador metalúrgico indiano de uma companhia petrolífera dos Emirados Árabes Unidos, diante da pergunta sobre sua opinião a respeito das mudanças climáticas, responde: “Agora um pouquinho bom; mas no futuro, muito perigo”. Melhor, impossível.

Vollmann não culpa o metalúrgico imigrante por sua complacência ou ignorância, é claro. Culpa a si mesmo – frequente e profusamente. Parece deliciar-se especialmente em quantificar, em cuidadosos detalhes, a energia que queima em atividades como escrever um rascunho de Ideologias de Carbono, dobrar a esquina de seu hotel em Tóquio para comprar uma bandeja de tonkatsu numa loja de conveniência e fazer um milkshake para sua filha. Essas passagens são tão instrutivas quanto tediosas. Elas dramatizam não só a obstinação de nossa dependência de combustíveis fósseis, mas a impossibilidade de compreender de verdade nossa própria culpa pelo destino do planeta. Com que frequência você para pra pensar sobre a quantidade de carvão queimado cada vez que pega um elevador, carrega seu telefone ou usa seu liquidificador? Mesmo atos extravagantes de autonegação são impotentes diante de consumo tão perdulário. Vollmann compara nossos mais ambiciosos esforços para conservar energia a alguém que faz dieta e continua comendo sua dose diária de doces e sorvetes … apesar do louvável fato de ter comido brócolis no almoço da quinta-feira passada.

A fome global por doces é mais voraz a cada ano que passa. Quaisquer que sejam as economias de bom samaritano que possamos fazer, melhorando a infraestrutura ou pedalando para o trabalho, elas serão superadas pela ampliação do sistema de consumo nas próximas décadas. Cerca de um terço da população humana cozinha suas refeições com biomassa – madeira, carvão, restos agrícolas e esterco animal. Quase um bilhão de pessoas não têm acesso à eletricidade. Não será preciso que toda a Índia adote “o modo de vida norte-americano” para provocar aumentos gigantescos nas emissões globais. A ascensão da Índia ao modo de vida da Namíbia será suficiente.

Os problema da demanda, do crescimento, da complexidade, do custo-benefício, da indústria; o problema político, o do atraso geracional, da negação – Vollmann cataloga escrupulosamente todos os principais problemas não resolvidos que contribuem para o colosso das mudanças climáticas. “Qualquer ‘solução’ que eu tivesse proposto em 2017”, escreve, “teria sido adiada até que os oceanos subissem mais dois centímetros!” (O título do capítulo final, “Um raio de esperança”, deve ser lido sarcasticamente). Nem os seis anos de viagens pelo mundo tabulando dados e entrevistando especialistas mudaram qualquer aspecto essencial do seu pensamento sobre o assunto. O leitor que começa a ler Ideologias de Carbono sem esperança irá terminá-lo sem esperança. Também o leitor esperançoso.

Mas há outros tipos de leitores – aqueles que não buscam conselhos ou encorajamento ou conforto. Aqueles que estão fartos de cruzadas de desonestidade baseadas em otimismo. Aqueles que procuram entender a natureza humana e a si mesmos. Porque o verdadeiro assunto de Vollmann é a natureza humana – e é o que deve ser. A história das mudanças climáticas depende do comportamento humano, não da geofísica. Vollmann procura entender como “pudemos não apenas sustentar, mas acelerar o aumento dos níveis de carbono atmosférico, ao mesmo tempo em que expressamos confusão, impotência e ressentimento”. Por que assumimos riscos tão insanos? Não poderíamos ter nos comportado de nenhum outro modo? Podemos nos comportar de algum outro modo? Se não podemos, a que conclusões podemos chegar sobre nossas vidas e nosso futuro? Vollmann admite que até mesmo ele esquivou-se completamente de compreender os danos que causamos. “Nunca me odiei suficientemente para permitir a punição do pleno entendimento”, escreve ele. “Como poderia? Ninguém poderia.” Ele está certo, embora livros como o Ideologias de Carbono nos aproximem disso.

A atmosfera do planeta mudará, mas não a natureza humana. O insuficiente desejo de Vollmann é que os leitores futuros compreendam que teriam cometido os mesmos erros que cometemos. Isso pode parecer uma humilde ambição para um projeto dessa amplitude, mas só se você toma Ideologias de Carbono, erroneamente, como um trabalho de ativismo. O projeto de Vollmann não é absolutamente tão convencional. Sua “carta ao futuro” é uma mensagem de suicídio. Ele não busca uma intervenção – apenas aceitação. Se não o perdão, pelo menos aceitação.

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