quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Myanmar | Jornalistas da Reuters condenados a sete anos de prisão por noticiar a verdade


Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram ontem condenados a sete anos de prisão no Myanmar por posse de documentos classificados. Os dois jornalistas da Reuters encontravam-se detidos desde Dezembro, altura em que investigavam o homicídio de 10 indivíduos de etnia Rohingya.

Os dois jornalistas da Reuters detidos desde Dezembro no Myanmar foram ontem condenados a sete anos de prisão. Wa Lone, de 32 anos, e Kyaw Soe Oo, de 28 anos, incorriam numa pena de até 14 anos de cadeia. Na leitura da sentença, o juiz Ye Lwin acusou os repórteres – que se encontravam a investigar o massacre de 10 indivíduos Rohingya por forças de segurança do Myanmar – de não se terem comportado como “jornalistas normais”. O veredicto tem sido fortemente condenado desde ontem como um ataque à liberdade de imprensa por organizações como a Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), Human Rights Watch e pelo próprio director da Reuters, que denunciou a condenação como “um enorme passo atrás na transição do Myanmar para uma democracia”. Em Macau, José Carlos Matias, presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM), disse ao PONTO FINAL que a condenação é um “sinal bastante preocupante”.

“Eu não tenho medo. Eu não fiz nada de errado. Eu acredito em justiça, democracia e liberdade”, disse Wa Lone, após a leitura da sentença, citado pela BBC. Durante o julgamento, a defesa argumentou que os dois jornalistas, cidadãos do Myanmar, foram enganados pela polícia. A 12 de Dezembro do ano passado, Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram convidados para se encontrarem com agentes policiais que lhes entregaram documentos que os dois jornalistas não chegaram a consultar por terem sido imediatamente detidos. Na altura, os repórteres encontravam-se a investigar o massacre de 10 Rohingya no estado de Rakhine, no Myanmar, por soldados daquele país, posteriormente confirmado pelas autoridades. A investigação foi entretanto publicada pela Reuters com o título “Massacre in Myanmar”, em Fevereiro deste ano.

Numa das sessões do julgamento – considerado internacionalmente como um teste falhado à liberdade de imprensa daquele país – Moe Yan Naing, capitão da polícia, testemunhou que um superior seu ordenou que os documentos fossem utilizados para incriminar Wa Lone. “Eu estou a revelar a verdade porque um polícia de qualquer posição deve manter a sua integridade. É verdade que eles foram incriminados”, disse aos jornalistas o capitão, que acabou condenado a um ano de prisão na sequência do seu testemunho por violação do código disciplinar da polícia.

Segundo o The New York Times, uma das testemunhas arroladas pela acusação, um agente da polícia, testemunhou ter queimado as suas notas da detenção dos jornalistas. Um outro polícia afirmou que os documentos confidenciais que estiveram na origem da detenção tinham já sido publicados num jornal. No entanto, estas confissões não foram suficientes para demover o juiz que determinou que os dois jornalistas violaram o Official Secrets Act, uma lei da era colonial. “[Os jornalistas] tentaram muitas vezes pôr as suas mãos em documentos secretos e passá-los a outros. Eles não se comportaram como jornalistas normais”, declarou o juiz Ye Lwin, de acordo com o The Guardian.

À saída do tribunal, Khin Maung Zaw, advogado de defesa, declarou que o veredicto é “mau para o nosso país”, e que iria “tomar qualquer opção para conseguir a sua libertação imediata”. Desde que foram detidos, os dois jornalistas apenas estiveram com as suas famílias durante visitas à prisão e durante as audiências em tribunal. Segundo a Reuters, Kyaw Soe Oo é pai de uma menina de três anos e Wa Lone foi pai pela primeira vez há um mês.

“ESTE É UM ENORME PASSO ATRÁS NA TRANSIÇÃO DO MYANMAR PARA UMA DEMOCRACIA”

“Hoje é um dia triste para o Myanmar, para os jornalistas da Reuters Wa Lone e Kyaw Soe Oo e para a imprensa em todo o lado”, afirmou Stephen J Adler, director da Reuters, em comunicado. Adler disse que a agência iria avaliar como proceder nos próximos dias, incluindo se iria procurar assistência no palco internacional. “Estes dois repórteres admiráveis já passaram nove meses em prisão sob falsas acusações pensadas para silenciar a sua investigação e intimidar a imprensa”, declarou o director da Reuters. “Este é um enorme passo atrás na transição do Myanmar para uma democracia”.

A FIJ afirmou que Wa Lone e Kyaw Soe Oo “estavam a fazer nada mais do que o que bons repórteres fazem – investigar abusos, homicídios e violações contra civis por parte do poderoso exército do país”. “Esta é uma falha dos tribunais e do Governo do Myanmar, com um sistema judicial a ser manipulado para punir jornalistas e enviar um aviso terrível a outros repórteres que a liberdade de imprensa vem com um preço muito, muito pesado”, declarou a FIJ. Também Shawn Crispin, representante do Sudeste Asiático do Comité para a Protecção dos Jornalistas, condenou a sentença como uma “farsa da justiça que irá definir o Myanmar como um pária anti-democrata enquanto eles estiverem injustamente atrás das grades”.

“ISTO MOSTRA AO MUNDO QUE NÃO EXISTE LIBERDADE DE IMPRENSA NO MYANMAR”

A Associação de Jornalistas do Myanmar afirmou estar “bastante desapontada” com a sentença. “É uma perturbação para a liberdade de imprensa e primado da lei e também uma ameaça e intimidação para todos os media. Isto mostra ao mundo que não existe liberdade de imprensa no Myanmar, que está a andar na Plataforma da Democracia”, declarou. Em Hong Kong, a sentença foi denunciada pelo Foreign Correspondents Club. “O veredicto tem ramificações abrangentes para os jornalistas no Myanmar numa altura em que a liberdade de imprensa está sob ataque por toda a Ásia. Os repórteres no Myanmar continuam a enfrentar acusações por notícias de interesse público, bem como pressão para se auto-censurarem”, afirmou o Foreign Correspondents Club.

Ao PONTO FINAL, José Carlos Matias afirmou que a condenação é um “sinal bastante preocupante”. “Tudo leva a crer que estes jornalistas estavam a fazer o seu trabalho e estavam a trabalhar sobre uma matéria de interesse público e relevante que é a situação dos Rohingya”, declarou o presidente da AIPIM. “É um sinal preocupante e pode ser visto de uma forma mais global e, independente dos aspectos específicos do caso em questão, de uma tendência preocupante a nível global relativamente à liberdade de imprensa e relativamente às condições que o jornalismo de investigação tem um pouco por todo o mundo”.

COMUNIDADE INTERNACIONAL APELA À LIBERTAÇÃO IMEDIATA E INCONDICIONAL DOS JORNALISTAS

Na Europa, o Serviço de Acção Externa da União Europeia apelou à libertação imediata e incondicional dos dois jornalistas, acusando a sentença de “prejudicar a liberdade dos media, o direito do público à informação e o desenvolvimento do primado do direito no Myanmar”. “A sua pena de prisão serve também para intimidar outros jornalistas que vão temer assédios e detenções ou acusações injustificadas simplesmente por fazerem o seu trabalho”, declarou a União Europeia.

Também a Human Rights Watch apelou à anulação do veredicto e à libertação imediata dos repórteres. “Estas condenações não escondem os horrores cometidos contra os Rohingya do mundo – simplesmente revelam o estado precário da liberdade de imprensa no país e a necessidade urgente de acção internacional para libertar estes jornalistas”, afirmou Brad Adams, director-executivo da divisão da Ásia da Human Rights Watch.

Tirana Hassan, directora de Resposta a Crises da Amnistia Internacional, afirmou que o veredicto condenou “dois homens inocentes a anos atrás das grades”, acusando-o de ser politicamente motivado. “Esta decisão politicamente motivada tem ramificações significativas para a liberdade de imprensa no Myanmar. Envia um duro aviso a outros jornalistas no país das consequências severas que os aguardam se olharem demasiado perto aos abusos do exército”, afirmou Hassan, pedindo a libertação “imediata e incondicional” dos jornalistas.  

Scott Chiang: “Seria inocente esperar um tribunal totalmente independente”

Esperar um sistema judicial independente no caso dos jornalistas da Reuters seria “inocente”, afirmou ao PONTO FINAL o activista Scott Chiang. “Esperar um sistema judicial inteiramente independente neste caso pode não ser uma expectativa muito realista. Seria inocente esperar um tribunal totalmente independente, especialmente quando estão em causa interesses considerados muito importantes para governar o país”, declarou o antigo presidente da Associação Novo Macau. “Este país ainda tem um longo caminho a percorrer até chegar ao tipo de democracia com que estamos familiarizados no Ocidente”, disse o pró-democrata.

Scott Chiang aponta que o jornalismo em todo o mundo tem estado em risco, incluindo em Macau, recordando que cinco meios de comunicação instruíram os seus jornalistas a realizarem uma cobertura positiva durante a passagem do tufão Hato. “Em Macau, a forma como o sistema funciona, em termos de controlo social, não é dizer directamente o que tens que fazer mas deixar-te perceber que tens que cooperar e é a isso que nós chamamos auto-censura”, disse o activista, acrescentando que “até agora tem resultado bem para eles”. “Mas agora eles podem insistir mais ao introduzir novos requerimentos para poderem instruir ou desencorajar acções que não queiram”.

Em relação à criminalização do rumor falso, prevista na proposta de lei de bases da protecção civil – medida que motivou já uma carta da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau ao secretário para a Segurança – Scott Chiang diz não ver a necessidade deste desenvolvimento. “Provavelmente, eles estão na linha da frente em relação a Hong Kong e, após termos este tipo de legislação, Hong Kong pode seguir a mesma linha. Mesmo em Macau, onde temos este tipo de controlo social, não vejo necessidade de uma ferramenta extra para eles cumprirem o que querem”, declarou.

Jorge Menezes: “O direito à liberdade de imprensa” está garantido

De acordo com o ordenamento jurídico de Macau, a posse de documentos confidenciais não levaria à acusação ou detenção de jornalistas, à semelhança do que sucedeu com os repórteres da Reuters, explicou ao PONTO FINAL o advogado Jorge Menezes. Em causa poderiam estar os crimes de desobediência ou violação de segredo, se existisse uma lei da Assembleia Legislativa que definisse que os documentos não poderiam ser publicados e se estes fossem, de facto, publicados. Isto porque, afirmou o causídico, o direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa estão garantidos como direitos fundamentais, tanto na Lei de Imprensa como na Lei Básica.

“O direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa estão garantidos como direitos fundamentais e quer a Lei de Imprensa quer a Lei Básica dizem que os direitos fundamentais só podem ser restringidos por uma lei. Portanto, tinha que haver uma lei a dizer que esta categoria de documentos é confidencial”, explicou Jorge Menezes. Por exemplo, no caso concreto dos processos-crime, o Código de Processo Penal determina que, na fase de inquérito, os documentos e informações são confidenciais. “Depois há outro artigo que diz que, se for divulgado, o jornalista comete crime. São duas leis: uma a dizer que é confidencial e outra a dizer que é crime”, acrescentou.

A publicação de documentos confidenciais, assim decretados pela Assembleia Legislativa, poderia constituir crime de desobediência, explica Menezes. De acordo com o Código Penal, “quem faltar à desobediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competentes, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa de 120 dias”. Em causa poderia também estar o crime de violação de segredo que determina que “quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego ou arte é punido com pena de prisão até um ano ou pena de multa até 240 dias”.

Catarina Vilanova | Ponto Final

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