Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram ontem
condenados a sete anos de prisão no Myanmar por posse de documentos
classificados. Os dois jornalistas da Reuters encontravam-se detidos desde
Dezembro, altura em que investigavam o homicídio de 10 indivíduos de etnia Rohingya.
Os dois jornalistas da Reuters
detidos desde Dezembro no Myanmar foram ontem condenados a sete anos de prisão.
Wa Lone, de 32 anos, e Kyaw Soe Oo, de 28 anos, incorriam numa pena de até 14
anos de cadeia. Na leitura da sentença, o juiz Ye Lwin acusou os repórteres –
que se encontravam a investigar o massacre de 10 indivíduos Rohingya por forças
de segurança do Myanmar – de não se terem comportado como “jornalistas
normais”. O veredicto tem sido fortemente condenado desde ontem como um ataque
à liberdade de imprensa por organizações como a Federação Internacional de
Jornalistas (FIJ), Human Rights Watch e pelo próprio director da Reuters, que
denunciou a condenação como “um enorme passo atrás na transição do Myanmar para
uma democracia”. Em Macau, José Carlos Matias, presidente da Associação de
Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM), disse ao PONTO FINAL que a
condenação é um “sinal bastante preocupante”.
“Eu não tenho medo. Eu não fiz
nada de errado. Eu acredito em justiça, democracia e liberdade”, disse Wa Lone,
após a leitura da sentença, citado pela BBC. Durante o julgamento, a defesa
argumentou que os dois jornalistas, cidadãos do Myanmar, foram enganados pela
polícia. A 12 de Dezembro do ano passado, Wa Lone e Kyaw Soe Oo foram
convidados para se encontrarem com agentes policiais que lhes entregaram
documentos que os dois jornalistas não chegaram a consultar por terem sido
imediatamente detidos. Na altura, os repórteres encontravam-se a investigar o
massacre de 10 Rohingya no estado de Rakhine, no Myanmar, por soldados daquele
país, posteriormente confirmado pelas autoridades. A investigação foi
entretanto publicada pela Reuters com o título “Massacre in Myanmar”, em
Fevereiro deste ano.
Numa das sessões do julgamento –
considerado internacionalmente como um teste falhado à liberdade de imprensa
daquele país – Moe Yan Naing, capitão da polícia, testemunhou que um superior
seu ordenou que os documentos fossem utilizados para incriminar Wa Lone. “Eu
estou a revelar a verdade porque um polícia de qualquer posição deve manter a
sua integridade. É verdade que eles foram incriminados”, disse aos jornalistas
o capitão, que acabou condenado a um ano de prisão na sequência do seu
testemunho por violação do código disciplinar da polícia.
Segundo o The New York Times, uma
das testemunhas arroladas pela acusação, um agente da polícia, testemunhou ter
queimado as suas notas da detenção dos jornalistas. Um outro polícia afirmou
que os documentos confidenciais que estiveram na origem da detenção tinham já
sido publicados num jornal. No entanto, estas confissões não foram suficientes
para demover o juiz que determinou que os dois jornalistas violaram o Official
Secrets Act, uma lei da era colonial. “[Os jornalistas] tentaram muitas vezes
pôr as suas mãos em documentos secretos e passá-los a outros. Eles não se
comportaram como jornalistas normais”, declarou o juiz Ye Lwin, de acordo com o
The Guardian.
À saída do tribunal, Khin Maung
Zaw, advogado de defesa, declarou que o veredicto é “mau para o nosso país”, e
que iria “tomar qualquer opção para conseguir a sua libertação imediata”. Desde
que foram detidos, os dois jornalistas apenas estiveram com as suas famílias
durante visitas à prisão e durante as audiências em tribunal. Segundo
a Reuters, Kyaw Soe Oo é pai de uma menina de três anos e Wa Lone foi pai pela
primeira vez há um mês.
“ESTE É UM ENORME PASSO ATRÁS NA
TRANSIÇÃO DO MYANMAR PARA UMA DEMOCRACIA”
“Hoje é um dia triste para o
Myanmar, para os jornalistas da Reuters Wa Lone e Kyaw Soe Oo e para a imprensa
em todo o lado”, afirmou Stephen J Adler, director da Reuters, em comunicado. Adler
disse que a agência iria avaliar como proceder nos próximos dias, incluindo se
iria procurar assistência no palco internacional. “Estes dois repórteres
admiráveis já passaram nove meses em prisão sob falsas acusações pensadas para
silenciar a sua investigação e intimidar a imprensa”, declarou o director da
Reuters. “Este é um enorme passo atrás na transição do Myanmar para uma
democracia”.
A FIJ afirmou que Wa Lone e Kyaw
Soe Oo “estavam a fazer nada mais do que o que bons repórteres fazem –
investigar abusos, homicídios e violações contra civis por parte do poderoso exército
do país”. “Esta é uma falha dos tribunais e do Governo do Myanmar, com um
sistema judicial a ser manipulado para punir jornalistas e enviar um aviso
terrível a outros repórteres que a liberdade de imprensa vem com um preço
muito, muito pesado”, declarou a FIJ. Também Shawn Crispin, representante do
Sudeste Asiático do Comité para a Protecção dos Jornalistas, condenou a
sentença como uma “farsa da justiça que irá definir o Myanmar como um pária
anti-democrata enquanto eles estiverem injustamente atrás das grades”.
“ISTO MOSTRA AO MUNDO QUE NÃO
EXISTE LIBERDADE DE IMPRENSA NO MYANMAR”
A Associação de Jornalistas do
Myanmar afirmou estar “bastante desapontada” com a sentença. “É uma perturbação
para a liberdade de imprensa e primado da lei e também uma ameaça e intimidação
para todos os media. Isto mostra ao mundo que não existe liberdade de imprensa
no Myanmar, que está a andar na Plataforma da Democracia”, declarou. Em Hong Kong , a sentença
foi denunciada pelo Foreign Correspondents Club. “O veredicto tem ramificações
abrangentes para os jornalistas no Myanmar numa altura em que a liberdade de
imprensa está sob ataque por toda a Ásia. Os repórteres no Myanmar continuam a
enfrentar acusações por notícias de interesse público, bem como pressão para se
auto-censurarem”, afirmou o Foreign Correspondents Club.
Ao PONTO FINAL, José Carlos Matias
afirmou que a condenação é um “sinal bastante preocupante”. “Tudo leva a crer
que estes jornalistas estavam a fazer o seu trabalho e estavam a trabalhar
sobre uma matéria de interesse público e relevante que é a situação dos
Rohingya”, declarou o presidente da AIPIM. “É um sinal preocupante e pode ser
visto de uma forma mais global e, independente dos aspectos específicos do caso
em questão, de uma tendência preocupante a nível global relativamente à
liberdade de imprensa e relativamente às condições que o jornalismo de
investigação tem um pouco por todo o mundo”.
COMUNIDADE INTERNACIONAL APELA À
LIBERTAÇÃO IMEDIATA E INCONDICIONAL DOS JORNALISTAS
Na Europa, o Serviço de Acção
Externa da União Europeia apelou à libertação imediata e incondicional dos dois
jornalistas, acusando a sentença de “prejudicar a liberdade dos media, o
direito do público à informação e o desenvolvimento do primado do direito no
Myanmar”. “A sua pena de prisão serve também para intimidar outros jornalistas
que vão temer assédios e detenções ou acusações injustificadas simplesmente por
fazerem o seu trabalho”, declarou a União Europeia.
Também a Human Rights Watch
apelou à anulação do veredicto e à libertação imediata dos repórteres. “Estas
condenações não escondem os horrores cometidos contra os Rohingya do mundo –
simplesmente revelam o estado precário da liberdade de imprensa no país e a
necessidade urgente de acção internacional para libertar estes jornalistas”,
afirmou Brad Adams, director-executivo da divisão da Ásia da Human Rights Watch.
Tirana Hassan, directora de
Resposta a Crises da Amnistia Internacional, afirmou que o veredicto condenou
“dois homens inocentes a anos atrás das grades”, acusando-o de ser
politicamente motivado. “Esta decisão politicamente motivada tem ramificações
significativas para a liberdade de imprensa no Myanmar. Envia um duro aviso a
outros jornalistas no país das consequências severas que os aguardam se olharem
demasiado perto aos abusos do exército”, afirmou Hassan, pedindo a libertação “imediata
e incondicional” dos jornalistas.
Scott Chiang: “Seria inocente
esperar um tribunal totalmente independente”
Esperar um sistema judicial
independente no caso dos jornalistas da Reuters seria “inocente”, afirmou ao
PONTO FINAL o activista Scott Chiang. “Esperar um sistema judicial inteiramente
independente neste caso pode não ser uma expectativa muito realista. Seria
inocente esperar um tribunal totalmente independente, especialmente quando
estão em causa interesses considerados muito importantes para governar o país”,
declarou o antigo presidente da Associação Novo Macau. “Este país ainda tem um
longo caminho a percorrer até chegar ao tipo de democracia com que estamos
familiarizados no Ocidente”, disse o pró-democrata.
Scott Chiang aponta que o
jornalismo em todo o mundo tem estado em risco, incluindo em Macau, recordando
que cinco meios de comunicação instruíram os seus jornalistas a realizarem uma
cobertura positiva durante a passagem do tufão Hato. “Em Macau, a forma como o
sistema funciona, em termos de controlo social, não é dizer directamente o que
tens que fazer mas deixar-te perceber que tens que cooperar e é a isso que nós
chamamos auto-censura”, disse o activista, acrescentando que “até agora tem
resultado bem para eles”. “Mas agora eles podem insistir mais ao introduzir novos
requerimentos para poderem instruir ou desencorajar acções que não queiram”.
Em relação à criminalização do
rumor falso, prevista na proposta de lei de bases da protecção civil – medida
que motivou já uma carta da Associação de Imprensa em Português e Inglês de
Macau ao secretário para a Segurança – Scott Chiang diz não ver a necessidade
deste desenvolvimento. “Provavelmente, eles estão na linha da frente em relação
a Hong Kong e, após termos este tipo de legislação, Hong Kong pode seguir a
mesma linha. Mesmo em Macau, onde temos este tipo de controlo social, não vejo
necessidade de uma ferramenta extra para eles cumprirem o que querem”, declarou.
Jorge Menezes: “O direito à
liberdade de imprensa” está garantido
De acordo com o ordenamento
jurídico de Macau, a posse de documentos confidenciais não levaria à acusação
ou detenção de jornalistas, à semelhança do que sucedeu com os repórteres da
Reuters, explicou ao PONTO FINAL o advogado Jorge Menezes. Em causa poderiam
estar os crimes de desobediência ou violação de segredo, se existisse uma lei
da Assembleia Legislativa que definisse que os documentos não poderiam ser
publicados e se estes fossem, de facto, publicados. Isto porque, afirmou o
causídico, o direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa estão
garantidos como direitos fundamentais, tanto na Lei de Imprensa como na Lei
Básica.
“O direito à liberdade de
expressão e à liberdade de imprensa estão garantidos como direitos fundamentais
e quer a Lei de Imprensa quer a Lei Básica dizem que os direitos fundamentais
só podem ser restringidos por uma lei. Portanto, tinha que haver uma lei a
dizer que esta categoria de documentos é confidencial”, explicou Jorge Menezes.
Por exemplo, no caso concreto dos processos-crime, o Código de Processo Penal
determina que, na fase de inquérito, os documentos e informações são
confidenciais. “Depois há outro artigo que diz que, se for divulgado, o
jornalista comete crime. São duas leis: uma a dizer que é confidencial e outra
a dizer que é crime”, acrescentou.
A publicação de documentos
confidenciais, assim decretados pela Assembleia Legislativa, poderia constituir
crime de desobediência, explica Menezes. De acordo com o Código Penal, “quem
faltar à desobediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente
comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competentes, é punido com
pena de prisão até um ano ou com pena de multa de 120 dias”. Em causa poderia
também estar o crime de violação de segredo que determina que “quem, sem
consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão
do seu estado, ofício, emprego ou arte é punido com pena de prisão até um ano
ou pena de multa até 240 dias”.
Catarina Vilanova | Ponto Final
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