segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Há 20 anos na República Democrática do Congo – contínua desestabilização II


Martinho Júnior | Luanda 

1- Desde a Conferência de Berlim, quando a bacia do poderoso rio Congo foi por inteiro entregue ao rei Leopoldo, que o colonialismo belga instaurou, em nome do seu domínio, políticas de genocida repressão com um mínimo de investimento e um máximo de saque e desumanidade.

O próprio enredo tropical e equatorial das condições físico-geográficas do imenso país instalado no coração de África e no que o continente tem de mais rico (água interior, biodiversidade e riquezas minerais), é um manancial de fragilidades e vulnerabilidades para si, quando até seus limites são artifícios coloniais impostos pela conferência das potências colonizadoras e para todos os outros 11 territórios seus circunvizinhos, correspondentes a outros tantos estados.

Além das ingerências e manipulações das potências extracontinentais e de forma geral de interesses capitalistas financeiros transnacionais, juntam-se em espiral todas essas fragilidades e vulnerabilidades, pelo que as tensões, os conflitos e as guerras, assumem-se em caos, em terrorismo e em convulsões “irregulares”, bárbaras, de geometria variável e mobilizando sobretudo o tribalismo, numa constante ânsia competitiva de “dividir para melhor reinar”.

O próprio colonialismo belga recebeu aditivos para que isso fosse assim, com a criação dos microestados do Ruanda e do Burundi, no leste da bacia do Congo e dominando os Grandes Lagos, com enormes excedentes de população rural apta a abandonar suas terras nas “mil colinas” e a internar-se no Congo a oeste, em fluxos migratórios instáveis que exploraram os potenciais de caos e das guerras, a fim de conquistar espaço vital.

Na profundidade antropológica, o Congo não adquiriu novos padrões produtivos e de trabalho, ou se o fez foi de forma muito insipiente, resultando em insuperáveis traumatismos para as culturas tradicionais, sem que fosse possível estabelecer um patamar sócio-cultural capaz de arrancar o país da letargia e do subdesenvolvimento.

Em resultado disso, a massa de deserdados aumentou, perdendo os laços tradicionais e adquirindo comportamentos próprios duma marginalidade afectada por expedientes de sobrevivência informais, não produtivos e em constante expansão, a ponto de sua mancha alastrar para dentro de Angola como um tentacular polvo em busca da riqueza fácil e das ilusões inerentes à exploração dos diamantes aluviais do Cuango, do Cassai, do Cuanza, até ao miolo do país, afecando inexoravelmente a região central das grandes nascentes…

Um dos contágios sócio-políticos é o grupo do Protectorado Lunda-Tchokwe, que num frenesim humano como esse continua a buscar as suas oportunidades!...


2- Agora que a democracia representativa implica em eleições mediante cronogramas aprovados constitucionalmente, muitas das situações anómalas que se vêm arrastando desde o passado ganham fôlego ciclicamente (à aproximação das eleições, durante e imediatamente depois), repetindo-se a intensificação de tensões, num território com tantas etnicidades, com tantos interesses dissonantes mas concorrentes e com infraestruturas rarefeitas, o que inviabiliza as comunicações, as ligações e os enlaces, com todas as repercussões antropológicas.

É nesse labirinto que, década a década, têm também proliferado os mercenários como aves de arribação de mau agoiro, desde companhias de aviação que transportam tesouros, logística e armamento, a companhias privadas militarizadas que ciclicamente alugam seus préstimos a todo o tipo de guerras de usura e de rapina.

No Congo o caos está por conseguinte institucionalizado numa amálgama de subculturas e, para que haja mais intensidade nesse caos, as disputas provenientes do exterior fornecem a sua quota-parte de enredos, fazendo imperar a miséria, a degradação, a fome e os intermináveis conflitos larvares.

Desde há largas décadas que muitas áreas transfronteiriças estão prontas para serem utilizadas por santuários rebeldes, por aventureiros de toda a (des)ordem, ou vínculos sócio-políticos, económicos e financeiros distendidos a partir do exterior, a partir de outros continentes, mas com um trânsito garantido em alguns dos países circunvizinhos, como acontece por exemplo com os vínculos que se despregam desde capitais como Kigali, Kampala, ou Bangui…

As próprias sensibilidades sócio-políticas que afluem aos convulsivos processos eleitorais, reflectem esse emaranhado de redes potencialmente à beira de tensões, de caos, de crime e de guerra, pelo que se há país onde a paz é uma constante miragem e não consegue passar disso, o Congo tornou-se num exemplo de subdesenvolvimento crónico e paradigmático!...

Parte substancial dos circuitos que antes alimentaram clandestinamente com todo o tipo de armas e logística, a Iª Guerra Mundial Africana, têm alimentado hoje os que se propõem a alimentar caos e terrorismo na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, no Iraque, na Síria, ou no Iémen… os produtores de armas, as pistas e os portos de embarque têm sido sistematicamente os mesmos, apenas mudando alguns dos traficantes protagonistas (têm sido neutralizados traficantes concorrentes, como aconteceu com Victor Bout, um dos fornecedores das rebeliões congolesas e de Savimbi…).

As razões causais do caos de subdesenvolvimento crónico acumulam-se e a República Democrática do Congo continua a ser um dos constituintes da cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano, arrastando consigo muitos dos seus circunvizinhos.


3- Lembrar o que ocorreu de forma mais intensa há 20 anos, sob os impactos do choque do capitalismo neoliberal, contribui hoje para o início de qualquer abordagem que se faça sobre o próximo pleito eleitoral na RDC, sabendo que as sensibilidades que chegam do exterior por via dos interesses financeiros transnacionais, estão “no terreno” jamais atraídas pelos “lindos olhos” dos autóctones, pelo contrário, estão ávidos de sua exploração desenfreada enquanto mão-de-obra barata, oprimida e convulsa, com acesso a matérias-primas cujo valor são os interesses desse mesmo domínio que fazem “eternamente” prevalecer.

Como Angola possui uma fronteira com o Congo de mais de 2000 quilómetros, todos os ambientes de crise larvar congolesa vão-se-lhe esbatendo, com agravantes provocados por migrações por dentro do continente, à medida que povos inteiros buscam espaço vital fugindo á expansão dos maiores desertos quentes da Terra, um fenómeno que agora se apresenta em perfeita osmose com a expansão do radicalismo islâmico wahabita e sunita até à África Austral.

Em afluentes como o Cuango e o Cassai, que nascem na região central das grandes nascentes em Angola, essa pressão humana, étnica, subdesenvolvida e religiosa opera prodígios sem qualquer hipótese de controlo apertado, até por que os vales desses rios, afluentes da bacia do Congo, estão coalhados do atractivo dos diamantes aluviais que também existem em vales contíguos de outros rios nacionais angolanos, como o caso do Cuanza.

O escândalo geológico dos dois países, a RDC e Angola, fazem deles uma autêntica “mina de Salomão”, implicando na urgente necessidade de luta comum contra o subdesenvolvimento, a única forma de algum vez se ultrapassar os tremendos equívocoa disseminados desde o passado!...

Aquilo que Savimbi explorou para financiar suas redes e suas acções, utilizam agora uma parte substancial das “redes”desse tipo de penetrações clandestinas, filtradas pelos serviços de inteligência de potências como as que compõem a NATO e seus aliados arábicos, que possuem importantes plataformas de suporte no tão vulnerável quão propiciamente hospitaleiro território congolês…

Em tempo de guerra, em Agosto de 1998, era ainda um balanço dessa natureza que estava sobre a mesa do discreto gabinete de apoio ao Chefe do Estado-Maior Geral das FAA e de então para cá, não existem praticamente alterações nas razões causais de fundo nas situações correntes entre a RDC e Angola.

Num ambiente dessa natureza, qualquer movimento de repressão apenas será um paliativo transitório, ilusório e quantas vezes trazendo resultados ainda mais nocivos dos que por essa via se propõe alcançar!

Constate-se o quadro de há 20 anos…

Martinho Júnior - Luanda, 15 de Outubro de 2016

Imagens:
Mapa das riquezas minerais da RDC e a zona crítica do nordeste;
Aeroporto Internacional de Burgas, na Bulgária, um dos aeroportos onde têm sido feitos de há décadas (imediatamente após o fim do campo socialista europeu), muitos embarques de armas para todo o tipo de rebeldes e de terroristas, em África como no Médio Oriente;
Vista aérea do aeroporto de Kalemie, no leste da RDC, com um cargueiro IL-18 avariado na placa;
O mesmo IL-18, estacionado na placa do aeroporto de Kalemie, pertencente à AIR CESS, companhia do traficante de armas Victor Bout (já detido pelos Estados Unidos na Ásia, enquanto concorrente a sacrificar); o avião foi delapidado por rebeldes ruandeses;
Pequena aldeia de refugiados no leste da RDC, onde campeia a pior das misérias, da fome e da mais abominável marginalidade, discriminação e opressão.


CONGO – a constante instabilidade

“CNN” – 03 AGO 98

1) O Governo de KABILA, praticamente um ano após a sua chegada a KINSHASA, está sujeito a um teste de força, dando resposta à revolta de soldados de origem Ruandesa (tutsi), que integraram os efectivos da “ALIANÇA DAS FORÇAS DEMOCRÁTICAS DE LIBERTAÇÃO DO CONGO”, que o colocaram no poder.

A revolta parece estar na sequência da substituição do Ruandês JAMES KABARÉ, por CELESTIN KIFWA, no cargo de CHEFE DO ESTADO MAIOR DAS FORÇAS ARMADAS, após a visita a ANGOLA de KABILA.

Vários factores podem estar na origem da tomada dessa decisão, entre eles realçamos: o facto da UNITA ter capacidade de manobra clandestina e operativa, a partir de bases e apoios instalados em território da RDC, beneficiando de cumplicidades que ao que tudo indica, vão muito para além das ligações a efectivos e antigas Unidades de MOBUTU, isto é, existindo no quadro das próprias forças de KABILA provenientes do LESTE.

2) A nova situação em KINSHASA poderá influenciar pela negativa, nas relações entre a RDC e o RUANDA, havendo informações que a situação de revolta se estendeu a KISANGANI, BUKAVU e GOMA.

A consolidação do poder a OESTE, com a maior identificação em KINSHASA e em relação à situação corrente na fronteira com ANGOLA, pode querer significar uma diminuição da intensidade do relacionamento com os Países dos GRANDES LAGOS, a LESTE, com consequências aparentemente imprevisíveis a médio-longo prazos, se tivermos em conta as características artificiais das fronteiras.


3) KABILA parece não ter outra alternativa senão ir mudando as suas posições políticas a nível interno, de forma a tender estabelecer relações com políticos como TSHISEKEDI, ou mesmo KENGO WA DONDO, ao mesmo tempo que reforça a capacidade militar dos seus fieis, procurando que não haja grandes prejuízos no relacionamento com o LESTE que o apoiou no início da sua acção com vista ao derrube de MOBUTU, num jogo que apresenta bastantes dificuldades, mas que também pode trazer alguns benefícios, principalmente na interligação ao Governo Angolano e a melhores alternativas de saída para o mar, de forma a melhor enfrentar os problemas do interior.

Esse jogo acarreta provavelmente dificuldades de relacionamento com as grandes potências, apesar do pragmatismo das suas políticas, que terá tendência para atender fundamentalmente à necessidade de estabilidade, a fim de se poder chegar à exploração dos enormes recursos conjuntos de ANGOLA e da RDC e à sua evolução económica no sentido da modernidade e da globalidade, num plano que começará do litoral para o interior.

4) Em relação à zona dos diamantes, que envolve essencialmente as regiões de MALANGE e LUNDAS, em ANGOLA, mas com afectações importantes nos KASSAI OCIDENTAL e ORIENTAL da RDC, pode-se estar no início dum movimento comum entre os dois ESTADOS, de forma a melhor conseguir controlar a situação do tráfico, principalmente aquele que beneficia a UNITA e seus aliados, num e noutro lado da fronteira, incluindo as iniciativas de Empresas estrangeiras (de origem Portuguesa ou Sul-Africana), em relação às quais possam haver dúvidas.

Podemos citar o exemplo da Empresa “PETRA DIAMOND”, aparentemente ligada a interesses de gente que esteve ligada ao regime do “apartheid” na ÁFRICA DO SUL, isto é, necessariamente com ligações preferenciais à UNITA : recentemente a Firma “AFRICAN ALLIANCE”, com instalação no nº 613 de ANITA STREET, em MORELETA PARK, PRETÓRIA, uma “trading” pertencente a antigos operacionais que lutaram contra ANGOLA, deu indicações de ligações a ela.

A “AFRICAN ALLIANCE” é propriedade dos senhores:

GERHARD VAN RENSBURG, antigo Oficial de Infantaria que esteve nas primeiras campanhas das SADF contra ANGOLA, que utiliza os seguintes telefones – 07 082 566 7672 e 012 998 7800 / 09; consta que este Senhor seguia no avião interceptado há alguns meses em ANGOLA, como passageiro e a carga pertencia-lhe.

BEN SMITH, piloto da FORÇA AÉREA Sul Africana, que fez campanha contra ANGOLA, que utiliza o telefone 027 082 566 7673; tem ligação à “PETRA DIAMOND”.

GUSTAVO FOUCHÉ, piloto de jacto e ex-sócio da “AFRICAN ALLIANCE”, mestiço, que utiliza o telefone 027 082 440 1609, separou-se em data recente dessa “trading”.

Os dois ESTADOS devem fazer um esforço comum para encontrar emparceiramentos com entidades que não estiveram ligadas às campanhas de desestabilização contra ANGOLA, fundamentalmente ao nível de operadoras como a ODEBRECHT, Brasileira, ou Empresas da EUROPA DO LESTE (caso das Russas, que têm experiência do ramo no seu País), ou ainda operadoras dos EUA, pois essa é uma das formas de assegurar a malha de implantação e os mecanismos táctico-operativos de controlo, desalojando aqueles interesses que se verificarem poderem estar ligados, ou coligados aos processos de financiamento da UNITA e que são essenciais para a sobrevivência da sua Organização Armada.

05-08-1998 03:07.

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