segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O fascismo, sepulcro da democracia, faz 100 anos


Criado para combater o socialismo, o fascismo deve o seu nome a Mussolini, que o usou para descrever o estado de espírito do seu pequeno bando de criminosos

Alfredo Barroso | Jornal i | opinião

A invenção do fascismo, por Benito Mussolini, fará 100 anos daqui a poucos meses, no próximo dia 23 de Março de 1919. Foi na manhã desse domingo, numa sala de reuniões do Círculo dos Interesses Industriais e Comerciais de Milão, na Praça do Santo Sepulcro, que nasceu oficialmente o fascismo, perante uma assembleia de cerca de uma centena de antigos combatentes da Grande Guerra, de sindicalistas belicistas, de intelectuais futuristas, de alguns repórteres e outros tantos curiosos. Foi criado para “declarar guerra contra o socialismo, por se ter oposto ao nacionalismo”. Nessa altura, Mussolini chamava ao seu movimento Fasci di Combattimento. De facto, o termo fascismo foi inventado por Mussolini a partir do termo italiano fascio, oriundo do latim fascis, ou fasces no plural. Foi esse o termo que Mussolini criou para descrever o estado de espírito do seu pequeno bando de criminosos, ex-soldados nacionalistas, sindicalistas e futuristas que tinham sido a favor da guerra.

O programa deste movimento fascista era, como sublinha o historiador americano Robert O. Paxton no seu livro “The Anatomy of Fascism” (2004), uma mistura bizarra de patriotismo à “antigo combatente” e de experimentação social radical, assim uma espécie de “socialismo nacional”, anti-intelectual, antiburguês e anticapitalista. Mas a verdade é que os partidos fascistas, uma vez no poder, nada fizeram para concretizar as ameaças anticapitalistas. Pelo contrário, desencadearam acções de uma violência brutal contra tudo e todos os que representavam o tão odiado socialismo, por exemplo contra os jovens comunistas que encontravam nas ruas e que massacravam à pancada. Mais: uma vez no poder, os fascistas instituíram regimes de partido único, proibiram as greves, dissolveram os sindicatos independentes, baixaram o poder de compra dos trabalhadores e financiaram generosamente as indústrias de armamento, para regozijo dos empresários. Assim aconteceu na Itália fascista (1922-1945) e na Alemanha nazi (1933-1945), cópia do fascismo adaptada por Hitler, que iria ainda mais longe na exaltação do ódio, da violência e do racismo, no assassínio dos adversários e no holocausto dos judeus, em nome da pureza da raça e do orgulho nacional.

Convém perceber que o fascismo e o nazismo não brotaram espontaneamente – houve quem previsse a sua eclosão e explicasse a sua popularidade. Alexis de Tocqueville, por exemplo, durante a sua famosa visita aos Estados Unidos da América, em 1831, ficou muito perturbado pelo poder que tinha uma maioria, em democracia, de impor o conformismo através da pressão social, na ausência de uma elite social independente. E escreveu: “A espécie de opressão que ameaça os povos democráticos em nada se parece com tudo o que a antecedeu na história do mundo”. Mais: “Os antigos termos despotismo e tirania não são de modo algum aplicáveis. A coisa é nova, importa por isso defini-la, já que não consigo baptizá-la com um nome adequado.”

No início do séc. xx, em 1908, foi a vez de um engenheiro francês e filósofo social, Georges Sorel, criticar Karl Marx “por não ter colocado a si próprio a questão de saber o que aconteceria no caso de uma economia entrar em decadência; Marx nem sequer sonhou com a possibilidade de se produzir uma revolução tendo por ideal o retrocesso ou, até, o conservadorismo social”. O que o fascismo e o nazismo viriam a comprovar. Dois meses após a chegada de Hitler ao poder – sendo nomeado chanceler –, o grande escritor alemão Thomas Mann escreveu no seu diário, em 27 de Março de 1933, ter sido testemunha duma espécie de revolução ainda inédita, “sem ideias, contra a ideia, contra tudo o que há de mais elevado, de melhor e de vantajoso, contra a liberdade, a verdade e o direito”. Thomas Mann diz mais: que “a canalha” tomou conta do poder, no meio de um “inacreditável júbilo” por parte das massas populares.

Enquanto Mussolini era um antigo professor primário, escritor boémio assaz modesto, ex-orador e editorialista do órgão oficial do Partido Socialista Italiano, o “Avanti”, que ele mandou destruir por completo pelo seu bando de “camisas negras”, Hitler tinha sido um modesto cabo durante a Grande Guerra que se vangloriava de feitos que não cometera, além de ser um estudante de arte completamente falhado e frustrado que se tornou um demagogo exímio e temível, à frente dum bando de crápulas vestidos de camisas castanhas. Um e outro eram fanfarrões e brutais, com ambições de poder e de vingança incontroláveis. Faziam ameaças e mentiam sem vergonha, inflamavam as audiências populares e recrutavam os seus seguidores entre a “canalha”, para usar o termo empregado por Thomas Mann. Impressiona, aliás, como tantas pessoas cultas e civilizadas julgaram tratar-se apenas duma “horda de bárbaros” que teria vindo “armar tendas” e acampar por pouco tempo, em protesto, “no meio da nação”.

Tais pessoas despertaram tarde e a más horas para o horror que se seguiu. O que, de certa maneira, entronca no que terá sido a origem da expressão “nacional- -socialismo”, tanto quanto se sabe inventada pelo escritor nacionalista francês Maurice Barrès, em 1896, ao descrever o marquês de Morès, aristocrata e aventureiro, como “o primeiro nacional-socialista”. Após fracassar como criador de gado no Dakota do Norte, Morès regressou a Paris no princípio da década de 1890 e depressa organizou um bando de antissemitas musculados que se dedicaram a assaltar lojas e empresas de judeus. Influenciado pelo passado de criador de gado, decidiu recrutar os seus esbirros nos matadouros de Paris, atraindo-os com uma retórica em que misturava anticapitalismo e antissemitismo nacionalista. Os seus “esquadrões” vestiam- -se como os cowboys, de chapéu alto à Hopalong Cassidy, que o marquês de Morès descobrira no Faroeste. É muito provável que tal indumentária tenha estado na origem das camisas negras e castanhas que se tornaram uniformes dos fascistas e nazis. No início do caso Dreyfus, em França, Morès matou em duelo um oficial judeu muito popular, mas acabou por ser assassinado pelos seus próprios guias tuaregues em 1896, no Sara.

Ao observarmos, hoje, as atitudes e os discursos de políticos demagogos e populistas da extrema-direita – como Donald Trump (nos EUA), Rodrigo Duterte (nas Filipinas), Recep Erdogan (na Turquia) ou Jair Bolsonaro (no Brasil) –, é irresistível evocarmos as provocações e ameaças constantes de Hitler e Mussolini, o comportamento agressivo e fanfarrão de ambos, os seus discursos demagógicos e inflamados perante multidões acéfalas e fanatizadas que os aplaudiam e vitoriavam sem terem sequer a noção de que iriam ser as primeiras vítimas da loucura fascista e nazi que contaminou a Europa do Atlântico aos Urais, no período entre as duas guerras mundiais. A popularidade do fascismo e do nazismo, nesse tempo, não é novidade. E alimenta-se hoje da completa falta de conhecimento e memória histórica da generalidade dos povos que ainda vivem em democracia, mas parecem querer, em muitos casos, face às crises do capitalismo e das representações democráticas, deitar fora o bebé com a água do banho, isto é, deitar fora a democracia, menosprezando os malefícios do capitalismo selvagem e a necessidade de combater e derrotar as políticas neoliberais impostas por instituições internacionais – como o FMI, o BCE ou a União Europeia – aos governos dos países democráticos, cada vez mais impotentes e incapazes de reconquistar a sua soberania face ao poder sem limites da plutocracia e das empresas multinacionais.

O renascimento do perigo fascista, ao cabo de quase duas décadas do séc. xxi, é hoje uma evidência tão grande como o foi há cem anos, a partir do início da década de 1920. O regresso do fascismo, tanto sob antigas como sob novas formas, está hoje na ordem do dia. Tal como a generalização de novas ditaduras autoritárias como as que, no século passado, se foram implantando “à boleia” dos regimes fascistas – foi esse o caso em Portugal, encostado ao regime fascista de Francisco Franco, em Espanha. É verdade que há diferenças entre um e outras. As ditaduras autoritárias governam em regime de partido único com o apoio de forças conservadoras já existentes, como as forças armadas, a(s) igreja(s) e os interesses económicos e financeiros organizados, procurando desmobilizar e neutralizar a opinião pública recorrendo, nomeadamente, à polícia política e à censura. Quanto aos regimes fascistas, utilizam o partido único não para neutralizar, mas sim para mobilizar as massas populares através do entusiasmo e da efervescência permanentes, organizando encenações políticas gigantescas para as atrair e manipular, moldando-as constantemente através da propaganda. Enquanto as ditaduras autoritárias – como a de Salazar e Caetano – “cozinhavam” o povo em “lume brando”, os regimes fascistas optaram por submetê-lo a altas temperaturas, no grande caldeirão das guerras mais cruéis e devastadoras, como as do séc. xx.

Portugal parece estar ainda longe de todos esses perigos, apesar do entusiasmo que suscita, em alguns sectores da direita portuguesa (sobretudo a extraparlamentar, mas não só), a expectativa de vitória do candidato fascista Jair Bolsonaro no Brasil. É certo, todavia, que a demagogia populista tem sido a antecâmara de todos os movimentos e partidos da “extrema-direita pós-fascista” (como agora está na moda classificá-los), e não faltam alguns sinais algo inquietantes dessa demagogia populista nas franjas do PPD-PSD e no coração do CDS--PP. Mas o mito da tradicional brandura dos nossos costumes continua activo e, por cá, a direita ainda só conseguiu eleger Presidente da República um político demagogo e populista soft, perito em afectos e selfies, além de moderadamente conservador e temente a Deus. De facto, Marcelo Rebelo de Sousa é oriundo da “versão mole” do Estado Novo, protagonizada por Caetano, assim uma espécie de caldo verde do antigo regime, que até chegou a usar a farda verde e castanha da Mocidade Portuguesa, mas já nem queria ouvir falar dela, não o fossem qualificar de fascista. Nada mau para a democracia portuguesa, atendendo a que o Presidente anterior a Marcelo, também de direita e do PPD-PSD, era tão rígido como um pau de vassoura e tão autoritário como a “múmia paralítica” do Agildo Ribeiro, mas sem a sineta para o calar porque, realmente, ele falava bastante pouco.

Cem anos depois da sua invenção, numa sala de reuniões com janelas para a Praça do Santo Sepulcro, em Milão, o fascismo volta a ser uma séria ameaça na Europa, na América Latina e – surpresa das surpresas, que não seria surpresa alguma para Alexis de Tocqueville – nos Estados Unidos da América. Oxalá não venha a ser outra vez um Santo Sepulcro da democracia, como na primeira metade do séc. xx. Mas, olhando em redor, confesso não estar nada optimista quanto ao que poderá suceder.

Na fotomontagem: Salazar com fascistas em Portugal e Mussolini em Itália, a fazerem a saudação fascista.

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