Criado para combater o
socialismo, o fascismo deve o seu nome a Mussolini, que o usou para descrever o
estado de espírito do seu pequeno bando de criminosos
Alfredo Barroso | Jornal i |
opinião
A invenção do fascismo, por
Benito Mussolini, fará 100 anos daqui a poucos meses, no próximo dia 23 de
Março de 1919. Foi na manhã desse domingo, numa sala de reuniões do Círculo dos
Interesses Industriais e Comerciais de Milão, na Praça do Santo Sepulcro, que
nasceu oficialmente o fascismo, perante uma assembleia de cerca de uma centena
de antigos combatentes da Grande Guerra, de sindicalistas belicistas, de
intelectuais futuristas, de alguns repórteres e outros tantos curiosos. Foi
criado para “declarar guerra contra o socialismo, por se ter oposto ao
nacionalismo”. Nessa altura, Mussolini chamava ao seu movimento Fasci di
Combattimento. De facto, o termo fascismo foi inventado por Mussolini a partir
do termo italiano fascio, oriundo do latim fascis, ou fasces no plural. Foi
esse o termo que Mussolini criou para descrever o estado de espírito do seu
pequeno bando de criminosos, ex-soldados nacionalistas, sindicalistas e
futuristas que tinham sido a favor da guerra.
O programa deste movimento
fascista era, como sublinha o historiador americano Robert O. Paxton no seu
livro “The Anatomy of Fascism” (2004), uma mistura bizarra de patriotismo à
“antigo combatente” e de experimentação social radical, assim uma espécie de
“socialismo nacional”, anti-intelectual, antiburguês e anticapitalista. Mas a
verdade é que os partidos fascistas, uma vez no poder, nada fizeram para
concretizar as ameaças anticapitalistas. Pelo contrário, desencadearam acções
de uma violência brutal contra tudo e todos os que representavam o tão odiado
socialismo, por exemplo contra os jovens comunistas que encontravam nas ruas e
que massacravam à pancada. Mais: uma vez no poder, os fascistas instituíram
regimes de partido único, proibiram as greves, dissolveram os sindicatos
independentes, baixaram o poder de compra dos trabalhadores e financiaram
generosamente as indústrias de armamento, para regozijo dos empresários. Assim
aconteceu na Itália fascista (1922-1945) e na Alemanha nazi (1933-1945), cópia
do fascismo adaptada por Hitler, que iria ainda mais longe na exaltação do
ódio, da violência e do racismo, no assassínio dos adversários e no holocausto
dos judeus, em nome da pureza da raça e do orgulho nacional.
Convém perceber que o fascismo e
o nazismo não brotaram espontaneamente – houve quem previsse a sua eclosão e
explicasse a sua popularidade. Alexis de Tocqueville, por exemplo, durante a
sua famosa visita aos Estados Unidos da América, em 1831, ficou muito
perturbado pelo poder que tinha uma maioria, em democracia, de impor o
conformismo através da pressão social, na ausência de uma elite social
independente. E escreveu: “A espécie de opressão que ameaça os povos
democráticos em nada se parece com tudo o que a antecedeu na história do
mundo”. Mais: “Os antigos termos despotismo e tirania não são de modo algum
aplicáveis. A coisa é nova, importa por isso defini-la, já que não consigo
baptizá-la com um nome adequado.”
No início do séc. xx, em 1908,
foi a vez de um engenheiro francês e filósofo social, Georges Sorel, criticar
Karl Marx “por não ter colocado a si próprio a questão de saber o que
aconteceria no caso de uma economia entrar em decadência; Marx nem sequer
sonhou com a possibilidade de se produzir uma revolução tendo por ideal o
retrocesso ou, até, o conservadorismo social”. O que o fascismo e o nazismo
viriam a comprovar. Dois meses após a chegada de Hitler ao poder – sendo
nomeado chanceler –, o grande escritor alemão Thomas Mann escreveu no seu
diário, em 27 de Março de 1933, ter sido testemunha duma espécie de revolução
ainda inédita, “sem ideias, contra a ideia, contra tudo o que há de mais
elevado, de melhor e de vantajoso, contra a liberdade, a verdade e o direito”.
Thomas Mann diz mais: que “a canalha” tomou conta do poder, no meio de um
“inacreditável júbilo” por parte das massas populares.
Enquanto Mussolini era um antigo
professor primário, escritor boémio assaz modesto, ex-orador e editorialista do
órgão oficial do Partido Socialista Italiano, o “Avanti”, que ele mandou
destruir por completo pelo seu bando de “camisas negras”, Hitler tinha sido um
modesto cabo durante a Grande Guerra que se vangloriava de feitos que não
cometera, além de ser um estudante de arte completamente falhado e frustrado
que se tornou um demagogo exímio e temível, à frente dum bando de crápulas
vestidos de camisas castanhas. Um e outro eram fanfarrões e brutais, com
ambições de poder e de vingança incontroláveis. Faziam ameaças e mentiam sem
vergonha, inflamavam as audiências populares e recrutavam os seus seguidores
entre a “canalha”, para usar o termo empregado por Thomas Mann. Impressiona,
aliás, como tantas pessoas cultas e civilizadas julgaram tratar-se apenas duma
“horda de bárbaros” que teria vindo “armar tendas” e acampar por pouco tempo,
em protesto, “no meio da nação”.
Tais pessoas despertaram tarde e
a más horas para o horror que se seguiu. O que, de certa maneira, entronca no
que terá sido a origem da expressão “nacional- -socialismo”, tanto quanto se
sabe inventada pelo escritor nacionalista francês Maurice Barrès, em 1896, ao
descrever o marquês de Morès, aristocrata e aventureiro, como “o primeiro
nacional-socialista”. Após fracassar como criador de gado no Dakota do Norte,
Morès regressou a Paris no princípio da década de 1890 e depressa organizou um
bando de antissemitas musculados que se dedicaram a assaltar lojas e empresas
de judeus. Influenciado pelo passado de criador de gado, decidiu recrutar os
seus esbirros nos matadouros de Paris, atraindo-os com uma retórica em que misturava
anticapitalismo e antissemitismo nacionalista. Os seus “esquadrões” vestiam-
-se como os cowboys, de chapéu alto à Hopalong Cassidy, que o marquês de Morès
descobrira no Faroeste. É muito provável que tal indumentária tenha estado na
origem das camisas negras e castanhas que se tornaram uniformes dos fascistas e
nazis. No início do caso Dreyfus, em França, Morès matou em duelo um oficial
judeu muito popular, mas acabou por ser assassinado pelos seus próprios guias
tuaregues em 1896, no Sara.
Ao observarmos, hoje, as atitudes
e os discursos de políticos demagogos e populistas da extrema-direita – como
Donald Trump (nos EUA), Rodrigo Duterte (nas Filipinas), Recep Erdogan (na
Turquia) ou Jair Bolsonaro (no Brasil) –, é irresistível evocarmos as provocações
e ameaças constantes de Hitler e Mussolini, o comportamento agressivo e
fanfarrão de ambos, os seus discursos demagógicos e inflamados perante
multidões acéfalas e fanatizadas que os aplaudiam e vitoriavam sem terem sequer
a noção de que iriam ser as primeiras vítimas da loucura fascista e nazi que
contaminou a Europa do Atlântico aos Urais, no período entre as duas guerras
mundiais. A popularidade do fascismo e do nazismo, nesse tempo, não é novidade.
E alimenta-se hoje da completa falta de conhecimento e memória histórica da
generalidade dos povos que ainda vivem em democracia, mas parecem querer, em
muitos casos, face às crises do capitalismo e das representações democráticas,
deitar fora o bebé com a água do banho, isto é, deitar fora a democracia, menosprezando
os malefícios do capitalismo selvagem e a necessidade de combater e derrotar as
políticas neoliberais impostas por instituições internacionais – como o FMI, o
BCE ou a União Europeia – aos governos dos países democráticos, cada vez mais
impotentes e incapazes de reconquistar a sua soberania face ao poder sem
limites da plutocracia e das empresas multinacionais.
O renascimento do perigo
fascista, ao cabo de quase duas décadas do séc. xxi, é hoje uma evidência tão
grande como o foi há cem anos, a partir do início da década de 1920. O regresso
do fascismo, tanto sob antigas como sob novas formas, está hoje na ordem do
dia. Tal como a generalização de novas ditaduras autoritárias como as que, no
século passado, se foram implantando “à boleia” dos regimes fascistas – foi
esse o caso em Portugal, encostado ao regime fascista de Francisco Franco, em
Espanha. É verdade que há diferenças entre um e outras. As ditaduras
autoritárias governam em regime de partido único com o apoio de forças
conservadoras já existentes, como as forças armadas, a(s) igreja(s) e os
interesses económicos e financeiros organizados, procurando desmobilizar e
neutralizar a opinião pública recorrendo, nomeadamente, à polícia política e à
censura. Quanto aos regimes fascistas, utilizam o partido único não para
neutralizar, mas sim para mobilizar as massas populares através do entusiasmo e
da efervescência permanentes, organizando encenações políticas gigantescas para
as atrair e manipular, moldando-as constantemente através da propaganda.
Enquanto as ditaduras autoritárias – como a de Salazar e Caetano – “cozinhavam”
o povo em “lume brando”, os regimes fascistas optaram por submetê-lo a altas
temperaturas, no grande caldeirão das guerras mais cruéis e devastadoras, como
as do séc. xx.
Portugal parece estar ainda longe
de todos esses perigos, apesar do entusiasmo que suscita, em alguns sectores da
direita portuguesa (sobretudo a extraparlamentar, mas não só), a expectativa de
vitória do candidato fascista Jair Bolsonaro no Brasil. É certo, todavia, que a
demagogia populista tem sido a antecâmara de todos os movimentos e partidos da
“extrema-direita pós-fascista” (como agora está na moda classificá-los), e não
faltam alguns sinais algo inquietantes dessa demagogia populista nas franjas do
PPD-PSD e no coração do CDS--PP. Mas o mito da tradicional brandura dos nossos
costumes continua activo e, por cá, a direita ainda só conseguiu eleger
Presidente da República um político demagogo e populista soft, perito em
afectos e selfies, além de moderadamente conservador e temente a Deus. De
facto, Marcelo Rebelo de Sousa é oriundo da “versão mole” do Estado Novo,
protagonizada por Caetano, assim uma espécie de caldo verde do antigo regime,
que até chegou a usar a farda verde e castanha da Mocidade Portuguesa, mas já
nem queria ouvir falar dela, não o fossem qualificar de fascista. Nada mau para
a democracia portuguesa, atendendo a que o Presidente anterior a Marcelo,
também de direita e do PPD-PSD, era tão rígido como um pau de vassoura e tão
autoritário como a “múmia paralítica” do Agildo Ribeiro, mas sem a sineta para
o calar porque, realmente, ele falava bastante pouco.
Cem anos depois da sua invenção,
numa sala de reuniões com janelas para a Praça do Santo Sepulcro, em Milão, o
fascismo volta a ser uma séria ameaça na Europa, na América Latina e – surpresa
das surpresas, que não seria surpresa alguma para Alexis de Tocqueville – nos
Estados Unidos da América. Oxalá não venha a ser outra vez um Santo Sepulcro da
democracia, como na primeira metade do séc. xx. Mas, olhando em redor, confesso
não estar nada optimista quanto ao que poderá suceder.
Na fotomontagem: Salazar com fascistas em Portugal e Mussolini em Itália, a fazerem a saudação fascista.
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