quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Portugal | A nossa fotografia


Na última quarta-feira, acabei a crónica a dizer que as polícias portuguesas ainda não descobriram os direitos humanos.

Fernanda Câncio | TSF | opinião

Para o caso de se pensar que exagerei, as polícias portuguesas fizeram, simpaticamente, uma demonstração.

Vimos sindicatos da PSP e GNR a exibir, como bandeira de orgulho, a imagem pornográfica de três detidos algemados, humilhados, expostos à curiosidade, ao desdém, ao ódio do público. Como se delas, das polícias, fossem aquelas pessoas, destituídas de vontade, de personalidade, de dignidade, de direitos.

Vimo-los, aos sindicatos, insistir, em desafio e bravata, nessa exibição, mesmo depois de o ministro da tutela e o Presidente da República terem - e muito bem - frisado tal ser inaceitável.

Vimos uma associação sindical da GNR - a Associação Sócio-Profissional Independente da Guarda - estabelecer que "os criminosos não são merecedores do mesmo respeito e consideração, por parte do Estado e da comunidade, atribuídos ao cidadão comum". (Portanto, haveria cidadãos que merecem respeito e outros que não merecem nada, e a polícia para os distinguir.)

Vimos que não houve, nem de comandos nem de outros sindicatos, uma palavra de demarcação que permita dizer que essa não é a posição de toda a PSP e GNR. Nada.

E mais: vimos jornais e TVs usar, sem sequer a questionar, sem sequer, pelos vistos, acharem que ali havia, em si, uma história, aquela imagem. Aquela fotografia. Aquela pornografia.

Vimos isto tudo. E muitos de nós - quantos? - acharam bem.

Muitos de nós acham, segundo se lê e ouve por aí, que há dois lados, só dois lados. Que ou estamos do lado de polícias que acham que quem não aceita a humilhação dos detidos não quer saber do sofrimento das vítimas, ou estamos do lado dos alegados criminosos.

Dizer que todos têm direito à dignidade, mesmo os condenados, quanto mais os suspeitos, é estar do lado dos criminosos. Defender a lei é defender criminosos. E defender criminosos é ser criminoso - evidente.

Como chegámos aqui?

Num país dos mais pacíficos do mundo, não foi de certeza devido ao sentimento de insegurança nem aos altos níveis de criminalidade.

Chegámos aqui, a 2018, assim, porque 42 anos de governos democráticos não democratizaram as polícias. Não lhes fizeram perceber que é a lei da República que têm de aplicar e não uma qualquer corruptela autoritária; que existem para servir os cidadãos e não a corporação; que o monopólio legal da força é uma responsabilidade e não uma licença.

42 anos de governos em democracia não foram, como tinham de ser, implacáveis com os abusos, prepotências e violências injustificadas; desculpabilizaram, calaram, fingiram que não viram. Deixaram crescer o mal.

É bonito dizer, como disse o ministro Eduardo Cabrita, que a polícia portuguesa é uma polícia de direitos e liberdades. No papel, será. Na verdade, está naquela fotografia.

Estamos todos.

*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

A Opinião de Fernanda Câncio, na Manhã TSF

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