domingo, 25 de novembro de 2018

Portugal | Trabalho e direitos humanos


Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião

Os direitos no trabalho são direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 70 anos de existência a 10 de dezembro próximo, inscreve-os como tal em vários artigos.

Esta semana vimos morrer trabalhadores em Borba porque ao longo do tempo os interesses económicos imediatos, privados e públicos, e o desleixo político se sobrepuseram às medidas indispensáveis para proteger a vida. E todos os dias há mortes no trabalho e acidentes graves que podiam ser evitados. Muitas vezes, bastava uma atenção mínima ao que as leis estabelecem, bastava que os governos mobilizassem recursos para proteger os trabalhadores quando justamente reclamam, em vez de os guardar para proteger entidades patronais que atuam à margem da lei.

Esta semana, todos ficámos a saber que, no porto de Setúbal, um trabalhador pode ter de celebrar e terminar dois contratos de trabalho num mesmo dia. Cada trabalhador faz tantos contratos quantos turnos de trabalho realiza. Num porto que precisa, todos os dias, de um grande coletivo de trabalhadores para poder funcionar, temos esta vergonhosa precariedade que põe em causa os direitos humanos no trabalho, na organização da família e nos mais diversos planos em que os seres humanos afirmam a cidadania.

É oportuno revisitarmos o conteúdo daquela Declaração Universal no que se refere aos direitos no trabalho. Transcrevo apenas parte do artigo 23.° e o 24.°: "Artigo 23.° - 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana (...). Artigo 24.° - Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas".

Estes conteúdos não são proclamações vazias. São, sim, princípios orientadores e compromissos políticos universais para sustentar a construção de sociedades democráticas e para garantir a paz. Em cada momento em que eles são violados, há regressão, há aprofundamento de desigualdades, há mais injustiça, pobreza e sofrimento humano. A Constituição da República Portuguesa deu a máxima valorização aos capítulos "Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores" e "Direitos e deveres económicos, sociais e culturais", por reconhecer que os direitos no trabalho são direitos humanos imprescindíveis para o progresso da sociedade.

A Declaração de Filadélfia da Conferência da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em 1944, inspirou e alimentou conteúdos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas esta veio dar autoridade, dimensão ética e política aos direitos no trabalho, pelo que eles significam coletivamente e para afirmar a dignidade de cada ser humano. Não fiquemos à espera que aconteça uma barbárie idêntica às que aconteceram no século passado, com a primeira e a segunda guerra mundiais, para acordarmos e agirmos.

Em Filadélfia, assumiu-se que "o trabalho não é uma mercadoria", mas quantas vezes se tratam os trabalhadores como mercadoria de segunda. A mercantilização do trabalho está aí em força e tem de ser combatida. O individualismo exacerbado tenta justificar-se na falsa atomização generalizada do trabalho. Nos cenários "mágicos" e empolgantes da discussão tecnológica sobrevaloriza-se o apocalítico e tenta impor-se o determinismo tecnológico, para constranger os direitos humanos no trabalho.

Ao contrário do que acontece com as pessoas, às máquinas é-lhes indiferente "trabalharem" de dia ou de noite, durante a semana ou ao fim de semana, não precisam de salário e são tanto mais rentáveis, quantas mais horas funcionarem. Elas não têm relação metabólica com a natureza, não têm família, não são seres sociais, nem cidadãos.

Os seres humanos não podem abdicar da definição do tempo de trabalho e do tempo de não trabalho para poderem realizar muitas outras atividades e missões indispensáveis à sociedade, não podem abdicar dos direitos no trabalho como direitos humanos.

*Investigador e professor universitário

SEXTA-FEIRA NEGRA - HenriCartoon


Dia da Consciência Negra

"É difícil não nascer branco" - Lima Barreto (18881-1922) / Diário Íntimo 

    
O dia 13 de maio, escolhido pela historiografia oficial, como símbolo da liberdade, representa apenas o término de quase 400 anos de um longevo sistema escravocrata.

O Brasil, há 130 anos, foi o último país no Ocidente a abolir a escravidão. Em contraponto a esta data, na qual foi assinada a Lei Áurea (1888), o 20 de novembro - Dia da Consciência Negra - remete-nos  à morte da figura libertária de Zumbi dos Palmares (1655-1695).  Esta data encontrou maior receptividade pela população afrodescendente devido à luta deste líder em relação à escravidão. Zumbi liderou o famoso Quilombo dos Palmares (1630-1895) que se localizava na Serra da Barriga, atual região do estado de Alagoas.
 
Instituído, em âmbito nacional, mediante a lei nº 12.519 de 10 /11/ 2011, o dia 20 de novembro - data da morte de Zumbi - passou a ser uma efeméride graças à mobilização do Movimento Negro e da liderança do ativista gaúcho, poeta e professor Oliveira Silveira (1941-2009) - nascido em Rosário do Sul - que teve a iniciativa de propor o reconhecimento deste líder negro como símbolo de resistência  à escravidão. A semente germinou, em Porto Alegre, no Grupo Palmares (1971) fundado pelo próprio Oliveira.

A data da morte de Zumbi foi alvo de longa pesquisa do professor Oliveira que se utilizou de uma abalizada bibliografia, trazendo a público a importância de Zumbi  para a história do negro no Brasil., motivando o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) a realizar um congresso, em 1978, ainda no período da Ditadura Militar (1964-1985). Este Congresso  elegeu Zumbi como um ícone da luta contra a escravidão.

Na realidade a Abolição da Escravatura (1888) concedeu, juridicamente, a liberdade ao escravizado, mas não o passaporte da cidadania plena.  Infelizmente, essa população liberta se deparou com uma dura realidade marcada por fatores, como a pobreza, a falta de instrução, o preconceito e a invisibilidade social. É evidente que, neste contexto, a  sobrevivência do liberto ficou restrita a espaços, cujas características eram a baixa renda econômica e o esquecimento do poder público, a exemplo em Porto Alegre da Colônia Africana (Bairro Rio Branco), Ilhota (Cidade Baixa), Areal da Baronesa e Mont’Serrat. Considerados no passado territórios negros, estes locais foram o berço do samba de roda , das casas de religião de matriz africana (Nação), dos blocos, cordões , escolas de samba e a Liga da Canela Preta (futebol). A especulação imobiliária os descaracterizou, deslocando seus moradores para locais afastados da urbe, como Restinga Velha onde não havia a mínima infraestrutura.  Os interesses econômicos atropelaram a tradição africana que ali se fazia presente.

A conquista da cidadania plena exige, ainda, nos dias atuais, uma luta constante contra o preconceito, visando ao reconhecimento da contribuição da etnia negra na construção da Nação brasileira.  Marginalização e racismo são reflexos de um sistema escravocrata que estruturou de uma maneira dual a sociedade brasileira. A saída estratégica, da nossa elite conservadora e escravocrata, do século 19,  dá -se com Abolição de forma legal, porém sem alterar o sistema social do qual era apenas o espelho. A sociedade se adaptou, visando a preservar, sob a aparência jurídica de igualdade de todos perante a lei, a distinção social entre a casa grande e a senzala. 

A Abolição da Escravatura (1888), não seria um processo inconcluso, como afirmou o historiador Décio Freitas (1922- 2004), em seu livro Brasil Inconcluso (1986), se ao ato jurídico fossem acrescidas mudanças sociais efetivas: uma reforma agrária proposta pelo engenheiro e abolicionista André Rebouças (1838-1898)  e a implantação de um sistema educacional amplo e inclusivo. 

Desde a assinatura da Lei Áurea (1888), pela princesa Isabel (1846-1921), até os dias atuais, o caminho da inclusão social tem sido árduo devido ao racismo (velado ou assumido) e à intolerância às tradições africanas.  Em pleno século 21, a escravidão, em suas diversas formas, ainda nos espreita e reinventa-se por meio de mecanismos de exploração, subtraindo a liberdade e a dignidade do ser humano. 

O legado de séculos de escravidão é o baixo percentual de afrodescendentes que ocupam, de forma legítima, espaços de poder e de atuação junto à sociedade, tradicionalmente e de forma majoritária, ao longo da história do Brasil, são ocupados por brancos, como confirmam  os dados estatísticos do IBGE. O Brasil foi o último país no Ocidente a aboli-la.  O dia 20 de novembro é uma data que nos oportuniza uma reflexão acerca da nossa diversidade cultural, que é fruto  da contribuição multirracial, especialmente dos nossos irmãos africanos e seus descendentes.
                                  
* Pesquisador e coordenador do setor de pesquisa do Musecom

Imagens
1- Estátua de Zumbi (2008) em Salvador (BA)  / autoria da baiana Márcia Magno 
2 - Zumbi dos Palmares
3 - Oliveira Silveira : Líder do Movimento Negro no RS

O privilégio branco no controle da informação no Brasil e o racismo

A mídia brasileira de maior audiência é controlada por uma elite econômica formada por homens brancos
Uma sociedade só pode ser democrática se as diferentes opiniões e culturas que a compõem tiverem espaço para se manifestar. O direito à comunicação é indissociável do exercício da cidadania
Como uma simples vaquinha online, feita por um youtuber negro, nos leva a refletir sobre quem controla a mídia no Brasil

Na semana passada, a polêmica em torno da vaquinha online promovida pelo youtuber Spartakus Santiago, para arrecadar dinheiro para consertar a tela quebrada de seu computador acendeu nas redes sociais o debate sobre o privilégio branco quando o assunto é apropriação tecnológica ou infraestrutura para se produzir comunicação.

Muitos reagiram em tom crítico à solução encontrada pelo youtuber para seguir produzindo conteúdo nas redes digitais. Alegaram que ele estaria se aproveitando de sua militância para “bancar seus luxos” (referência ao fato de seu computador ser um MacBook).

Na realidade, pela leitura dos twitts e comentários que circularam na rede logo após o lançamento do crowdfunding, o que realmente irritou alguns usuários e produtores concorrentes foi a frase “para não ficar atrás dos brancos” dita por Spartakus em seu vídeo de divulgação.

A polêmica reforça a necessidade de discutirmos a pauta “comunicação e negritude” por um viés que vá além da questão da representação, incorporando à agenda o controle sobre os meios de produção dos conteúdos e a apropriação tecnológica.

Do ponto de vista histórico, é preciso levar em conta que o racismo, como estruturante da sociedade brasileira, impediu ao longo de séculos (e segue impedindo) que negros tenham acesso a recursos que viabilizem sua própria comunicação. E este não é exatamente um debate novo, já que remonta, pelo menos, ao início do século XX, quando grêmios e associações recreativas formadas por negros buscavam financiar a expansão da chamada imprensa negra no Brasil.

Atualmente, a ausência de negros no mercado da comunicação ainda é uma realidade. Na pesquisa Media Ownership Monitor Brazil realizada em 2017 pelo Intervozes, com apoio dos Repórteres Sem Fronteiras, dos 50 principais veículos de mídia no Brasil em termos de audiência, nenhum deles possui no comando dos negócios uma pessoa negra ou é historicamente identificado às pautas da negritude.

O monitoramento, que levou em conta veículos de TV, rádio, Internet e impressos, concluiu que “a mídia brasileira de maior audiência é controlada, dirigida e editada, em sua maior parte, por uma elite econômica formada por homens brancos”. Não é preciso muito esforço analítico para relacionar o controle da informação midiática por agentes brancos com a permanência do racismo em nossa sociedade. 

Ambiente digital

Se é verdade que o capital econômico é concentrado na mão de uma elite que é majoritariamente branca, o que faz com que seja esta a camada da sociedade detentora dos meios para produzir comunicação, é real também que o acúmulo do capital cultural por parte dos negros reproduza esta mesma distorção, e isto se reflete na baixa presença de influenciadores negros no ambiente digital.

Na Internet, a presença de negros produtores de conteúdo tem aumentado significativamente nos últimos anos – ainda que o acesso à internet continue sendo desigual entre brancos e negros. E uma das possíveis explicações para isto é o aumento do capital cultural, que se produz por alguma ascensão econômica e pela entrada de mais negros nas universidades.

Hoje muitos coletivos negros têm buscado produzir conteúdos e influenciar o debate público nas redes, como a Rede de Ciberativistas Negras, as Blogueiras Negras, e tantos outros. Algumas saem, inclusive, do lugar de produção de conteúdo para discutir a própria lógica da apropriação tecnológica, como a turma do PretaLab.

No universo da produção de conteúdo online, no entanto, os mais acessados ainda seguem sendo os produtores e difusores brancos. Pelo menos é o que o mostra a pesquisa “Monopólios Digitais: concentração e diversidade na internet", realizada pelo Intervozes e lançada no início de 2018.

A pesquisa levantou quem são os 50 primeiros canais do Youtube em número de seguidores. No universo dos chamados influenciadores – ou pessoas e coletivos que produzem conteúdos diversos (fazem comentários sobre amenidades, política, esquetes, “trollagens” ou paródias de músicas) apenas um entre 25 é negro. Trata-se de Everson Zoio, que aparece na 22ª posição no ranking geral.

Além dele, que fala sobre temas diversos, apenas outros dois canais podem ser considerados atrelados à difusão da cultura e estética negras. São eles o Kondzila, canal de difusão de clipes de artistas do funk, que aparece na 2ª posição no ranking, o GR6 Explode, também de difusão de clipes, que aparece na 11º posição.

Vale citar ainda, dentre os 50 primeiros, o canal Parafernalha, produtor e esquetes de comédia, que possui um ator negro e aparece na 12ª posição, o canal Você Sabia?, que aporta na 13ª posição e tem um dos apresentadores negro e o canal da cantora Anitta, que aparece na 25ª posição.

Mas afinal, negros não fazem sucesso no YouTube?

O youtuber Kias Neira já tentou discutir isto. No vídeo, ele questiona a sugestão que lhe deram sobre fazer vídeos de desafios: “Pra crescer eu tenho que me f****? Eu tenho que fazer desafio comendo pimenta?”. Seu canal, criado em 2015, tem hoje um pouco mais de 11 mil seguidores.

A resposta mais imediata a esta pergunta seria atrelar esta ausência ou baixo sucesso de negros YouTube ao fator estrutural, ou seja, da apropriação técnica e/ou tecnológica dos recursos necessários para esta produção. Assim como há uma barreira imposta pela dificuldade de acesso à internet, a falta de bons equipamentos ainda pode ser um problema para permitir a presença de youtubers negros, como mostrou o caso do próprio Spartakus, citado no início deste texto, que recorreu à vaquinha online para seguir produzindo.

E mesmo se considerarmos que a barreira de entrada para se ter um canal no YouTube seja relativamente baixa em comparação com os meios tradicionais de comunicação, dependendo, basicamente, de ter se um bom equipamento de captação de imagem e uma boa qualidade de acesso à internet, o mesmo não se pode dizer da sustentabilidade do canal.

Crescer enquanto influenciador nas redes sociais requer infraestrutura, o que se não se consegue sem investimento, seja de capital próprio/familiar ou por meio de patrocínios de empresas e grupos. O que nos leva a outra questão: seriam os youtubers negros subfinanciados pelos patrocinadores?

Responder a esta pergunta dependeria da realização de pesquisa que pudesse mapear: a) o perfil econômico dos principais youtubers brasileiros para determinar se o poder aquisitivo do próprio youtuber e/ou de seus familiares altera nas apostas de incremento no canal; b) quem são os principais patrocinadores dos youtubers brasileiros e em quais canais estão sendo aportados os maiores recursos.

Por outro lado, a fala de Nátaly Nery, dona do canal “Afros e Afins”, durante a entrevista “Onde estão os negros no Youtube?”, realizada pelo PC Faria, pode ser uma chave interessante para compreender a diferença entre “canais de branco” e “canais de preto” e, inclusive, para discutir este possível subfinanciamento.  Afinal “o negro é entendido como nicho”, diz ela na entrevista.

Os canais de negros são muitas vezes considerados como produtores de conteúdo “específico”, “de negros” ou “de minoria”, e não como produtores de um conteúdo universal. Isto acontece porque, no Brasil, assim como em outros países em que o racismo contra negros é estrutural, a branquitude é a norma, já que representa um padrão supostamente universal.

Entender o papel predominantemente branco é tão essencial para desconstruir o racismo no Brasil quanto à compreensão sobre machismo e patriarcado são fundamentais para entender a reprodução da opressão entre os gêneros. Fazer isto requer a ampliação do diálogo para além do universo acadêmico e do ativismo político, ou seja, implica acessar os meios de comunicação.

Hoje, mais do que nunca, fomentar a participação de negros no ambiente midiático, seja ele o tradicional ou o digital é fundamental para a desconstrução da branquitude e, por consequência, da desconstrução do racismo.

Vale criar políticas de cotas na radiodifusão, afinal, concessões públicas de rádio e televisão não podem se eximir do dever de garantir a diversidade em sua programação.

É claro que o crescimento de influenciadores digitais negros acaba por incidir diretamente na maior presença de negros também nos meios tradicionais de rádio e televisão, uma vez que fica impossível “fazer a egípcia” diante da potência da audiência destes comunicadores no ambiente digital. Não é por acaso que muitos desses hoje são presença garantida em programas de TV. Precisamos checar, no entanto, se este movimento é suficiente e se vem acontecendo em todos os canais ou apenas em alguns.

No caso dos youtubers, valeria questionar às empresas patrocinadoras quais são os recursos destinados aos comunicadores negros. E quem sabe um boicote àquelas que não investem recursos neste grupo poderia produzir uma diversificação maior no investimento. Afinal, negros usam maquiagem, jogam videogames e consomem brinquedos também.

Apropriar-se das novas tecnologias, indo além do uso de aplicações e das camadas superficiais da produção dos conteúdos, por fim, tem se mostrado essencial para o chamado controle da informação.  E entender isto do ponto de vista das desigualdades de raça (e também de gênero e classe) é essencial para combater a permanência do racismo no Brasil.


Ana Claudia Mielke* | Carta Capital

*Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Angola | O 27 de Maio e a narrativa de ruptura


Jornal de Angola | editorial

Os acontecimentos que ocorreram a 27 de Maio de 1977 e dias subsequentes, nos quais morreram e desapareceram milhares de angolanos, deixaram marcas que continuam até aos nossos dias. Tratou-se de acontecimentos que dividiram a sociedade angolana, criaram profundas feridas e deram lugar a um contexto no qual não se falava, nem se abordava o que fosse ligado ao assunto. Houve, no passado, particularmente pouco depois da abertura ao multipartidarismo, tentativas políticas encorajadoras da parte do MPLA, com comunicados do Bureau Político e gestos que alimentavam esperanças de abordagens mais arrojadas. 

As declarações feitas, há dias, pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, marcam uma fase que, independentemente dos desafios que se levantam, precisam de ser levadas adiante. Já se perdeu muito tempo com a gestão, nem sempre a contento de todas as partes, dos acontecimentos ligados ao 27 de Maio, sendo que o mais importante agora tem a ver com a assumpção de responsabilidades para que nos certifiquemos de que nunca mais volte a ocorrer tragédia do género.  

“Houve execuções e prisões arbitrárias. Tudo isso está um pouco esquecido, mas precisamos de nos lembrar para que não volte a acontecer”, estas foram palavras pronunciadas pelo ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, numa alusão aos referidos acontecimentos, que geraram as mais variadas reacções. 

Segundo algumas informações que circulam, sectores que se apresentam como representantes de sobreviventes do 27 de Maio congratulam-se com esta narrativa de ruptura que está agora a ser assumida pelo Executivo,  ao declarar publicamente que está em aberto a possibilidade de as famílias afectadas resolverem a questão das certidões de óbito e de outras matérias que têm a ver com esses acontecimentos.

As declarações do ministro, além de outras implicações para as quais o Executivo, certamente, está disposto a abrir-se, provam também que se pretende uma nova abordagem sobre a questão.

Mais do que encontrar culpados ou responsáveis pelo sucedido, importa que todos aprendamos com as lições dessa tragédia  e nos preparemos para um debate sereno e transparente no sentido de contribuirmos, com eventuais propostas, para que o Estado resolva, em definitivo, o passivo do 27 de Maio.

Angola | INCURSÃO AO UÍGE


Martinho Júnior, Luanda 

Algumas impressões, 43 anos depois da heróica independência de Angola, proclamada como República Popular!

1- Esta semana, no dia 8, tive uma meteórica deslocação à capital da província do Uíge…

A rota foi a velha estrada do café, com partida de Luanda pelas 5 da madrugada e 326 quilómetros pela frente.

Sob meus olhos ainda está lá a pujança natural de Angola, nas planícies aluviais que se estendem da Funda ao Caxito, na pradaria que sobe suavemente até ao Úcua, no carrocel tisnado de mil verdes que cercam o Piri, nos poderosos Dembos, na suave trilha além Dange, passando por localidades com nomes sonoros, atraentes e sonhadores, Vista Alegre, Aldeia Viçosa, Quitexe…

Sob meus olhos ainda está lá a imensa imagem de pobreza das comunidades, as maiores das quais apenas com seus centros administrativos e comerciais urbanizados, orladas de musseques que até podem ter muitas casas de construção definitiva, mas espalhando-se de forma amontoada e anárquica, com desesperada sofreguidão de espaço quando há tanto viçoso espaço em Angola…

Em muitas aldeias quase todas as construções definitivas são centros administrativos, escolas, ou pequenos postos sanitários, visíveis a partir da estrada, até por que nessas localidades e àquela hora da manhã as batas brancas dos alunos, tantos a deslocarem-se por quilómetros a pé, marcam as secretas peregrinações do seu dia-a-dia e marcam com um pouco de optimismo as nossas mais simples profissões de fé!

Uma parte dessa estrada percorria eu pela primeira vez há mais de 46 anos e por isso sobrepuseram-se as imagens do passado e o que desfilava vertiginoso ficando preso aos instantes que retina e memória podiam reter e perceber…

De então para cá, muito mais gente, com sinais de pobreza distinta, apesar de agora haver visibilidade para coisas que há 40 anos não existiam… em muitas casas, mesmo pardieiros, erguem-se pequenas parabólicas, manobram motas e triciclos motorizados, por vezes uma carrinha de chaparia meio decrépita e sempre com o “quintal” ocupado de mercadoria ou de gente…

Passámos por muitos controlos da Polícia Nacional agora mobilizada para a Operação Transparência e para a Operação Resgate e muito atenta aos movimentos na estrada do café!

Até este “suposto estrangeiro” que sou eu, se teve de identificar numa das peneiras de identificação, fiscalização e controlo estrada fora… passei no teste!

Os impactos de natureza antropológica estão ainda longe de vencer a pesada carga de subdesenvolvimento e a devassidão informal que subsiste, onde também se escondem todo o tipo de ilegalidades e até de crimes!


2- Chegou-se ao Caxito entre alvores, um Caxito longilíneo, ao correr da estrada e em obras, debatendo-se irremediavelmente entre densos bananais e as infiltrações de água transbordando do Dange e dos canais de irrigação…

A pequena cidade já estava em movimento, ali no aglomerado onde se concentram mais serviços e comércio, com parte das ruas esventradas por causa das obras… imagino quando chover, entre lama, charcos e palúdicos mosquitos…

Depois da primeira ponte que atravessámos sobre o Dange, a anhara até ao Úcua, com novas comunidades instalando-se onde antes só havia deserto escaldante de espinheiras e dispersos embondeiros polvilhando o ambiente das longas guerras em terras de ninguém, onde repentinas emboscadas podiam ocorrer e onde o perigo era sempre latente…

Pequenas aldeias, algumas delas com a bandeira da UNITA içada, casas de pau a pique, folha de palmeira, mas também outras já em adobe, gente pobre, vivendo do carvão, da caça furtiva, duma subsistência dolorosa e de pouco mais, expondo seus troféus à beira da rota…

Olhos inquisidores percebiam-se de longe e, à volta das aldeias, homens e mulheres que partiam para as lavras, os homens com seus casacos acinzentados, surrados pelo tempo, alguns com chapéu de ocasião e sempre com a catana na mão, as mulheres com seus nenés nas costas e uma trouxa leve na cabeça (à noite a trouxa das que vêm das lavras será sempre maior)…

No Úcua começa o grande desafio do verde, pois a comunidade é uma porta de encruzilhada para as montanhas dos Dembos…

Lá estava a velha estrada para Pango Aluquém, agora toda alcatroada, um circuito a não perder pelos seus contrastes e beleza penetrando os Dembos, aqueles mesmos Dembos de Gombe-ya-Muquiama e do Cazuangongo, que só foram vencidos pela penetração colonial há precisamente 100 anos, à custa de quanta guerra e de quanto sangue!…

Desta vez seguimos em direcção ao Piri, com uma estrada de mil curvas e inclinações de 10%, reptando entre frondosas catedrais florestais… poucas abertas onde espreitava um céu cinzento com nuvens prontas para as repentinas descargas, entre humidade e sombra pincelada de algodões enevoados e de secreta vida fervilhando algures, no subsolo, nos robustos troncos e no ar, onde quer que seja…

Naquela região denotava-se um pouco mais de pujança nas gentes: mais produtos agrícolas expostos, não faltando o tradicional marufo, mais quefazer e alegria nas vestes e nos modos, contudo com muitas crianças que deveriam estar a ir para a escola envolvidas no comércio de ginguba e banana assada nos improvisados mercados à beira-estrada, amontoando-se em magote sempre que uma viatura pare para o negócio de ocasião.

Depois seguiu-se a pequena localidade da Mobil, a estrada para Quibaxe… lugares onde há 43 anos lutei pela independência integrando as unidades das FAPLA, enfrentando o Exército de Libertação Nacional da FNLA, reforçado com mercenários portugueses do Exército de Libertação de Portugal, spinolistas comandados pelo Coronel Santos e Castro e pelos militares das Forças Armadas Zairenses, enviados por Mobutu no seu entendimento com a CIA, que destacou para o efeito John Stockwell…

Há ainda restos das torres de segurança de antigas fazendas de café dos tempos coloniais, entre trepadeiras, capinzais e outros vestígios feitos escombros…

Fechei meus olhos, concentrei-me no passado e ouvi ainda o ressoar das metralhadoras de 12,7 montadas em carrinhas de que o ELNA estava apetrechada então… era um som filtrado pela floresta, cujo estampido fazia cair uma chuva de folhas caducas das árvores, deixando espanto e medo no coração dos animais…

Entre a Mobil e o ramal para Quibaxe, fui apanhado entre dois fogos, o fogo amigo das unidades das FAPLA que não conseguiram corresponder à minha voz para avançar e o fogo inimigo que chegava da estrada… tive que buscar as raízes duma frondosa mulemba para me abrigar nos seus escavados e, aproveitando um intervalo do combate, sair rastejando da linha de fogo, internando-me na floresta, onde permaneci durante dois dias, até conseguir retomar a ligação de novo às pequenas unidades das FAPLA instaladas na aldeia de Quiqueza, entre Quibaxe e Pango Aluquém, improvisada linha da frente nos Dembos, tal como foi a insuperável barreira da Cacamba…

Esse foi um dos momentos em que durante as peripécias vividas em tantos cenários de combate, nasci de novo!...


Quando recuperámos Quibaxe, por altura da independência, recebi a nova que havia nascido na pequena aldeia da Benza, em Pango Aluqém, o meu filho João Manuel, nove dias depois do dia 11, um sopro de alegria em dias verticais de tanta decisão, vividos entre o frenesim das refregas e as primeiras fortes bátegas da estação das chuvas, como só nos Dembos podem se sentir…

Se não tivéssemos alcançado a independência vencendo, então esse seria um ponto de partida para a guerrilha que haveria de se desencadear…

Minha pobre família estava a residir nessa aldeia, minha saudosa companheira Teresa Cassule, mãe de quatro dos meus rebentos, seu afectuoso pai e a sua irmã mais velha, Conceição, com a prole que crescia e eu havia passado por lá, jovem com os olhos húmidos de emoções, transbordando de vida e de amor, mas acalmando as angústias e os ânimos desesperados: o inimigo não passará, prometia eu… e de facto não passou!...

Não passou, como não passou antes, quando o fim do colonialismo era ainda uma miragem e os justos combatentes do MPLA da 1ª Região, se esvaíam de forças perante a avalanche de cercos que os asfixiavam nos seus refúgios, nos santuários em que só as mais densas florestas podem albergar!...

Como eu os vejo nos seus andrajos, um dia em que, sabendo serem eles uma das tantas vanguardas dos combatentes justos que buscavam a legitimidade da independência, apareciam das sombras, paradoxalmente como vencidos…

Com as minhas mãos limpas e um coração carregado de angústias pelas mais contraditórias razões, consegui contornar a pressão dos Serviços de Informação Militar das Forças Armadas Portuguesas onde os spinolistas eram dominantes e dos destacamentos da PIDE no Cuanza Norte…

Ali nos Dembos era alferes no destacamento perdido de Santa Clara, filial da Companhia de Caçadores 1204 recrutada a partir do Regimento de Infantaria 21 no Huambo e estacionada em Pango Aluquém, onde havia de conhecer Teresa Cassule… com os meus vinte e poucos anos, consegui minorar o sofrimento desses combatentes anónimos do MPLA, todos eles de origem humilde, camponesa, o seu depauperamento, o seu desamparo e fazer com que eles e suas famílias, das aldeias do Combe e do Esso, mantivessem acesa a chama do MPLA, que também fazia, secreta mas resolutamente, de minha própria chama!

Quando olhei dia 8 pela janela da viatura para os lados de Pango Aluquém e de Quibaxe, o coração teve um outro tan-tan e a humidade do ambiente inundou-me olhos adentro, num mar imenso de amor e saudade, trazido por ondas e ondas das mais desencontradas quão indómitas recordações, onde iam desembocar as imagens de todos os nossos maiores das lutas de libertação, de Agostinho Neto ao Che, de Amílcar Cabral a Fidel!

Depois era a descida em quase-vertigem para a ponte do Dange…

Em 1975, por altura já da independência, com os camaradas da minha pequena unidade fiz a partir de Quibaxe o reconhecimento a fim de saber se a ponte ainda estava lá… se ela estivesse provavelmente seguiríamos para Vista Alegre, conquistando terreno ao inimigo na direcção da capital do Uíge…

Hoje a ponte estava lá, reconstruída e sobranceira a um curso de água de montanha, já com alguma corrente, em 1975 não estava, havia sido destruída para impedir as FAPLA no acesso ao Uíge pela rota do café…


3- Do outro lado do Dange é já província do Uíge, com a estrada menos serpenteante, clareiras de verde-claro coroando as elevações suaves contrastando com o verde-escuro das baixas e o verde-esvoaçante dos dispersos bananais…

Comprou-se banana assada bem-criada e saborosa e ginguba assada em Vista Alegre, com as velhas casas comerciais descoloridas e de portas fechadas, respirando abandono e decrepitude, como velhos fantasmas perdidos no espaço e no tempo…

Nos negócios de ocasião que anima os antros do silêncio, os produtos do campo são trazidos em pequenas bacias aos forasteiros em viagem, nos pontos de encontro dos pequenos mercados, por jovens e crianças de olhos meio curiosos, meio ansiosos, “amigo não quer manga”?... “amigo está aqui jinguba!”… sabores únicos da Mãe África numa localidade perdida, com tanto angolano vivendo ainda na pobreza, em labirintos de pequenos negócios de ocasião carregados das ilusões próprias das crianças e dos jovens…

Os preços são um abismo se comparados aos de Luanda… até nesse aspecto a riqueza nada quer com quem produz, mesmo quando se produz tão pouco e de forma tão precária, à base de enxada, de catana, de músculo e suor…

Ansiosos de alcançar o Uíge, não se parou em Aldeia Viçoso, nem em Quitexe, a hora programada para a reunião com os nossos camaradas da Acção Social Para Apoio e Reinserção aproximava-se e não podiam haver mais paragens…

Uma coisa não passou despercebida: as redes de iluminação pública solar nas comunas e em Quitexe, apresentavam visíveis sinais de vandalização… esforços do estado e das administrações locais nesse sentido, foram sabotados e hoje os restos do que ficou fazem parte dos fantasmas, das miragens e das imagens próprias da miséria…

Nas proximidades da capital provincial, umas poucas serrações eram visíveis da estrada, algumas com indícios de não estarem em actividade… as serrações foram os únicos sinais de existência industrial que registei na viagem, para além dos lugares de exploração de inertes, todos eles com sinais da presença chinesa, ao longo de todo o percurso e mesmo na capital provincial…

O povo angolano está a viver ainda muito mais de agricultura de subsistência e de comércio de ocasião, do que de alguma actividade industrial séria e mesmo no sector da madeira, nem indústria de mobiliário parece existir e se a há é artesanal!

A cidade do Uíge deparou-se-nos ainda fresca da vassourada de chuva que caiu ao longo das primeiras horas da manhã, antes da nossa chegada… casas e prédios com as marcas da permanente humidade, muita gente nas ruas no centro administrativo e comercial… e algum trânsito.

Fora desse centro, a cidade é musseque, com seu labirinto perdido de ruelas, espalhados pelas colinas circundantes, sem a adequada urbanização, onde até os sinais de riqueza perdem peso nos terrenos inundados de barro vermelho, onde mesmo assim escasseia o arvoredo.

Algumas novas construções não chegam para contrariar a mole do subúrbio e algumas assemelham-se a inúteis gestos de supérfluo e vazio, como o edifício da Assembleia Provincial, perante o mar circundante de tão irremediável quão anárquica luta pela sobrevivência, num surdo estado de quase torpor que a paisagem urbana nos transmite na sua dimensão próxima e distante.

Depois o centro administrativo nas suas fachadas transmite ainda o peso do passado colonial, de onde é tão difícil a luta consciente e inteligente para se poder sair, como aliás em todas as outras capitais provinciais… precisaríamos de dirigentes eternamente rebeldes resolutamente, activos e lúcidos, mas aquelas pesadas contingências, agarradas ao passado, quanta acomodação vegetativa está a gerar na vontade e psicologia dos nossos dirigentes e administrativos?

Fica-se com uma enorme sensação de impotência perante toda esta paisagem humana avassaladora como as florestas, carne da nossa própria carne, que nos devora, que contraria o fulgor e a raiva surda típica dos combatentes, das nossas utopias de longa data num país em que afinal a maior parte dos resgates ainda está por fazer e multidões de pobres lutam por sobrevivência num pântano tornado labirinto, de onde é tão precário existir e tão difícil sair.


Por fim a imagem da reunião com nossos camaradas, pobres entre os pobres, mas resolutos até ao fim de suas vidas, apesar de tantas incertezas e doenças e dores e óbitos e defraudadas espectativas, ávidos dum sopro de esperança vital, como se fosse o último balão de oxigénio!

PeloUíge e pela ASPAR provincial havia passado há mais de 8 anos e desde então, sob o ponto de vista humano, nada entretanto mudou!

Acho que será desnecessário narrar o regresso, na escadaria de retorno ao litoral, por que ainda estamos agarrados pelas lianas de séculos de solidão em que mergulham os pés de nossa telúrica existência, a única mola impulsionadora que numa contraditória dialética nos faz enquanto houver vida e força, levantar do chão!

Martinho Júnior - Luanda, 10 de Novembro de 2018, em saudação aos 43 anos da independência de Angola.

Imagens:
- Hoje, 11 de Novembro de 2018, foi içada a Bandeira Monumento, junto ao Museu Militar em Luanda;
- Na antiga estrada do café e até à cidade do Uíge, é agora a banana o produto de maior produção;
- Circuita da estrada além Dange e já na província do Uíge, algures entre Vista Alegre e Aldeia Viçosa;
- Vista aérea do centro administrativo da cidade do Uíge;
- Nossos camaradas da Acção Social Para Apoio e Reinserção da província do Uíge.

Assassinos | De 1945 até hoje, 20 a 30 millhões de mortes consumadas pelos USA


Manlio Dinucci*

É um facto, não é uma análise, nem mesmo uma opinião: a “ordem internacional livre e aberta”, promovida desde 1945 pelos Estados Unidos, custou a vida de 20 a 30 milhões de pessoas em todo o mundo. Nenhum presidente, seja qual for, conseguiu mudar o ritmo desta máquina da morte.

No resumo de seu último documento estratégico - 2018 National Defense Strategy of the United States of America (cujo texto completo é um segredo) - o Pentágono afirma que “depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e os seus aliados instauraram uma ordem internacional livre e aberta para salvaguardar a liberdade e os povos da agressão e da coerção”, mas que “agora esta ordem está a ser minada a partir do interior pela Rússia e pela China, que violam os princípios e as regras das relações internacionais”. Alteração completa da realidade histórica.

O Prof. Michel Chossudovsky, Director do Centre for Research on Globalization, recorda que estes dois países, hoje classificados como inimigos, são aqueles que, quando eram aliados dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, pagaram a vitória do Eixo nazi-fascista Berlim-Roma-Tóquio com o preço mais elevado em vidas humanas: a União Soviética, cerca de 26 milhões e a China, 20 milhões, em comparação com pouco mais de 400 mil dos Estados Unidos.

Com esta premissa, Chossudovsky, do Global Research, apresenta um estudo documentado por James A.Lucas, sobre o número de pessoas mortas pela série ininterrupta de guerras, golpes de Estado e outras operações subversivas efectuadas pelos Estados Unidos, desde o final da guerra, em 1945, até hoje: estima-se de 20 a 30 milhões [1]. Cerca do dobro do número de vítimas da Primeira Guerra Mundial, cujo centenário acaba de ser celebrado em Paris, com um “Fórum da Paz”. Além dos mortos, incluímos os feridos, que muitas vezes são deixados com deficiências: alguns especialistas estimam que, por cada pessoa que morreu na guerra, outras 10 ficam feridas. Isto significa que os feridos provocados pelas guerras USA atingem centenas de milhões. À quantidade estimada no estudo adiciona-se um número inquantificado de mortes, provavelmente centenas de milhões, provocados desde 1945 até hoje, pelos efeitos indirectos das guerras: fomes, epidemias e migração forçada, escravidão e exploração, danos ambientais, roubo de recursos às necessidades vitais a fim de cobrir as despesas militares.

O estudo documenta as guerras e golpes realizados pelos Estados Unidos em mais de 30 países asiáticos, africanos, europeus e latino-americanos. O que revela que as forças militares dos EUA são directamente responsáveis por 10 a 15 milhões de mortes, causadas por grandes guerras: as da Coreia e do Vietname e as duas contra o Iraque. Outros 10 a 14 milhões de mortes foram provocadas pelas guerras ‘por procuração’, conduzidas pelas forças armadas aliadas, treinadas e comandadas pelos USA no Afeganistão, em Angola, no Congo, no Sudão, na Guatemala e noutros países. A Guerra do Vietname estendeu-se ao Camboja e ao Laos, causou um número de mortes estimado em 7,8 milhões (além de um grande número de feridos e lesões genéticas nos orgãos reprodutores, devido à dioxina espalhada pelos aviões de guerra USA). A guerra ‘por procuração’, na década de oitenta, no Afeganistão, foi organizada pela CIA que treinou e armou, com a cola-boração de Osama bin Laden e do Paquistão, mais de 100.000 mujaidin para combater as tropas soviéticas caídas na “armadilha afegã” (como mais tarde a definiu Zbigniew Brzezinski, salientando que o treino dos mujaidin havia começado em Julho de 1979, cinco meses antes da invasão soviética do Afeganistão).

O golpe mais sangrento foi organizado na Indonésia, em 1965, pela CIA: forneceu aos esquadrões da morte indonésios, a lista dos primeiros 5.000 comunistas e outros a serem mortos. O número de abatidos é estimado entre meio milhão e 3 milhões.

Esta é “a ordem internacional livre e aberta" que os Estados Unidos, independentemente dos que presidem à Casa Branca, procuram alcançar para “salvaguardar os povos da agressão e da coerção”.



A mobilização dos "coletes amarelos" – nova etapa das lutas em França


Rémy Herrera

É uma mobilização de massa profundamente nova a que surgiu nestas últimas semanas em França: a dos "coletes amarelos". O vestuário de alta visibilidade (todo automobilista deve ter um a bordo do veículo, por segurança) é usado como sinal unificador. Centenas de milhares de franceses manifestam assim a sua desaprovação em relação à actuação do presidente Emmanuel Macron.

Trata-se de uma mobilização nova pela sua origem, sua amplitude e suas formas de rebelião popular. Tudo começou em pequena escala no fim de Outubro através de uma simples petição cívica, sem etiqueta partidária nem sindical, sem líderes nem organizações, difundida nas redes sociais. Ela reclamava a anulação do aumento do imposto sobre o combustível decidido recentemente pelo governo. Alguns dias mais tarde, cerca de um milhão de pessoas o haviam assinado e palavras-de-ordem começavam a apelar ao "bloqueio do país". O movimento de protesto, que se referia inicialmente ao preço da gasolina e o peso dos impostos, estendeu-se muito rapidamente "à vida cara", ao "fraco poder de compra", às "grandes lojas a boicotar", para se concentrar finalmente numa palavra-de-ordem clara: "Macron démission!". O ponto comum destas contestações, fundindo todos os azimutes, era exprimir um mal estar generalizado, uma "vaga de fundo" da população, uma recusa das desigualdades sociais causadas pela aplicação do projecto neoliberal. 

O paroxismo foi atingido sábado 17 de Novembro: cerca de 280 mil "coletes amarelos" (segundo os números da polícia), espalhados em mais de 2000 comícios no conjunto do território francês, bloqueavam o acesso a eixos rodoviários nevrálgicos, portagens rodoviárias ou supermercados. Inexperientes na maior parte, saídos espontaneamente à rua, eles muitas vezes estavam a participar na sua primeira acção – menos de 10% das manifestações foram declaradas às prefeituras. Em muitas aldeias das zonas rurais foi mesmo a primeiríssima vez que houve uma manifestação. O balanço da jornada salda-se por um morte (uma infeliz mulher "colete amarelo" atropelada por uma condutora que perdeu o controle do seu veículo), cerca de 500 feridos, dos quais uma dezena gravemente (e 93 polícias), mais de 280 interpelações por "actos de violência" (na maioria automobilistas que forçaram as barragens filtrantes)...

Em Paris, numa bagunça indescritível – e incontrolável pelas forças da ordem – uma multidão de várias dezenas de milhares de "coletes amarelos", extremamente heterogénea e absolutamente inclassificável, reunindo adultos jovens (por vezes com os seus filhos), aposentados (inclusive avós exasperadas pela baixa das suas pensões), empregados de escritório, operários, artesãos, motociclistas, empregados de serviços de entrega, motoristas de táxi, funcionários, assistentes de cuidados de saúde, alunos do liceu, jovens empresários, mulheres de véu, jovens da periferia, rastafáris com penteados rasta, pessoas de todas as cores e religiões, de todas as camadas populares, desfilavam numa desordem incrível nos Campos Elíseos cantando A Marselhesa, "Paris, de pé, levanta-te" e, naturalmente... "Macron démission!".

Múltiplos pequenos grupos de "coletes amarelos", improvisados, a chegarem de toda a parte, muito móveis, conseguiam forçar uma passagem e contornar – sem violência – as linhas de polícias e gendarmes, ultrapassados por toda a parte. Barricadas eram improvisadas em diversos lugares da capital, feitas de barreiras de segurança, paletes de madeira, bicicletas, de tudo aquilo que havia nos passeios. Latas de lixo eram incendiadas. As boutiques de luxo dos quarteirões elegantes preferiam fechar as suas portas – se bem que nenhuma vitrina houvesse sido partida, nem nenhum roubo assinalado. Aqui, lia-se numa etiqueta: "Aux armes!" (palavras do hino nacional); ali via-se a bandeirola: "Nem Macron nem fachos, Black Blocage Total" (Total é a multinacional petrolífera francesa que, parece, não teria pago aquilo que deve ao fisco). Acolá, uma guilhotina desenhada, sem comentário. Alhures, ouvia-se "Isto é como em Maio de 1968", "Cólera", "É a guerra", ou ainda "Macron à fogueira!". Apesar dos cordões da CRS, vários milhares de manifestantes pacíficos, mas resolvidos a fazerem-se ouvir, conseguiam enfiar-se na rua que leva ao Palácio do Eliseu, tendo de ser repelidos por escudos, bastões e gases lacrimogéneos das forças da ordem, acabando por se dispersar na calma. Todo o mundo estava pasmado – "coletes amarelos" e polícias inclusive. Nunca se viu algo como isso...

No dia seguinte, os protestos prosseguiam em toda a França e dois dias depois, segunda-feira 19 de Novembro, os acessos a uma vintena de refinarias de petróleo encontravam-se bloqueados. No dia 20, em Paris, as vias do caminho de ferro da estação do Norte eram invadias e os trajectos para o aeroporto Roissy Charles-de-Gaulle dificultados. Em quase todas as regiões da França, muitas acções do bloquei9os continuavam igualmente a ser efectuadas: em Toulouse, em torno de Lyon, em Bordéus, na Île-de-France, no Vaucluse, na Normadia, na Bretanha, no Norte, na Córsega e até em Departamentos do Ultramar... Na ilha da Reunião (a mais de 9300 km de Paris), onde as desigualdades sociais são gritantes, as manifestações transformaram-se em tumulto. O exército foi chamado como reforço e o cessar-fogo instaurado nas comunas mais agitadas. Nas redes sociais, os "coletes amarelos" já preveniram: próximo encontro no sábado, 24 de Novembro...

Actor sem par, sorriso escarninho e cheio de desprezo, o presidente Macron finge ignorar o levantamento de massa, tão inédito quanto heteróclito, mas motivado e determinado a prosseguir a luta. Quanto tempo poderá assim fazer quando as sondagens revelam que entre 75 e 85% dos franceses dizem apoiar os "coletes amarelos"? Por enquanto, o presidente contentou-se em prevenir que se mostrará "intratável" face ao "caos"... da ilha Reunião. Habitualmente tão seguro de si, o primeiro-ministro Édouard Philippe apareceu na defensiva afirmando que "o governo não mudará de rumo" e "não tolerará a anarquia". O ministro do Interior, Chritophe Castaner, procurou aparentar firmeza. Convocado em socorro, o ministro da Ecologia e da Energia, François de Rugy, declara, sem rir, que o impostos sobre os combustíveis deveria servir para financiar a "transição ecológica" – em quantos centimos de euro, se a França não tem política ambiental? A inquietação do poder é palpável.

Que a direita e a extrema-direita tentam "recuperar" a mobilização dos "coletes amarelos", desprovida de líderes visíveis, é evidente. Que os grandes media insistam insidiosamente, para desacreditar o movimento e jogar óleo no fogo, sobre (raríssimas) propostas xenófobas ou homofóbicas efectuadas nestas acções por alguns manifestantes (aliás imediatamente travadas pelos seus próprios amigos no local), é igualmente evidente. Na hora do capitalismo selvagem e de uma ideologia dominante que atiça os ódios e lança uns contra os outros para tentar salvar as elites, o povo que aguenta e que sofre é feito igualmente destas contradições, infelizmente. Mas é justamente o papel dos militantes progressistas e dos esclarecidos estar ao seu lado nas lutas para mostrar àquelas e àqueles que estão a afastar-se do caminho da solidariedade e da fraternidade. Será preciso que o rosto dos explorados seja sempre sorridente? Desejar-se-ia ainda por cima que os pobres que lutam pela sua sobrevivência e sua dignidade fossem fotogénicos?

Muito mais preocupante é o facto de que as direcções dos partidos e dos sindicatos de esquerda se mantenham – ainda por enquanto, e muito generalizadamente – a distância desta rebelião popular. Será que não compreendem que se abre, com a revolta dos "coletes amarelo", a segunda etapa das lutas do povo francês contra a tirania neoliberal e pela justiça social? Será que não apreendem que se trata da continuação, de um modo inovador, combativo, vivo e numa escala extraordinariamente ampliada, do mesmo processo de generalização das mobilizações que lançou nas greves e manifestações milhares de camaradas sindicalizados na última Primavera? Será que não vêem que os "coletes amarelos", a seu modo (não sem coragem, nem risco e perigo) estão decididos a ocupar o enorme vazio deixado pelo abandono da esquerda institucionalizada, desde há décadas, da defesa dos interesses de classe de todos os trabalhadores e do internacionalismo em relação aos povos do mundo? Será que não sabem que é a luta das classes que faz a história?

Felizmente, as coisas podem mudar. E aquilo que parece esquecido nas altas esferas, as baixas se encarregarão de o recordar. Terça-feira 20 de Novembro, um primeiro sindicato de transportadores anunciava seu apoio aos "coletes amarelos". No dia 21 à noite, as acções dos electricitários e gasistas recomeçavam (se é que elas realmente cessaram desde Junho), intensificando-se: várias refinarias e reservatórios petrolíferos (em Gonfreville-L'Orcher e Oudalle na proximidade do Havre, Feyzin nos arrabaldes de Lyon, La Mède perto de Marselha, mas também em outros locais, nomeadamente os que alimentam os aeroportos de Blagnac [Toulouse] e Saint Exupéry [Lyon]…) declaravam-se em greve. Ao mesmo tempo, sabia-se que o "capitão da indústria" Carlos Ghosn, presidente-director-geral do grupo automobilista francês Renault e presidente do Conselho de Administração da Nissan, era preso e ouvido pela justiça japonesa por suspeita de fraude fiscal e desvio de fundos da empresa para fins pessoais. A revolta de um povo contra este mundo será tão difícil de entender? 

22/Novembro/2018

Ver também:

LIBERTAR ASSANGE ANTES QUE SEJA TARDE (petição)


Julian Assange está sob a ameaça iminente de ser extraditado para as masmorras dos EUA

O conluio entre o novo governo equatoriano e os governos do Reino Unido e EUA está em andamento acelerado. 

Eles pretendem entregá-lo aos carrascos dos tribunais trumpianos. 

Os seus advogados foram proibidos de visitá-lo na Embaixada do Equador em Londres, onde está asilado há anos. 

O antigo embaixador do Equador acaba de ser removido sem quaisquer explicações. 

Assine a petição em favor do fundador da WikiLeaks 

Resisitir.info

Espanha apoiará Brexit após consenso com UE sobre Gibraltar


Península de seis quilómetros quadrados é território britânico reivindicado pela Espanha há três séculos, e ameaçava fazer fracassar o acordo do Brexit. Londres garante continuação de conversas bilaterais com Madri.

A União Europeia (UE) está mais perto de alcançar um consenso sobre o Brexit, depois que, neste sábado (24/11), o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, retirou a ameaça de boicotar o acordo devido à disputa sobre o futuro status da ilha de Gibraltar.

"Nós recebemos suficientes garantias para poder alcançar a solução para um conflito que tem durado mais de 300 anos, entre o Reino Unido e a Espanha", comentou o chefe de governo à imprensa, após um encontro entre os 27 líderes da UE em Bruxelas, que se estendeu por toda a noite.

Antes, num comunicado de última hora, Londres assegurara que manterá as conversas bilaterais com Madri sobre Gibraltar após 29 de Março de 2019, quando deve entrar em vigor o acordo de separação entre o Reino Unido e a UE, a ser aprovado numa cúpula dos atuais 28 países da UE neste domingo, em Bruxelas.

"Acabo de anunciar ao rei que a Espanha alcançou um acerto sobre Gibraltar", prosseguiu o líder socialista espanhol. "O Conselho Europeu, portanto, se realizará amanhã. A Europa e o Reino Unido aceitaram as exigências da Espanha. A Espanha suspendeu o veto e votará a favor do Brexit."

Rochedo da discórdia secular

Gibraltar é uma península rochosa de seis quilómetros quadrados na costa sul da Península Ibérica, com 30 mil habitantes. Ocupada em 1704 pela Grã-Bretanha, em 1713 a Paz de Utrecht a conferiu oficialmente ao reino britânico. Apesar disso, a Espanha insiste até hoje em seus direitos territoriais.

Devido às tensões bilaterais, a fronteira com a Espanha ficou fechada entre 1969 e 1985. Desde 2002 Londres define Gibraltar como "território ultramarino" seu, evitando as associações negativas do termo "colónia real". No referendo sobre o Brexit, 96% dos habitantes britânicos da península votaram "não".

Um porta-voz da PM britânica, Theresa May, confirmou conversações com a Espanha "que envolveram diretamente o governo de Gibraltar", dadas "algumas circunstâncias que são específicas" a esse território. Essas conversações "foram construtivas e estamos ansiosos por adotar a mesma abordagem na relação futura", concluiu.

Simultaneamente à coletiva de Sánchez, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, emitiu convite por carta aos líderes dos Estados-membros da para a cúpula do dia seguinte.

Segundo o documento, o acordo do Brexit reduz "os riscos e perdas resultantes da retirada do Reino Unido" do bloco europeu, protegendo os direitos dos cidadãos europeus e o processo de paz na Irlanda do Norte. Ao mesmo tempo, garante que os britânicos seguirão pagando o que devem à UE, no período de transição.

"Vou recomendar no domingo que se aprove o resultado das negociações do Brexit", anunciou Tusk. "E, embora ninguém vá ter razões para estar contente nesse dia, eu gostaria de enfatizar uma coisa: nesta época crítica, a UE27 passou no teste de unidade e solidariedade."

AV/ap/afp/rtr | Deutsche Welle | Foto: Chefe de governo espanhol, Pedro Sánchez, anuncia acerto sobre futuro do status de Gibraltar

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