A mídia brasileira de maior audiência é controlada por uma elite econômica formada por homens brancos |
Uma sociedade só pode ser democrática se as diferentes opiniões e culturas que a compõem tiverem espaço para se manifestar. O direito à comunicação é indissociável do exercício da cidadania
Como uma simples vaquinha online,
feita por um youtuber negro, nos leva a refletir sobre quem controla a mídia no
Brasil
Na semana passada, a polêmica em
torno da vaquinha online promovida pelo youtuber Spartakus
Santiago, para arrecadar dinheiro para consertar a tela quebrada de seu
computador acendeu nas redes sociais o debate sobre o privilégio branco quando
o assunto é apropriação tecnológica ou infraestrutura para se produzir
comunicação.
Muitos reagiram em tom crítico à
solução encontrada pelo youtuber para seguir produzindo conteúdo nas redes
digitais. Alegaram que ele estaria se aproveitando de sua militância para
“bancar seus luxos” (referência ao fato de seu computador ser um MacBook).
Na realidade, pela leitura dos twitts e
comentários que circularam na rede logo após o lançamento do crowdfunding,
o que realmente irritou alguns usuários e produtores concorrentes foi a frase
“para não ficar atrás dos brancos” dita por Spartakus em seu vídeo de divulgação.
A polêmica reforça a necessidade
de discutirmos a pauta “comunicação e negritude” por um viés que vá além da
questão da representação, incorporando à agenda o controle sobre os meios de
produção dos conteúdos e a apropriação tecnológica.
Do ponto de vista histórico, é
preciso levar em conta que o racismo, como estruturante da sociedade
brasileira, impediu ao longo de séculos (e segue impedindo) que negros tenham acesso a recursos que
viabilizem sua própria comunicação. E este não é exatamente um debate novo, já
que remonta, pelo menos, ao início do século XX, quando grêmios e associações
recreativas formadas por negros buscavam financiar a expansão da chamada
imprensa negra no Brasil.
Atualmente, a ausência de negros
no mercado da comunicação ainda é uma realidade. Na pesquisa Media Ownership
Monitor Brazil realizada em 2017 pelo Intervozes,
com apoio dos Repórteres
Sem Fronteiras, dos 50 principais veículos de mídia no Brasil em termos de
audiência, nenhum deles possui no comando dos negócios uma pessoa negra ou é
historicamente identificado às pautas da negritude.
O monitoramento, que levou em
conta veículos de TV, rádio, Internet e impressos, concluiu que “a mídia
brasileira de maior audiência é controlada, dirigida e editada, em sua maior
parte, por uma elite econômica formada por homens brancos”. Não é preciso muito
esforço analítico para relacionar o controle da informação midiática por
agentes brancos com a permanência do racismo em nossa
sociedade.
Ambiente digital
Se é verdade que o capital
econômico é concentrado na mão de uma elite que é majoritariamente branca, o
que faz com que seja esta a camada da sociedade detentora dos meios para
produzir comunicação, é real também que o acúmulo do capital cultural por parte
dos negros reproduza esta mesma distorção, e isto se reflete na baixa presença
de influenciadores negros no ambiente digital.
Na Internet, a presença de negros
produtores de conteúdo tem aumentado significativamente nos últimos anos –
ainda que o acesso à internet continue sendo desigual entre brancos e negros. E
uma das possíveis explicações para isto é o aumento do capital cultural, que se
produz por alguma ascensão econômica e pela entrada de mais negros nas universidades.
Hoje muitos coletivos negros têm
buscado produzir conteúdos e influenciar o debate público nas redes, como a Rede de Ciberativistas Negras, as Blogueiras Negras,
e tantos outros. Algumas saem, inclusive, do lugar de produção de conteúdo para
discutir a própria lógica da apropriação tecnológica, como a turma do PretaLab.
No universo da produção de
conteúdo online, no entanto, os mais acessados ainda seguem sendo os produtores
e difusores brancos. Pelo menos é o que o mostra a pesquisa “Monopólios
Digitais: concentração e diversidade na internet", realizada pelo
Intervozes e lançada no início de 2018.
A pesquisa levantou quem são os
50 primeiros canais do Youtube em número de seguidores. No universo dos
chamados influenciadores – ou pessoas e coletivos que produzem conteúdos
diversos (fazem comentários sobre amenidades, política, esquetes, “trollagens”
ou paródias de músicas) apenas um entre 25 é negro. Trata-se de Everson
Zoio, que aparece na 22ª posição no ranking geral.
Além dele, que fala sobre temas
diversos, apenas outros dois canais podem ser considerados atrelados à difusão
da cultura e estética negras. São eles o Kondzila, canal de difusão de clipes
de artistas do funk, que aparece na 2ª posição no ranking, o GR6 Explode,
também de difusão de clipes, que aparece na 11º posição.
Vale citar ainda, dentre os 50
primeiros, o canal Parafernalha, produtor e esquetes de comédia, que possui um
ator negro e aparece na 12ª posição, o canal Você Sabia?, que aporta na 13ª
posição e tem um dos apresentadores negro e o canal da cantora Anitta, que
aparece na 25ª posição.
Mas afinal, negros não fazem sucesso no YouTube?
O youtuber Kias Neira já tentou
discutir isto. No vídeo, ele questiona a sugestão que lhe deram
sobre fazer vídeos de desafios: “Pra crescer eu tenho que me f****? Eu tenho
que fazer desafio comendo pimenta?”. Seu canal, criado em 2015, tem hoje um
pouco mais de 11 mil seguidores.
A resposta mais imediata a esta
pergunta seria atrelar esta ausência ou baixo sucesso de negros YouTube ao
fator estrutural, ou seja, da apropriação técnica e/ou tecnológica dos recursos
necessários para esta produção. Assim como há uma barreira imposta pela
dificuldade de acesso à internet, a falta de bons equipamentos ainda pode ser
um problema para permitir a presença de youtubers negros, como mostrou o caso
do próprio Spartakus, citado no início deste texto, que recorreu à vaquinha
online para seguir produzindo.
E mesmo se considerarmos que a
barreira de entrada para se ter um canal no YouTube seja relativamente baixa em
comparação com os meios tradicionais de comunicação, dependendo, basicamente,
de ter se um bom equipamento de captação de imagem e uma boa qualidade de
acesso à internet, o mesmo não se pode dizer da sustentabilidade do canal.
Crescer enquanto influenciador
nas redes sociais requer infraestrutura, o que se não se consegue sem
investimento, seja de capital próprio/familiar ou por meio de patrocínios de
empresas e grupos. O que nos leva a outra questão: seriam os youtubers negros
subfinanciados pelos patrocinadores?
Responder a esta pergunta
dependeria da realização de pesquisa que pudesse mapear: a) o perfil econômico
dos principais youtubers brasileiros para determinar se o poder aquisitivo do
próprio youtuber e/ou de seus familiares altera nas apostas de incremento no
canal; b) quem são os principais patrocinadores dos youtubers brasileiros e em
quais canais estão sendo aportados os maiores recursos.
Por outro lado, a fala de Nátaly
Nery, dona do canal “Afros e Afins”, durante a entrevista “Onde
estão os negros no Youtube?”, realizada pelo PC Faria, pode ser uma chave
interessante para compreender a diferença entre “canais de branco” e “canais de
preto” e, inclusive, para discutir este possível subfinanciamento. Afinal
“o negro é entendido como nicho”, diz ela na entrevista.
Os canais de negros são muitas
vezes considerados como produtores de conteúdo “específico”, “de negros” ou “de
minoria”, e não como produtores de um conteúdo universal. Isto acontece porque,
no Brasil, assim como em outros países em que o racismo contra negros é
estrutural, a branquitude é a norma, já que representa um padrão supostamente
universal.
Entender o papel
predominantemente branco é tão essencial para desconstruir o racismo no Brasil
quanto à compreensão sobre machismo e patriarcado são fundamentais para
entender a reprodução da opressão entre os gêneros. Fazer isto requer a
ampliação do diálogo para além do universo acadêmico e do ativismo político, ou
seja, implica acessar os meios de comunicação.
Hoje, mais do que nunca, fomentar
a participação de negros no ambiente midiático, seja ele o tradicional ou o
digital é fundamental para a desconstrução da branquitude e, por consequência,
da desconstrução do racismo.
Vale criar políticas de cotas na
radiodifusão, afinal, concessões públicas de rádio e televisão não podem se
eximir do dever de garantir a diversidade em sua programação.
É claro que o crescimento de
influenciadores digitais negros acaba por incidir diretamente na maior presença
de negros também nos meios tradicionais de rádio e televisão, uma vez que fica
impossível “fazer a egípcia” diante da potência da audiência destes
comunicadores no ambiente digital. Não é por acaso que muitos desses hoje são
presença garantida em programas de TV. Precisamos checar, no entanto, se este
movimento é suficiente e se vem acontecendo em todos os canais ou apenas em
alguns.
No caso dos youtubers, valeria
questionar às empresas patrocinadoras quais são os recursos destinados aos
comunicadores negros. E quem sabe um boicote àquelas que não investem recursos
neste grupo poderia produzir uma diversificação maior no investimento. Afinal,
negros usam maquiagem, jogam videogames e consomem brinquedos também.
Apropriar-se das novas
tecnologias, indo além do uso de aplicações e das camadas superficiais da
produção dos conteúdos, por fim, tem se mostrado essencial para o chamado
controle da informação. E entender isto do ponto de vista das desigualdades de raça (e também de gênero e
classe) é essencial para combater a permanência do racismo no Brasil.
Ana Claudia Mielke* | Carta
Capital
*Jornalista, mestre em Ciências
da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo
Brasil de Comunicação Social.
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