domingo, 25 de novembro de 2018

O privilégio branco no controle da informação no Brasil e o racismo

A mídia brasileira de maior audiência é controlada por uma elite econômica formada por homens brancos
Uma sociedade só pode ser democrática se as diferentes opiniões e culturas que a compõem tiverem espaço para se manifestar. O direito à comunicação é indissociável do exercício da cidadania
Como uma simples vaquinha online, feita por um youtuber negro, nos leva a refletir sobre quem controla a mídia no Brasil

Na semana passada, a polêmica em torno da vaquinha online promovida pelo youtuber Spartakus Santiago, para arrecadar dinheiro para consertar a tela quebrada de seu computador acendeu nas redes sociais o debate sobre o privilégio branco quando o assunto é apropriação tecnológica ou infraestrutura para se produzir comunicação.

Muitos reagiram em tom crítico à solução encontrada pelo youtuber para seguir produzindo conteúdo nas redes digitais. Alegaram que ele estaria se aproveitando de sua militância para “bancar seus luxos” (referência ao fato de seu computador ser um MacBook).

Na realidade, pela leitura dos twitts e comentários que circularam na rede logo após o lançamento do crowdfunding, o que realmente irritou alguns usuários e produtores concorrentes foi a frase “para não ficar atrás dos brancos” dita por Spartakus em seu vídeo de divulgação.

A polêmica reforça a necessidade de discutirmos a pauta “comunicação e negritude” por um viés que vá além da questão da representação, incorporando à agenda o controle sobre os meios de produção dos conteúdos e a apropriação tecnológica.

Do ponto de vista histórico, é preciso levar em conta que o racismo, como estruturante da sociedade brasileira, impediu ao longo de séculos (e segue impedindo) que negros tenham acesso a recursos que viabilizem sua própria comunicação. E este não é exatamente um debate novo, já que remonta, pelo menos, ao início do século XX, quando grêmios e associações recreativas formadas por negros buscavam financiar a expansão da chamada imprensa negra no Brasil.

Atualmente, a ausência de negros no mercado da comunicação ainda é uma realidade. Na pesquisa Media Ownership Monitor Brazil realizada em 2017 pelo Intervozes, com apoio dos Repórteres Sem Fronteiras, dos 50 principais veículos de mídia no Brasil em termos de audiência, nenhum deles possui no comando dos negócios uma pessoa negra ou é historicamente identificado às pautas da negritude.

O monitoramento, que levou em conta veículos de TV, rádio, Internet e impressos, concluiu que “a mídia brasileira de maior audiência é controlada, dirigida e editada, em sua maior parte, por uma elite econômica formada por homens brancos”. Não é preciso muito esforço analítico para relacionar o controle da informação midiática por agentes brancos com a permanência do racismo em nossa sociedade. 

Ambiente digital

Se é verdade que o capital econômico é concentrado na mão de uma elite que é majoritariamente branca, o que faz com que seja esta a camada da sociedade detentora dos meios para produzir comunicação, é real também que o acúmulo do capital cultural por parte dos negros reproduza esta mesma distorção, e isto se reflete na baixa presença de influenciadores negros no ambiente digital.

Na Internet, a presença de negros produtores de conteúdo tem aumentado significativamente nos últimos anos – ainda que o acesso à internet continue sendo desigual entre brancos e negros. E uma das possíveis explicações para isto é o aumento do capital cultural, que se produz por alguma ascensão econômica e pela entrada de mais negros nas universidades.

Hoje muitos coletivos negros têm buscado produzir conteúdos e influenciar o debate público nas redes, como a Rede de Ciberativistas Negras, as Blogueiras Negras, e tantos outros. Algumas saem, inclusive, do lugar de produção de conteúdo para discutir a própria lógica da apropriação tecnológica, como a turma do PretaLab.

No universo da produção de conteúdo online, no entanto, os mais acessados ainda seguem sendo os produtores e difusores brancos. Pelo menos é o que o mostra a pesquisa “Monopólios Digitais: concentração e diversidade na internet", realizada pelo Intervozes e lançada no início de 2018.

A pesquisa levantou quem são os 50 primeiros canais do Youtube em número de seguidores. No universo dos chamados influenciadores – ou pessoas e coletivos que produzem conteúdos diversos (fazem comentários sobre amenidades, política, esquetes, “trollagens” ou paródias de músicas) apenas um entre 25 é negro. Trata-se de Everson Zoio, que aparece na 22ª posição no ranking geral.

Além dele, que fala sobre temas diversos, apenas outros dois canais podem ser considerados atrelados à difusão da cultura e estética negras. São eles o Kondzila, canal de difusão de clipes de artistas do funk, que aparece na 2ª posição no ranking, o GR6 Explode, também de difusão de clipes, que aparece na 11º posição.

Vale citar ainda, dentre os 50 primeiros, o canal Parafernalha, produtor e esquetes de comédia, que possui um ator negro e aparece na 12ª posição, o canal Você Sabia?, que aporta na 13ª posição e tem um dos apresentadores negro e o canal da cantora Anitta, que aparece na 25ª posição.

Mas afinal, negros não fazem sucesso no YouTube?

O youtuber Kias Neira já tentou discutir isto. No vídeo, ele questiona a sugestão que lhe deram sobre fazer vídeos de desafios: “Pra crescer eu tenho que me f****? Eu tenho que fazer desafio comendo pimenta?”. Seu canal, criado em 2015, tem hoje um pouco mais de 11 mil seguidores.

A resposta mais imediata a esta pergunta seria atrelar esta ausência ou baixo sucesso de negros YouTube ao fator estrutural, ou seja, da apropriação técnica e/ou tecnológica dos recursos necessários para esta produção. Assim como há uma barreira imposta pela dificuldade de acesso à internet, a falta de bons equipamentos ainda pode ser um problema para permitir a presença de youtubers negros, como mostrou o caso do próprio Spartakus, citado no início deste texto, que recorreu à vaquinha online para seguir produzindo.

E mesmo se considerarmos que a barreira de entrada para se ter um canal no YouTube seja relativamente baixa em comparação com os meios tradicionais de comunicação, dependendo, basicamente, de ter se um bom equipamento de captação de imagem e uma boa qualidade de acesso à internet, o mesmo não se pode dizer da sustentabilidade do canal.

Crescer enquanto influenciador nas redes sociais requer infraestrutura, o que se não se consegue sem investimento, seja de capital próprio/familiar ou por meio de patrocínios de empresas e grupos. O que nos leva a outra questão: seriam os youtubers negros subfinanciados pelos patrocinadores?

Responder a esta pergunta dependeria da realização de pesquisa que pudesse mapear: a) o perfil econômico dos principais youtubers brasileiros para determinar se o poder aquisitivo do próprio youtuber e/ou de seus familiares altera nas apostas de incremento no canal; b) quem são os principais patrocinadores dos youtubers brasileiros e em quais canais estão sendo aportados os maiores recursos.

Por outro lado, a fala de Nátaly Nery, dona do canal “Afros e Afins”, durante a entrevista “Onde estão os negros no Youtube?”, realizada pelo PC Faria, pode ser uma chave interessante para compreender a diferença entre “canais de branco” e “canais de preto” e, inclusive, para discutir este possível subfinanciamento.  Afinal “o negro é entendido como nicho”, diz ela na entrevista.

Os canais de negros são muitas vezes considerados como produtores de conteúdo “específico”, “de negros” ou “de minoria”, e não como produtores de um conteúdo universal. Isto acontece porque, no Brasil, assim como em outros países em que o racismo contra negros é estrutural, a branquitude é a norma, já que representa um padrão supostamente universal.

Entender o papel predominantemente branco é tão essencial para desconstruir o racismo no Brasil quanto à compreensão sobre machismo e patriarcado são fundamentais para entender a reprodução da opressão entre os gêneros. Fazer isto requer a ampliação do diálogo para além do universo acadêmico e do ativismo político, ou seja, implica acessar os meios de comunicação.

Hoje, mais do que nunca, fomentar a participação de negros no ambiente midiático, seja ele o tradicional ou o digital é fundamental para a desconstrução da branquitude e, por consequência, da desconstrução do racismo.

Vale criar políticas de cotas na radiodifusão, afinal, concessões públicas de rádio e televisão não podem se eximir do dever de garantir a diversidade em sua programação.

É claro que o crescimento de influenciadores digitais negros acaba por incidir diretamente na maior presença de negros também nos meios tradicionais de rádio e televisão, uma vez que fica impossível “fazer a egípcia” diante da potência da audiência destes comunicadores no ambiente digital. Não é por acaso que muitos desses hoje são presença garantida em programas de TV. Precisamos checar, no entanto, se este movimento é suficiente e se vem acontecendo em todos os canais ou apenas em alguns.

No caso dos youtubers, valeria questionar às empresas patrocinadoras quais são os recursos destinados aos comunicadores negros. E quem sabe um boicote àquelas que não investem recursos neste grupo poderia produzir uma diversificação maior no investimento. Afinal, negros usam maquiagem, jogam videogames e consomem brinquedos também.

Apropriar-se das novas tecnologias, indo além do uso de aplicações e das camadas superficiais da produção dos conteúdos, por fim, tem se mostrado essencial para o chamado controle da informação.  E entender isto do ponto de vista das desigualdades de raça (e também de gênero e classe) é essencial para combater a permanência do racismo no Brasil.


Ana Claudia Mielke* | Carta Capital

*Jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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