Martinho Júnior, Luanda
Algumas impressões, 43 anos
depois da heróica independência de Angola, proclamada como República Popular!
1- Esta semana, no dia 8, tive
uma meteórica deslocação à capital da província do Uíge…
A rota foi a velha estrada do
café, com partida de Luanda pelas 5 da madrugada e 326 quilómetros
pela frente.
Sob meus olhos ainda está lá a
pujança natural de Angola, nas planícies aluviais que se estendem da Funda ao
Caxito, na pradaria que sobe suavemente até ao Úcua, no carrocel tisnado de mil
verdes que cercam o Piri, nos poderosos Dembos, na suave trilha além Dange,
passando por localidades com nomes sonoros, atraentes e sonhadores, Vista
Alegre, Aldeia Viçosa, Quitexe…
Sob meus olhos ainda está lá a
imensa imagem de pobreza das comunidades, as maiores das quais apenas com seus
centros administrativos e comerciais urbanizados, orladas de musseques que até
podem ter muitas casas de construção definitiva, mas espalhando-se de forma
amontoada e anárquica, com desesperada sofreguidão de espaço quando há tanto
viçoso espaço em Angola…
Em muitas aldeias quase todas as
construções definitivas são centros administrativos, escolas, ou pequenos
postos sanitários, visíveis a partir da estrada, até por que nessas localidades
e àquela hora da manhã as batas brancas dos alunos, tantos a deslocarem-se por
quilómetros a pé, marcam as secretas peregrinações do seu dia-a-dia e marcam
com um pouco de optimismo as nossas mais simples profissões de fé!
Uma parte dessa estrada percorria
eu pela primeira vez há mais de 46 anos e por isso sobrepuseram-se as imagens
do passado e o que desfilava vertiginoso ficando preso aos instantes que retina
e memória podiam reter e perceber…
De então para cá, muito mais
gente, com sinais de pobreza distinta, apesar de agora haver visibilidade para
coisas que há 40 anos não existiam… em muitas casas, mesmo pardieiros,
erguem-se pequenas parabólicas, manobram motas e triciclos motorizados, por
vezes uma carrinha de chaparia meio decrépita e sempre com o “quintal” ocupado
de mercadoria ou de gente…
Passámos por muitos controlos da
Polícia Nacional agora mobilizada para a Operação Transparência e para a
Operação Resgate e muito atenta aos movimentos na estrada do café!
Até este “suposto
estrangeiro” que sou eu, se teve de identificar numa das peneiras de
identificação, fiscalização e controlo estrada fora… passei no teste!
Os impactos de natureza
antropológica estão ainda longe de vencer a pesada carga de subdesenvolvimento
e a devassidão informal que subsiste, onde também se escondem todo o tipo de
ilegalidades e até de crimes!
2- Chegou-se ao Caxito entre
alvores, um Caxito longilíneo, ao correr da estrada e em obras, debatendo-se
irremediavelmente entre densos bananais e as infiltrações de água transbordando
do Dange e dos canais de irrigação…
A pequena cidade já estava em
movimento, ali no aglomerado onde se concentram mais serviços e comércio, com
parte das ruas esventradas por causa das obras… imagino quando chover, entre
lama, charcos e palúdicos mosquitos…
Depois da primeira ponte que atravessámos
sobre o Dange, a anhara até ao Úcua, com novas comunidades instalando-se onde
antes só havia deserto escaldante de espinheiras e dispersos embondeiros
polvilhando o ambiente das longas guerras em terras de ninguém, onde repentinas
emboscadas podiam ocorrer e onde o perigo era sempre latente…
Pequenas aldeias, algumas delas
com a bandeira da UNITA içada, casas de pau a pique, folha de palmeira, mas
também outras já em adobe, gente pobre, vivendo do carvão, da caça furtiva,
duma subsistência dolorosa e de pouco mais, expondo seus troféus à beira da
rota…
Olhos inquisidores percebiam-se
de longe e, à volta das aldeias, homens e mulheres que partiam para as lavras,
os homens com seus casacos acinzentados, surrados pelo tempo, alguns com chapéu
de ocasião e sempre com a catana na mão, as mulheres com seus nenés nas costas
e uma trouxa leve na cabeça (à noite a trouxa das que vêm das lavras será
sempre maior)…
No Úcua começa o grande desafio
do verde, pois a comunidade é uma porta de encruzilhada para as montanhas dos
Dembos…
Lá estava a velha estrada para
Pango Aluquém, agora toda alcatroada, um circuito a não perder pelos seus
contrastes e beleza penetrando os Dembos, aqueles mesmos Dembos de
Gombe-ya-Muquiama e do Cazuangongo, que só foram vencidos pela penetração
colonial há precisamente 100 anos, à custa de quanta guerra e de quanto
sangue!…
Desta vez seguimos em direcção ao
Piri, com uma estrada de mil curvas e inclinações de 10%, reptando entre
frondosas catedrais florestais… poucas abertas onde espreitava um céu cinzento
com nuvens prontas para as repentinas descargas, entre humidade e sombra
pincelada de algodões enevoados e de secreta vida fervilhando algures, no
subsolo, nos robustos troncos e no ar, onde quer que seja…
Naquela região denotava-se um
pouco mais de pujança nas gentes: mais produtos agrícolas expostos, não
faltando o tradicional marufo, mais quefazer e alegria nas vestes e nos modos,
contudo com muitas crianças que deveriam estar a ir para a escola envolvidas no
comércio de ginguba e banana assada nos improvisados mercados à beira-estrada,
amontoando-se em magote sempre que uma viatura pare para o negócio de ocasião.
Depois seguiu-se a pequena
localidade da Mobil, a estrada para Quibaxe… lugares onde há 43 anos lutei pela
independência integrando as unidades das FAPLA, enfrentando o Exército de
Libertação Nacional da FNLA, reforçado com mercenários portugueses do Exército
de Libertação de Portugal, spinolistas comandados pelo Coronel Santos e Castro
e pelos militares das Forças Armadas Zairenses, enviados por Mobutu no seu
entendimento com a CIA, que destacou para o efeito John Stockwell…
Há ainda restos das torres de
segurança de antigas fazendas de café dos tempos coloniais, entre trepadeiras,
capinzais e outros vestígios feitos escombros…
Fechei meus olhos, concentrei-me
no passado e ouvi ainda o ressoar das metralhadoras de 12,7 montadas em
carrinhas de que o ELNA estava apetrechada então… era um som filtrado pela
floresta, cujo estampido fazia cair uma chuva de folhas caducas das árvores,
deixando espanto e medo no coração dos animais…
Entre a Mobil e o ramal para
Quibaxe, fui apanhado entre dois fogos, o fogo amigo das unidades das FAPLA que
não conseguiram corresponder à minha voz para avançar e o fogo inimigo que
chegava da estrada… tive que buscar as raízes duma frondosa mulemba para me
abrigar nos seus escavados e, aproveitando um intervalo do combate, sair
rastejando da linha de fogo, internando-me na floresta, onde permaneci durante
dois dias, até conseguir retomar a ligação de novo às pequenas unidades das
FAPLA instaladas na aldeia de Quiqueza, entre Quibaxe e Pango Aluquém,
improvisada linha da frente nos Dembos, tal como foi a insuperável barreira da
Cacamba…
Esse foi um dos momentos em que
durante as peripécias vividas em tantos cenários de combate, nasci de novo!...
Quando recuperámos Quibaxe, por
altura da independência, recebi a nova que havia nascido na pequena aldeia da
Benza, em Pango Aluqém ,
o meu filho João Manuel, nove dias depois do dia 11, um sopro de alegria em
dias verticais de tanta decisão, vividos entre o frenesim das refregas e as
primeiras fortes bátegas da estação das chuvas, como só nos Dembos podem se
sentir…
Se não tivéssemos alcançado a
independência vencendo, então esse seria um ponto de partida para a guerrilha
que haveria de se desencadear…
Minha pobre família estava a
residir nessa aldeia, minha saudosa companheira Teresa Cassule, mãe de quatro
dos meus rebentos, seu afectuoso pai e a sua irmã mais velha, Conceição, com a
prole que crescia e eu havia passado por lá, jovem com os olhos húmidos de
emoções, transbordando de vida e de amor, mas acalmando as angústias e os
ânimos desesperados: o inimigo não passará, prometia eu… e de facto não
passou!...
Não passou, como não passou
antes, quando o fim do colonialismo era ainda uma miragem e os justos
combatentes do MPLA da 1ª Região, se esvaíam de forças perante a avalanche de
cercos que os asfixiavam nos seus refúgios, nos santuários em que só as mais
densas florestas podem albergar!...
Como eu os vejo nos seus
andrajos, um dia em que, sabendo serem eles uma das tantas vanguardas dos
combatentes justos que buscavam a legitimidade da independência, apareciam das
sombras, paradoxalmente como vencidos…
Com as minhas mãos limpas e um
coração carregado de angústias pelas mais contraditórias razões, consegui
contornar a pressão dos Serviços de Informação Militar das Forças Armadas
Portuguesas onde os spinolistas eram dominantes e dos destacamentos da PIDE no
Cuanza Norte…
Ali nos Dembos era alferes no
destacamento perdido de Santa Clara, filial da Companhia de Caçadores 1204
recrutada a partir do Regimento de Infantaria 21 no Huambo e estacionada em Pango Aluquém , onde
havia de conhecer Teresa Cassule… com os meus vinte e poucos anos, consegui
minorar o sofrimento desses combatentes anónimos do MPLA, todos eles de origem
humilde, camponesa, o seu depauperamento, o seu desamparo e fazer com que eles
e suas famílias, das aldeias do Combe e do Esso, mantivessem acesa a chama do
MPLA, que também fazia, secreta mas resolutamente, de minha própria chama!
Quando olhei dia 8 pela janela da
viatura para os lados de Pango Aluquém e de Quibaxe, o coração teve um outro
tan-tan e a humidade do ambiente inundou-me olhos adentro, num mar imenso de
amor e saudade, trazido por ondas e ondas das mais desencontradas quão
indómitas recordações, onde iam desembocar as imagens de todos os nossos
maiores das lutas de libertação, de Agostinho Neto ao Che, de Amílcar Cabral a
Fidel!
Depois era a descida em
quase-vertigem para a ponte do Dange…
Em 1975, por altura já da
independência, com os camaradas da minha pequena unidade fiz a partir de
Quibaxe o reconhecimento a fim de saber se a ponte ainda estava lá… se ela
estivesse provavelmente seguiríamos para Vista Alegre, conquistando terreno ao
inimigo na direcção da capital do Uíge…
Hoje a ponte estava lá,
reconstruída e sobranceira a um curso de água de montanha, já com alguma
corrente, em 1975 não estava, havia sido destruída para impedir as FAPLA no
acesso ao Uíge pela rota do café…
3- Do outro lado do Dange é já província
do Uíge, com a estrada menos serpenteante, clareiras de verde-claro coroando as
elevações suaves contrastando com o verde-escuro das baixas e o
verde-esvoaçante dos dispersos bananais…
Comprou-se banana assada
bem-criada e saborosa e ginguba assada em Vista Alegre , com as
velhas casas comerciais descoloridas e de portas fechadas, respirando abandono
e decrepitude, como velhos fantasmas perdidos no espaço e no tempo…
Nos negócios de ocasião que anima
os antros do silêncio, os produtos do campo são trazidos em pequenas bacias aos
forasteiros em viagem, nos pontos de encontro dos pequenos mercados, por jovens
e crianças de olhos meio curiosos, meio ansiosos, “amigo não quer manga”?... “amigo
está aqui jinguba!”… sabores únicos da Mãe África numa localidade perdida, com
tanto angolano vivendo ainda na pobreza, em labirintos de pequenos negócios de
ocasião carregados das ilusões próprias das crianças e dos jovens…
Os preços são um abismo se
comparados aos de Luanda… até nesse aspecto a riqueza nada quer com quem
produz, mesmo quando se produz tão pouco e de forma tão precária, à base de
enxada, de catana, de músculo e suor…
Ansiosos de alcançar o Uíge, não
se parou em Aldeia
Viçoso , nem em Quitexe, a hora programada para a reunião com
os nossos camaradas da Acção Social Para Apoio e Reinserção aproximava-se e não
podiam haver mais paragens…
Uma coisa não passou
despercebida: as redes de iluminação pública solar nas comunas e em Quitexe,
apresentavam visíveis sinais de vandalização… esforços do estado e das
administrações locais nesse sentido, foram sabotados e hoje os restos do que
ficou fazem parte dos fantasmas, das miragens e das imagens próprias da
miséria…
Nas proximidades da capital
provincial, umas poucas serrações eram visíveis da estrada, algumas com
indícios de não estarem em actividade… as serrações foram os únicos sinais de
existência industrial que registei na viagem, para além dos lugares de exploração
de inertes, todos eles com sinais da presença chinesa, ao longo de todo o
percurso e mesmo na capital provincial…
O povo angolano está a viver
ainda muito mais de agricultura de subsistência e de comércio de ocasião, do
que de alguma actividade industrial séria e mesmo no sector da madeira, nem
indústria de mobiliário parece existir e se a há é artesanal!
A cidade do Uíge deparou-se-nos
ainda fresca da vassourada de chuva que caiu ao longo das primeiras horas da
manhã, antes da nossa chegada… casas e prédios com as marcas da permanente
humidade, muita gente nas ruas no centro administrativo e comercial… e algum
trânsito.
Fora desse centro, a cidade é
musseque, com seu labirinto perdido de ruelas, espalhados pelas colinas
circundantes, sem a adequada urbanização, onde até os sinais de riqueza perdem
peso nos terrenos inundados de barro vermelho, onde mesmo assim escasseia o
arvoredo.
Algumas novas construções não
chegam para contrariar a mole do subúrbio e algumas assemelham-se a inúteis
gestos de supérfluo e vazio, como o edifício da Assembleia Provincial, perante
o mar circundante de tão irremediável quão anárquica luta pela sobrevivência,
num surdo estado de quase torpor que a paisagem urbana nos transmite na sua
dimensão próxima e distante.
Depois o centro administrativo
nas suas fachadas transmite ainda o peso do passado colonial, de onde é tão
difícil a luta consciente e inteligente para se poder sair, como aliás em todas
as outras capitais provinciais… precisaríamos de dirigentes eternamente
rebeldes resolutamente, activos e lúcidos, mas aquelas pesadas contingências,
agarradas ao passado, quanta acomodação vegetativa está a gerar na vontade e
psicologia dos nossos dirigentes e administrativos?
Fica-se com uma enorme sensação
de impotência perante toda esta paisagem humana avassaladora como as florestas,
carne da nossa própria carne, que nos devora, que contraria o fulgor e a raiva
surda típica dos combatentes, das nossas utopias de longa data num país em que
afinal a maior parte dos resgates ainda está por fazer e multidões de pobres
lutam por sobrevivência num pântano tornado labirinto, de onde é tão precário
existir e tão difícil sair.
Por fim a imagem da reunião com
nossos camaradas, pobres entre os pobres, mas resolutos até ao fim de suas
vidas, apesar de tantas incertezas e doenças e dores e óbitos e defraudadas
espectativas, ávidos dum sopro de esperança vital, como se fosse o último balão
de oxigénio!
PeloUíge e pela ASPAR provincial
havia passado há mais de 8 anos e desde então, sob o ponto de vista humano,
nada entretanto mudou!
Acho que será desnecessário
narrar o regresso, na escadaria de retorno ao litoral, por que ainda estamos
agarrados pelas lianas de séculos de solidão em que mergulham os pés de nossa
telúrica existência, a única mola impulsionadora que numa contraditória
dialética nos faz enquanto houver vida e força, levantar do chão!
Martinho Júnior - Luanda, 10 de Novembro de 2018,
em saudação aos 43 anos da independência de Angola.
Imagens:
- Hoje, 11 de Novembro de 2018, foi
içada a Bandeira Monumento, junto ao Museu Militar em Luanda;
- Na antiga estrada do café e até à
cidade do Uíge, é agora a banana o produto de maior produção;
- Circuita da estrada além Dange e
já na província do Uíge, algures entre Vista Alegre e Aldeia Viçosa;
- Vista aérea do centro
administrativo da cidade do Uíge;
- Nossos camaradas da Acção Social
Para Apoio e Reinserção da província do Uíge.
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