domingo, 25 de novembro de 2018

Angola | INCURSÃO AO UÍGE


Martinho Júnior, Luanda 

Algumas impressões, 43 anos depois da heróica independência de Angola, proclamada como República Popular!

1- Esta semana, no dia 8, tive uma meteórica deslocação à capital da província do Uíge…

A rota foi a velha estrada do café, com partida de Luanda pelas 5 da madrugada e 326 quilómetros pela frente.

Sob meus olhos ainda está lá a pujança natural de Angola, nas planícies aluviais que se estendem da Funda ao Caxito, na pradaria que sobe suavemente até ao Úcua, no carrocel tisnado de mil verdes que cercam o Piri, nos poderosos Dembos, na suave trilha além Dange, passando por localidades com nomes sonoros, atraentes e sonhadores, Vista Alegre, Aldeia Viçosa, Quitexe…

Sob meus olhos ainda está lá a imensa imagem de pobreza das comunidades, as maiores das quais apenas com seus centros administrativos e comerciais urbanizados, orladas de musseques que até podem ter muitas casas de construção definitiva, mas espalhando-se de forma amontoada e anárquica, com desesperada sofreguidão de espaço quando há tanto viçoso espaço em Angola…

Em muitas aldeias quase todas as construções definitivas são centros administrativos, escolas, ou pequenos postos sanitários, visíveis a partir da estrada, até por que nessas localidades e àquela hora da manhã as batas brancas dos alunos, tantos a deslocarem-se por quilómetros a pé, marcam as secretas peregrinações do seu dia-a-dia e marcam com um pouco de optimismo as nossas mais simples profissões de fé!

Uma parte dessa estrada percorria eu pela primeira vez há mais de 46 anos e por isso sobrepuseram-se as imagens do passado e o que desfilava vertiginoso ficando preso aos instantes que retina e memória podiam reter e perceber…

De então para cá, muito mais gente, com sinais de pobreza distinta, apesar de agora haver visibilidade para coisas que há 40 anos não existiam… em muitas casas, mesmo pardieiros, erguem-se pequenas parabólicas, manobram motas e triciclos motorizados, por vezes uma carrinha de chaparia meio decrépita e sempre com o “quintal” ocupado de mercadoria ou de gente…

Passámos por muitos controlos da Polícia Nacional agora mobilizada para a Operação Transparência e para a Operação Resgate e muito atenta aos movimentos na estrada do café!

Até este “suposto estrangeiro” que sou eu, se teve de identificar numa das peneiras de identificação, fiscalização e controlo estrada fora… passei no teste!

Os impactos de natureza antropológica estão ainda longe de vencer a pesada carga de subdesenvolvimento e a devassidão informal que subsiste, onde também se escondem todo o tipo de ilegalidades e até de crimes!


2- Chegou-se ao Caxito entre alvores, um Caxito longilíneo, ao correr da estrada e em obras, debatendo-se irremediavelmente entre densos bananais e as infiltrações de água transbordando do Dange e dos canais de irrigação…

A pequena cidade já estava em movimento, ali no aglomerado onde se concentram mais serviços e comércio, com parte das ruas esventradas por causa das obras… imagino quando chover, entre lama, charcos e palúdicos mosquitos…

Depois da primeira ponte que atravessámos sobre o Dange, a anhara até ao Úcua, com novas comunidades instalando-se onde antes só havia deserto escaldante de espinheiras e dispersos embondeiros polvilhando o ambiente das longas guerras em terras de ninguém, onde repentinas emboscadas podiam ocorrer e onde o perigo era sempre latente…

Pequenas aldeias, algumas delas com a bandeira da UNITA içada, casas de pau a pique, folha de palmeira, mas também outras já em adobe, gente pobre, vivendo do carvão, da caça furtiva, duma subsistência dolorosa e de pouco mais, expondo seus troféus à beira da rota…

Olhos inquisidores percebiam-se de longe e, à volta das aldeias, homens e mulheres que partiam para as lavras, os homens com seus casacos acinzentados, surrados pelo tempo, alguns com chapéu de ocasião e sempre com a catana na mão, as mulheres com seus nenés nas costas e uma trouxa leve na cabeça (à noite a trouxa das que vêm das lavras será sempre maior)…

No Úcua começa o grande desafio do verde, pois a comunidade é uma porta de encruzilhada para as montanhas dos Dembos…

Lá estava a velha estrada para Pango Aluquém, agora toda alcatroada, um circuito a não perder pelos seus contrastes e beleza penetrando os Dembos, aqueles mesmos Dembos de Gombe-ya-Muquiama e do Cazuangongo, que só foram vencidos pela penetração colonial há precisamente 100 anos, à custa de quanta guerra e de quanto sangue!…

Desta vez seguimos em direcção ao Piri, com uma estrada de mil curvas e inclinações de 10%, reptando entre frondosas catedrais florestais… poucas abertas onde espreitava um céu cinzento com nuvens prontas para as repentinas descargas, entre humidade e sombra pincelada de algodões enevoados e de secreta vida fervilhando algures, no subsolo, nos robustos troncos e no ar, onde quer que seja…

Naquela região denotava-se um pouco mais de pujança nas gentes: mais produtos agrícolas expostos, não faltando o tradicional marufo, mais quefazer e alegria nas vestes e nos modos, contudo com muitas crianças que deveriam estar a ir para a escola envolvidas no comércio de ginguba e banana assada nos improvisados mercados à beira-estrada, amontoando-se em magote sempre que uma viatura pare para o negócio de ocasião.

Depois seguiu-se a pequena localidade da Mobil, a estrada para Quibaxe… lugares onde há 43 anos lutei pela independência integrando as unidades das FAPLA, enfrentando o Exército de Libertação Nacional da FNLA, reforçado com mercenários portugueses do Exército de Libertação de Portugal, spinolistas comandados pelo Coronel Santos e Castro e pelos militares das Forças Armadas Zairenses, enviados por Mobutu no seu entendimento com a CIA, que destacou para o efeito John Stockwell…

Há ainda restos das torres de segurança de antigas fazendas de café dos tempos coloniais, entre trepadeiras, capinzais e outros vestígios feitos escombros…

Fechei meus olhos, concentrei-me no passado e ouvi ainda o ressoar das metralhadoras de 12,7 montadas em carrinhas de que o ELNA estava apetrechada então… era um som filtrado pela floresta, cujo estampido fazia cair uma chuva de folhas caducas das árvores, deixando espanto e medo no coração dos animais…

Entre a Mobil e o ramal para Quibaxe, fui apanhado entre dois fogos, o fogo amigo das unidades das FAPLA que não conseguiram corresponder à minha voz para avançar e o fogo inimigo que chegava da estrada… tive que buscar as raízes duma frondosa mulemba para me abrigar nos seus escavados e, aproveitando um intervalo do combate, sair rastejando da linha de fogo, internando-me na floresta, onde permaneci durante dois dias, até conseguir retomar a ligação de novo às pequenas unidades das FAPLA instaladas na aldeia de Quiqueza, entre Quibaxe e Pango Aluquém, improvisada linha da frente nos Dembos, tal como foi a insuperável barreira da Cacamba…

Esse foi um dos momentos em que durante as peripécias vividas em tantos cenários de combate, nasci de novo!...


Quando recuperámos Quibaxe, por altura da independência, recebi a nova que havia nascido na pequena aldeia da Benza, em Pango Aluqém, o meu filho João Manuel, nove dias depois do dia 11, um sopro de alegria em dias verticais de tanta decisão, vividos entre o frenesim das refregas e as primeiras fortes bátegas da estação das chuvas, como só nos Dembos podem se sentir…

Se não tivéssemos alcançado a independência vencendo, então esse seria um ponto de partida para a guerrilha que haveria de se desencadear…

Minha pobre família estava a residir nessa aldeia, minha saudosa companheira Teresa Cassule, mãe de quatro dos meus rebentos, seu afectuoso pai e a sua irmã mais velha, Conceição, com a prole que crescia e eu havia passado por lá, jovem com os olhos húmidos de emoções, transbordando de vida e de amor, mas acalmando as angústias e os ânimos desesperados: o inimigo não passará, prometia eu… e de facto não passou!...

Não passou, como não passou antes, quando o fim do colonialismo era ainda uma miragem e os justos combatentes do MPLA da 1ª Região, se esvaíam de forças perante a avalanche de cercos que os asfixiavam nos seus refúgios, nos santuários em que só as mais densas florestas podem albergar!...

Como eu os vejo nos seus andrajos, um dia em que, sabendo serem eles uma das tantas vanguardas dos combatentes justos que buscavam a legitimidade da independência, apareciam das sombras, paradoxalmente como vencidos…

Com as minhas mãos limpas e um coração carregado de angústias pelas mais contraditórias razões, consegui contornar a pressão dos Serviços de Informação Militar das Forças Armadas Portuguesas onde os spinolistas eram dominantes e dos destacamentos da PIDE no Cuanza Norte…

Ali nos Dembos era alferes no destacamento perdido de Santa Clara, filial da Companhia de Caçadores 1204 recrutada a partir do Regimento de Infantaria 21 no Huambo e estacionada em Pango Aluquém, onde havia de conhecer Teresa Cassule… com os meus vinte e poucos anos, consegui minorar o sofrimento desses combatentes anónimos do MPLA, todos eles de origem humilde, camponesa, o seu depauperamento, o seu desamparo e fazer com que eles e suas famílias, das aldeias do Combe e do Esso, mantivessem acesa a chama do MPLA, que também fazia, secreta mas resolutamente, de minha própria chama!

Quando olhei dia 8 pela janela da viatura para os lados de Pango Aluquém e de Quibaxe, o coração teve um outro tan-tan e a humidade do ambiente inundou-me olhos adentro, num mar imenso de amor e saudade, trazido por ondas e ondas das mais desencontradas quão indómitas recordações, onde iam desembocar as imagens de todos os nossos maiores das lutas de libertação, de Agostinho Neto ao Che, de Amílcar Cabral a Fidel!

Depois era a descida em quase-vertigem para a ponte do Dange…

Em 1975, por altura já da independência, com os camaradas da minha pequena unidade fiz a partir de Quibaxe o reconhecimento a fim de saber se a ponte ainda estava lá… se ela estivesse provavelmente seguiríamos para Vista Alegre, conquistando terreno ao inimigo na direcção da capital do Uíge…

Hoje a ponte estava lá, reconstruída e sobranceira a um curso de água de montanha, já com alguma corrente, em 1975 não estava, havia sido destruída para impedir as FAPLA no acesso ao Uíge pela rota do café…


3- Do outro lado do Dange é já província do Uíge, com a estrada menos serpenteante, clareiras de verde-claro coroando as elevações suaves contrastando com o verde-escuro das baixas e o verde-esvoaçante dos dispersos bananais…

Comprou-se banana assada bem-criada e saborosa e ginguba assada em Vista Alegre, com as velhas casas comerciais descoloridas e de portas fechadas, respirando abandono e decrepitude, como velhos fantasmas perdidos no espaço e no tempo…

Nos negócios de ocasião que anima os antros do silêncio, os produtos do campo são trazidos em pequenas bacias aos forasteiros em viagem, nos pontos de encontro dos pequenos mercados, por jovens e crianças de olhos meio curiosos, meio ansiosos, “amigo não quer manga”?... “amigo está aqui jinguba!”… sabores únicos da Mãe África numa localidade perdida, com tanto angolano vivendo ainda na pobreza, em labirintos de pequenos negócios de ocasião carregados das ilusões próprias das crianças e dos jovens…

Os preços são um abismo se comparados aos de Luanda… até nesse aspecto a riqueza nada quer com quem produz, mesmo quando se produz tão pouco e de forma tão precária, à base de enxada, de catana, de músculo e suor…

Ansiosos de alcançar o Uíge, não se parou em Aldeia Viçoso, nem em Quitexe, a hora programada para a reunião com os nossos camaradas da Acção Social Para Apoio e Reinserção aproximava-se e não podiam haver mais paragens…

Uma coisa não passou despercebida: as redes de iluminação pública solar nas comunas e em Quitexe, apresentavam visíveis sinais de vandalização… esforços do estado e das administrações locais nesse sentido, foram sabotados e hoje os restos do que ficou fazem parte dos fantasmas, das miragens e das imagens próprias da miséria…

Nas proximidades da capital provincial, umas poucas serrações eram visíveis da estrada, algumas com indícios de não estarem em actividade… as serrações foram os únicos sinais de existência industrial que registei na viagem, para além dos lugares de exploração de inertes, todos eles com sinais da presença chinesa, ao longo de todo o percurso e mesmo na capital provincial…

O povo angolano está a viver ainda muito mais de agricultura de subsistência e de comércio de ocasião, do que de alguma actividade industrial séria e mesmo no sector da madeira, nem indústria de mobiliário parece existir e se a há é artesanal!

A cidade do Uíge deparou-se-nos ainda fresca da vassourada de chuva que caiu ao longo das primeiras horas da manhã, antes da nossa chegada… casas e prédios com as marcas da permanente humidade, muita gente nas ruas no centro administrativo e comercial… e algum trânsito.

Fora desse centro, a cidade é musseque, com seu labirinto perdido de ruelas, espalhados pelas colinas circundantes, sem a adequada urbanização, onde até os sinais de riqueza perdem peso nos terrenos inundados de barro vermelho, onde mesmo assim escasseia o arvoredo.

Algumas novas construções não chegam para contrariar a mole do subúrbio e algumas assemelham-se a inúteis gestos de supérfluo e vazio, como o edifício da Assembleia Provincial, perante o mar circundante de tão irremediável quão anárquica luta pela sobrevivência, num surdo estado de quase torpor que a paisagem urbana nos transmite na sua dimensão próxima e distante.

Depois o centro administrativo nas suas fachadas transmite ainda o peso do passado colonial, de onde é tão difícil a luta consciente e inteligente para se poder sair, como aliás em todas as outras capitais provinciais… precisaríamos de dirigentes eternamente rebeldes resolutamente, activos e lúcidos, mas aquelas pesadas contingências, agarradas ao passado, quanta acomodação vegetativa está a gerar na vontade e psicologia dos nossos dirigentes e administrativos?

Fica-se com uma enorme sensação de impotência perante toda esta paisagem humana avassaladora como as florestas, carne da nossa própria carne, que nos devora, que contraria o fulgor e a raiva surda típica dos combatentes, das nossas utopias de longa data num país em que afinal a maior parte dos resgates ainda está por fazer e multidões de pobres lutam por sobrevivência num pântano tornado labirinto, de onde é tão precário existir e tão difícil sair.


Por fim a imagem da reunião com nossos camaradas, pobres entre os pobres, mas resolutos até ao fim de suas vidas, apesar de tantas incertezas e doenças e dores e óbitos e defraudadas espectativas, ávidos dum sopro de esperança vital, como se fosse o último balão de oxigénio!

PeloUíge e pela ASPAR provincial havia passado há mais de 8 anos e desde então, sob o ponto de vista humano, nada entretanto mudou!

Acho que será desnecessário narrar o regresso, na escadaria de retorno ao litoral, por que ainda estamos agarrados pelas lianas de séculos de solidão em que mergulham os pés de nossa telúrica existência, a única mola impulsionadora que numa contraditória dialética nos faz enquanto houver vida e força, levantar do chão!

Martinho Júnior - Luanda, 10 de Novembro de 2018, em saudação aos 43 anos da independência de Angola.

Imagens:
- Hoje, 11 de Novembro de 2018, foi içada a Bandeira Monumento, junto ao Museu Militar em Luanda;
- Na antiga estrada do café e até à cidade do Uíge, é agora a banana o produto de maior produção;
- Circuita da estrada além Dange e já na província do Uíge, algures entre Vista Alegre e Aldeia Viçosa;
- Vista aérea do centro administrativo da cidade do Uíge;
- Nossos camaradas da Acção Social Para Apoio e Reinserção da província do Uíge.

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