Com as eleições europeias à
porta, Marisa Matias é a entrevistada de hoje do Vozes ao Minuto.
Marisa Matias é eurodeputada no
Parlamento Europeu há dez anos e volta a ser a cabeça de lista do Bloco de
Esquerda às eleições europeias, que se realizam no próximo dia 26 de maio em
Portugal.
No decurso desta entrevista ao Notícias
ao Minuto, Marisa Matias salienta que o Bloco está em Estrasburgo para tentar
“mudar para melhor” as políticas europeias. Tendo chegado ao Parlamento Europeu
no auge da crise financeira que afetou tantos países europeus, entre os quais
Portugal, a eurodeputada lamenta que a União Europeia tenha perdido uma
oportunidade para dar uma “resposta concreta aos problemas das pessoas”.
Entre as prioridades para a
próxima legislatura europeia, Marisa Matias destaca o combate à fraude e à
evasão fiscal, mas também lembra que é necessário avançar com uma política
relativamente às alterações climáticas.
Numa Europa marcada pela ascensão
de movimentos populistas e de extrema-direita, a cabeça de lista do Bloco
considera que estas serão as primeiras eleições europeias cujo desfecho será
mais “incerto”.
Sobre o Brexit, Marisa Matias
concorda com a extensão da data para a saída do Reino Unido mas tem dúvidas de
que o processo fique concluído até 31 de outubro.
Face à forma como o Bloco encara
o projeto europeu, qual a importância para o partido de reforçar a presença no
Parlamento Europeu?
É muito importante porque temos
estado no projeto europeu não apenas por estar nem por criticar, temos feito
propostas concretas e o trabalho que temos feito ao longo destes anos mostra-o.
Algumas vezes conseguimos aprovar essas propostas. Obviamente temos uma posição
crítica em relação à União Europeia mas acho que nesta altura não há outra
forma de ser europeísta que não seja ser-se crítico do projeto da União
Europeia. Aliás, outras pessoas têm-no dito, se calhar muito mais insuspeitas
do que eu, mas a verdade é que nos últimos anos a constituição europeia agravou
aquilo que são as condições de convivência em conjunto. Creio
que é essa a forma de ser europeísta hoje. Nós estamos no Parlamento Europeu
para tentar mudar, e para tentar mudar para melhor, não é para reproduzir
aquilo que existe. Nem sequer era preciso Parlamento Europeu nem qualquer outro
parlamento se fosse para manter o que existe. Os tribunais garantiam o
cumprimento da lei e os parlamentos não eram necessários. Nós estamos ali para
alterar a legislação e nesse sentido continuaremos a tentar influenciar as
decisões.
Chegou ao Parlamento Europeu em
2009, quando se vivia crise que moldou e ajudou a desagregar a Europa. Dez anos
depois quais são as principais diferenças que vê no seio da União Europeia?
Foi uma União Europeia que perdeu
uma enorme oportunidade de dar uma resposta eficaz e decente às populações que
foram afetadas pela crise. O sistema financeiro continua praticamente sem
nenhuma regulação digna desse nome. Prometeu-se um sistema de garantia de
depósitos, e todas as outras dimensões da união bancária avançaram menos aquela
que protegia os cidadãos em caso de colapso bancário. Criou-se um Tratado
Orçamental em cima dos tratados já existentes que limita ainda mais a
capacidade de investimento público nos diferentes países, o que é logo um
ataque direto aos serviços públicos e ao Estado Social, e por isso vemos o
Serviço Nacional de Saúde e a escola pública com tão pouco investimento.
Não é obra do acaso nem de vontade divina, mas é resultado dos constrangimentos
que foram sendo criados. Implementou-se uma mão sancionatória, mas em relação
aos mais fracos. Os mais fortes podem continuar a não cumprir os critérios que
estão definidos nos tratados.
Portanto, foi uma União Europeia
que perdeu uma oportunidade enorme de tentar pôr o sistema financeiro em ordem,
de acabar com a injustiça fiscal que exige no espaço da União Europeia,
nomeadamente acabando com os paraísos fiscais que existem no bloco europeu e
que fazem com que tanto dinheiro que deve ser tributado em termos de impostos
em muitos dos países acabe por não ser tributado de nenhuma forma. Não se pagam
impostos nos países onde se geram os lucros, pagam-se impostos onde é mais
barato pagar, e portanto há uma concorrência entre os diversos países e nós
temos vários países da União Europeia que são paraísos fiscais, como a Holanda,
o Luxemburgo, Malta ou Chipre.
Na realidade foi uma década
perdida em termos da resposta concreta aos problemas das pessoas e, no entanto,
aplicaram-se programas de austeridade duríssimos, destruiu-se uma economia e
uma sociedade como a grega, houve uma tentativa de destruição de outras
sociedades, como a portuguesa. Foi uma mão muito pesada sobre os cidadãos que
não foram responsáveis pela crise mas em relação ao essencial pouco ou nada
mudou, e é isso que nos leva a estar numa situação de iminência de uma nova
crise e não foram criados os instrumentos para poder solucioná-la, porque a
quantidade de dinheiro que foi injetado na banca, a liquidez que foi
gerada, foi feita sem nenhum tipo de condições. Nem sequer uma percentagem mínima
de dinheiro que foi injetado na banca teve como condição chegar à economia real
e isso criou mais bolhas e fez com que a banca continuasse a fazer o que fez
sempre, que é especular e criar a base perfeita para que uma nova tempestade
surja.
O advento de uma nova crise
financeira é abordado no manifesto da Bloco. Portugal está preparado para
enfrentar nova crise? A União Europeia está?
Acho que não está Portugal nem a
União Europeia, porque estas regras têm bloqueado a possibilidade de haver
investimento público em setores estratégicos, como por exemplo o Estado Social
e os serviços públicos, que são o maior garante de igualdade numa sociedade
democrática. Se não temos esta base que permite ser a rede em que toda a gente
pode confiar, se houve crescimento económico na União Europeia e na zona euro,
mas esse crescimento económico não foi acompanhado por um crescimento dos
salários, que na prática estagnaram, obviamente que não me parece que nem a
União Europeia, com os instrumentos que tem, nem os países tenham capacidade
para resistir a um cenário de crise.
Por isso é que é preciso inverter
isto. Não deixar que o Tratado Orçamental seja direito comunitário, nós fizemos
trabalho nesse sentido. Apresentei uma moção de rejeição. Houve uma votação
recente que chumbou o relatório que pretendia integração do Tratado Orçamental
no direito comunitário, se não for é preciso que os Estados-membros se
desvinculem deste tratado que nos causa um enorme atrofio na nossa capacidade
de gestão e do investimento público. São necessárias medidas verdadeiras de
regulação do sistema financeiro, de combate à fraude, à evasão e à elisão
fiscais. Há esse caminho todo por fazer. Parece-me que é um processo muito mais
construtivo do que dizer acriticamente que tudo está bem e quem diz que não
está bem não merece falar. Se não queremos um caminho de fragmentação, então
não há outra forma de agir sem ser com uma crítica muito aguçada em relação ao
caminho que tem sido feito.
Caso seja novamente eleita, quais
são as suas prioridades para os próximos cinco anos? O combate à fraude e à
evasão fiscal é uma delas.
É, sem dúvida nenhuma. Trabalhei
nestes dois mandatos, em particular no último, muito diretamente nas comissões
especiais de inquérito que foram criadas para averiguar os problemas de fraude
e de elisão fiscal na União Europeia. É um escândalo porque aquilo que se perde
em termos de postos de trabalho de multinacionais e de grandes empresas, e
dinheiro que é depositado em paraísos fiscais e do qual se perde o rasto
completamente, o que é feito ao nível do branqueamento de capitais, tudo isso
significa o equivalente a sete orçamentos comunitários. Não é preciso inventar
a roda, o que é preciso é ter uma política de justiça fiscal e aí já teremos
mais recursos e mais condições para poder intervir nas sociedades. As questões
das alterações climáticas são fundamentais. Nós temos de reformular a forma
como vivemos. Ou seja, temos de reconsiderar o nosso modelo de desenvolvimento
porque está na origem, é uma das causas de aceleração dos impactos das
alterações climáticas. E as questões essenciais do Estado Social e do emprego,
que foram das mais massacradas nos últimos anos.
Acredita que é na próxima
legislatura europeia que vai avançar uma política de combate às alterações
climáticas? Parecem sempre ficar em segundo plano.
Estamos a assistir agora a uma
grande mobilização por parte das gerações mais jovens em relação a esta
questão. Creio que muitas vezes as alianças estão onde menos se espera, e se
houver uma forte aliança da sociedade, se houver um movimento forte e uma
reivindicação forte, creio que isso pode fazer a diferença na definição das
políticas futuras. Se as pessoas forem mais exigentes e exigirem que as
políticas sejam uma tradução concreta, não um declaração de intenções, para o
combate às alterações climáticas, podemos estar no início de uma reviravolta
deste processo. Até agora, tem sido basicamente um fechar de olhos e achar que
isto não vai acontecer, mas creio que o carácter de urgência que tem sido
trazido para estes movimentos estudantis com este vigor e com este empenho, e
se houver uma consciencialização social da necessidade e da urgência de
intervir, isso é uma aliança fundamental para se poder chegar a uma mudança.
Há vários partidos populistas e
eurocéticos que se candidataram às eleições europeias com um objetivo que é
contraditório face ao projeto europeu, que é o de tentar desagregar a
União Europeia.
Há duas forças de pressão muito
grande para a desagregação da União Europeia. Uma vem de movimentos dessa
natureza, mas também há uma forte pressão para a desagregação que veio das
famílias principais do Parlamento Europeu e das instituições europeias, a
social-democracia e a democracia cristã, que na realidade têm sido responsáveis
por aquilo que tem sido a União Europeia nestes anos. Se nós chegámos a esta
fase de desintegração foi porque houve maiorias políticas que levaram aí.
Por isso, quando se diz que ser
europeísta é estar de acordo em toda a linha com aquilo que tem sido aprovado,
eu digo então que é melhor olharmos para a forma como os ditos europeístas
estão a destruir o próprio projeto europeu, porque na realidade têm tido
maiorias políticas e foi nessa senda que estiveram envolvidos e ajudaram, de
certa maneira, a alimentar os devaneios do senhor Cameron e da senhora Theresa
May em relação ao Brexit. Tudo o que foi feito em relação aos pedidos
excêntricos de Cameron e que puseram vidas em risco com o fim do programa Mare
Nostrum ou a realização do referendo para não haver eleição de deputados do
UKIP para a Câmara dos Comuns, tudo isso foi amparado pelas instituições
europeias e agora estamos no meio de uma trapalhada enorme.
Mas questões dos últimos anos
como a aprovação do Tratado Orçamental ou mecanismos da governação económica
que implicam a aprovação de sanções, que são usadas de forma discricionária
para ameaçar Estados-membros, tudo isso foi criado pelas famílias que se dizem
europeístas convictas. Eu sou europeísta mas não sou europarva, por isso acho
que a única forma que temos de defender o projeto é mesmo numa abordagem de
tentar mudar e de recuperar algumas das dimensões que entretanto se perderam.
Tendo em conta o atual panorama
político europeu, marcado pela instabilidade e pelo crescimento de movimentos
populistas e de extrema-direita, é seguro dizer que estas eleições europeias
revestem-se de uma importância ainda maior?
Todas elas são bastante
importantes, mas estas serão as primeiras eleições cujo resultado é mais
incerto, diria eu, porque pela primeira vez, e isso parece ser já um dado
adquirido, o bloco central não terá maioria nem nas instituições europeias nem
no Parlamento Europeu. Houve muitos governos a mudar ao longo dos últimos anos
na União Europeia, portanto as suas nomeações não serão dentro do arco da
governação europeu e no Parlamento Europeu o que se prevê é que as duas
principais famílias políticas não tenham maioria juntas, o que obrigará a uma
reconfiguração diferente das relações de forças e creio que também teremos de
ter uma reconfiguração de forças para além da ideológica, que tem a ver com uma
linha divisória muito clara entre forças políticas democráticas e aquelas que
não representam valores democráticos, em particular a extrema-direita. Estas
famílias políticas também terão de deixar de fazer concessões à extrema-direita
porque o que temos visto é que a extrema-direita está a aumentar a sua
representação e legitimidade e isso não é bom para nenhum projeto, porque os
riscos de fragmentação aumentam.
A importância destas eleições
parece ser tal, que Steve Bannon tem estado a aconselhar alguns dos partidos e
políticos europeus e não esconde o seu interesse em ver uma parte significativa
dos lugares do Parlamento Europeu entregues a populistas e eurocéticos. Há uma
clara tentativa de enfraquecer a união e criar fissuras no bloco europeu.
Este movimento ultrapassa a União
Europeia. Nós temos tido um retrocesso democrático à escala global. As eleições
nos Estados Unidos, no Brasil, o Brexit, são alguns dos exemplos da forma como
agentes externos ou não tentam interferir nos processos eleitorais e
orientá-los num determinado sentido, e esse sentido é o de retrocesso total.
Portanto, não é um exclusivo da União Europeia. Agora, acredito que se a União
Europeia estivesse a responder aos problemas das pessoas não havia espaços
vazios nem de manobra para que estas forças políticas ocupassem o que a União
Europeia deixou de responder e que se reforçassem da maneira como se estão a
reforçar. Isso é um dos dados que parecem demonstrar que aquilo que foi o
afastamento das instituições europeias dos cidadãos, dos seus problemas
concretos, o facto de se ter desvalorizado o impacto da crise na vida dos
cidadãos, ter-se insistido na austeridade como política comum e ao mesmo tempo
continuar a salvaguardar de forma quase intocável o espaço financeiro, tudo
isso criou espaços vazios e de descontentamento. Se estivéssemos num projeto
europeu onde tudo fosse espetacularmente perfeito, não haveria margem de
descontentamento nem de crescimento destas forças como temos assistido.
Olhando para o mapa europeu, para
o que se passa em países como a Itália, como a Áustria, como a Hungria, a
Polónia, ou até aqui ao lado em Espanha com a ascensão do Vox, não devíamos
estar mais preocupados como a forma como a extrema-direita tem crescido?
Na verdade essas forças foram
progredindo e as forças políticas democráticas, e que o são, nomeadamente as do
arco da governação europeu permitiram legitimar a sua mensagem. Quando se cria
uma narrativa de invasão em relação aos refugiados, que é completamente
mentira, está-se a ajudar estas forças a terem mais peso ainda. Quando se
aprova por unanimidade, como aconteceu em julho do ano passado em Conselho Europeu ,
a criação de centros de detenção para imigrantes está-se a dizer que estas
forças têm razão. Estão a dar-lhes gás e não a retirar. Além da linha divisória
ideológica, que é normal que exista, é bom que as forças democráticas se unam
todas em torno dos valores democráticos e que não continuem a abrir a porta às
forças de extrema-direita.
Concorda com a extensão do
deadline do Brexit para 31 de outubro? Theresa May disse acreditar que seria
possível fechar o acordo até 22 de maio. Acha possível?
Concordo, mas não sei se é
realista. Vamos ter eleições para o Parlamento Europeu, em outubro ainda não
vamos ter uma Comissão Europeia eleita ou votada e que tenha passado pelo crivo
do Parlamento Europeu. Isso só mais para o final do ano e vamos ter férias pelo
meio. Sinceramente acho que é difícil que esta extensão seja suficiente, mas
concordo com a extensão, como é óbvio. Uma saída sem acordo não é boa para
ninguém. Há muitas pessoas que vivem numa insegurança permanente Há mais de
quatro milhões e meio de cidadãos europeus, muitos deles portugueses, que não
sabem o que vai acontecer no dia a seguir. Há muitos cidadãos britânicos que
vivem em países da União Europeia e também não sabem o que vai acontecer no dia
a seguir. Há um processo de paz que também não pode ser posto em causa. O Acordo da
Sexta-feira Santa não é apenas uma negociação de paz entre a Irlanda e a
Irlanda do Norte, é um acordo internacional ao qual devem estar vinculados os
signatários, entre eles a União Europeia.
Achando que é preciso respeitar a
vontade da maioria, é preferencial que isso seja feito num quadro de um acordo
entre as partes e não de uma saída desordenada ou num continuar a andar para a
frente para tentar esquecer que aconteceu. Agora há a piada do Halloween
Brexit, mas espero que não seja nem uma caça às bruxas nem apenas uma piada.
Provavelmente será necessário mais tempo. A senhora Theresa May continua a
dizer que não. Pode ser que os britânicos consigam chegar a acordo, eles estão
sempre a surpreender-nos.
Tendo em conta aquilo a que temos
assistido nos últimos meses no parlamento britânico, em que basicamente não
parecem querer nenhuma das opções que são colocadas em cima da mesa, não estão
a deixar de lado aquilo que é mais importante que é o impacto na vida das
pessoas?
Da mesma maneira como o referendo
inventado por Cameron e apoiado pela União Europeia foi um mero exercício de
manutenção do poder pelo poder e sem nunca passar pela cabeça que o resultado
podia ser diferente daquele que imaginava, também estes dois anos têm sido um
exercício um bocado ridículo dos conservadores de manutenção do poder pela manutenção
do poder. Quem é que acha ainda que há algum tipo de legitimidade democrática
para May continuar à frente das negociações? Depois de ter perdido todas as
propostas que levou a votação em todos os sentidos. Porque perdeu qualquer um
dos acordos a que chegou. Sabe-se o que não se quer. Não se quer nenhum dos
acordos, não se quer uma saída sem acordo, mas não se sabe o que se quer e não
têm sido apresentadas verdadeiras alternativas. E, naturalmente, a vida das
pessoas e as preocupações concretas têm sido deixadas muito para trás.
Nos últimos três meses, a linha
de informação direta da União Europeia registou um aumento exponencial das
chamadas. Tiveram de pôr mais pessoas a atender os telefones. As pessoas ligam
todos os dias, não só do Reino Unido, mas de outros países para fazerem
perguntas sobre o Brexit. Muitas pessoas telefonam para perguntar por coisas
tão práticas como 'Tenho um voo com escala no Reino Unido no dia 31 de outubro.
Vou poder seguir a viagem ou não'. Ou de professores que têm viagens de visitas
de estudo para o Reino Unido ou do Reino Unido para outro país e depois não
sabem como podem regressar se houver uma saída sem acordo. Questões de saúde,
questões de contribuições de pessoas que trabalharam toda a vida no Reino Unido
e já não estão lá, as questões sobre as pensões, subsídios de desemprego. Isto
afeta a vida de todas as pessoas e na realidade ninguém está muito preocupado
com isso. Nem na Câmara dos Comuns e, muito concretamente, no Partido
Conservador. E isso é um bocado assustador.
Mas Jeremy Corbyn é uma
alternativa? Ele enfrenta dissidência no seio do seu próprio partido.
Claro. Ele tem um partido
completamente divido. Se Theresa May está a fazer isto num exercício de poder
pelo poder, a verdade é que Jeremy Corbyn também não tem tido o apoio nem a
base suficiente para poder disputar as negociações devido à divisão interna no
Partido Trabalhista. Mas pelo menos avançou com a proposta em relação às
questões alfandegárias, que era complicada e dizia respeito aos direitos dos cidadãos.
Agora não sei se as negociações entre os dois partidos levarão a uma proposta
conjunta diferente, se terão de ser as eleições a decidir quem é que irá
assumir as negociações. Mas acho que é uma imagem muito triste quer do Reino
Unido, quer da União Europeia. Um processo de dois anos sem nenhum resultado
palpável e estamos a falar do Reino Unido que, à partida, era o país onde seria
mais fácil sair do bloco europeu.
A União Europeia continua a
debater-se com a questão dos migrantes e refugiados no Mediterrâneo. Mantém-se
há vários anos sem ser resolvida. É uma situação muito delicada. Pode avançar
na próxima legislatura europeia ou o impasse vai manter-se?
Sinceramente, não sei. As medidas
que têm sido aprovadas foram no sentido de aprofundar a crise humanitária e não
de lhe dar uma solução. No entanto, o Parlamento Europeu avançou com medidas
como a revisão de Dublin, para que houvesse uma corresponsabilização de todos
os países e não apenas dos países de chegada, e o Conselho Europeu nunca lhe
deu seguimento. Guardou na gaveta e, pura e simplesmente, ignorou a decisão do
Parlamento Europeu. As questões relacionadas com o estatuto de refugiado, uma
política comum de asilo, também não avançaram porque alguns dos governos não
querem. E até se percebe que alguns dos governos estejam sistematicamente
contra estas medidas e cada vez mais. Porque cada vez mais governos são de
extrema-direita ou têm influência de extrema-direita, ou estão em coligação. Responsabilizo
mais as famílias europeias, as famílias fundadoras, que, com medo dos
resultados eleitorais, não tiveram uma resposta digna daquilo que são direitos
consagrados na carta dos Direitos Europeus ou das declarações internacionais
que subscrevemos em relação a refugiados, em relação à própria Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Nada disso foi tido em conta.
Tentou-se passar a ideia às
pessoas de que estamos a ser invadidos. Não estamos, estamos longe disso. À
União Europeia chegaram menos pessoas do que ao Líbano, que tem quatro milhões
de habitantes e dez mil quilómetros de área, que é um décimo do tamanho de
Portugal para se ter uma noção. É uma cumplicidade com um dos crimes que ficará
marcado na história para sempre. Cerca de 20 mil pessoas perderam a vida no
Mediterrâneo. Não considerar estas vidas com o mesmo valor das outras ou achar
que podemos viver bem e de consciência tranquila pelo facto de estarem a morrer
pessoas no Mediterrâneo e não se estar a fazer nada, isso vai ser uma daquelas
coisas pelas quais vamos ser julgados e mal.
Nesta altura fala-se também no
regresso dos jihadistas e das suas famílias aos países de origem. Augusto
Santos Silva chegou a dizer que esse regresso pode "constituir uma ameaça à
segurança". Do lado da UE fala-se de uma resposta conjunta, mas ainda não
há nada de concreto. Considera que existe de facto um risco para a segurança?
Tem de ser visto caso a caso. Há
um caso muito concreto de uma família portuguesa que vive em Paris, e que numa
das férias de verão veio a Portugal e o filho mais velho ficou em Paris com o
avô. E nesse verão conseguiu que o avô lhe desse todos os recursos que tinha
disponíveis, viajou e juntou-se ao autoproclamado Estado Islâmico para matar
pessoas que nunca conheceu, por uma razão que não se sabe qual é. A família foi
completamente apanhada de surpresa. A mãe regressou a Paris e viu a carta do
filho a explicar que se tinha juntado ao Estado Islâmico, sem ter qualquer
sinal prévio de que isto pudesse acontecer. Acho que há casos muito diferentes
uns dos outros. Tem de se ter em conta a especificidade de cada caso. A maioria
das famílias terá sido apanhada de surpresa, não é cúmplice nem é mentora ou
apoiante. Em muitos dos casos representa um desgosto. Cada um dos serviços
diplomáticos e ministérios dos Negócios Estrangeiros de cada um dos países terá
de lidar com os seus casos e perceber o que tem de fazer.
*A segunda parte desta entrevista
será publicada ainda na manhã desta terça-feira em Notícias ao Minuto
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