quinta-feira, 9 de maio de 2019

Angola | DESERDANDO DESCENDENTES - Martinho Júnior


HOJE JÁ É TARDE DEMAIS

Martinho Júnior, Luanda 
  
Em Angola, sem consciência dialética dos fenómenos de relacionamento do homem com o ambiente nas suas razões causais, inconsciência essa a que se está a sujeitar todo o continente africano e por tabela o próprio país, as elites estão a obrigar a deserdar a descendência angolana.

Os desequilíbrios que se estão a acentuar, consequência da inconsciência e inaptidão humana, trarão pesadas penalizações para as próximas gerações de angolanos e africanos, num momento em que tudo deveria ser cientificado e nada votado ao improviso!

Este texto é sequência de “África, da inércia à catástrofe”, publicado a 2 de Maio de 2019 (https://paginaglobal.blogspot.com/2019/05/africa-da-inercia-catastrofe-martinho.html)

1- Em Junho de 2012 publiquei em dois textos “Visão 2050 para o mundo e a SADC”, que foram aproveitados pelo Instituto Nacional de Inteligência e Segurança para integrar a edição de que sou autor, “Apontamentos sobre África”.

Outros textos foram sendo publicados por mim, antes e depois até esta data, alertando para a necessidade de, perseguindo uma lógica com sentido de vida que desse continuidade às linhas reitoras do movimento de libertação em África, se levasse a produzir uma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável em Angola (e no continente), comprometida com uma cultura de inteligência patriótica e africana, capaz de renascimento.

Recordo este extracto do primeiro texto:

“O modelo de sociedade capitalista e consumista herdado da Revolução Industrial e da recente Revolução Tecnológica, pelas suas assimetrias, desequilíbrios e um esbanjamento cada vez mais pernicioso de recursos, não serve para as gerações presentes e para as do futuro, pelo que é necessário encontrarem-se outras soluções, que influenciarão cada vez mais os conceitos que nortearão ao longo das próximas décadas a Visão 2050, bem como as transformações necessárias, algumas delas tendo já dado, timidamente e apesar de tudo, os primeiros passos.




É fundamental que os recursos do planeta não se esgotem, nem se tornem nocivos ao ambiente por acção do homem e com isso que os equilíbrios ambientais não sejam colocados em causa; nesse aspecto, em relação a muitos deles, há já uma corrida contra o tempo, enquanto os desequilíbrios se tornam cada vez mais evidentes!

Quantas espécies animais e vegetais não estão em risco, desapareceram ou estão em vias de extinção? Porquê?” (https://paginaglobal.blogspot.com/2012/06/visao-2050-para-o-mundo-e-sadc-i.html).

No segundo texto considerava:

“Perante a incompatibilidade duma planificação geoestratégica fundamentada numa lógica capitalista, África é o continente mais vulnerável face às ingerências e manipulações que se mantêm, ingerências e manipulações filtradas por via das elites quantas vezes agenciadas pelos interesses da hegemonia, elites que procuram fugir aos novos parâmetros nascentes, preocupadas em garantir o futuro de seus interesses egoístas alinhados e das gerações que diretamente se lhes seguirão.

Plasma-se um mundo carregado de contradições, em função do que escapa ao essencial que é a garantia de vida, ao sentido da vida, sobretudo no que diz respeito à gestão da água e das florestas tropicais do planeta, para responder à lógica do capital e do seu mercado, uma lógica ao serviço das elites forjadas no lucro, na especulação, nas tensões, nos desequilíbrios, nas assimetrias e nas guerras, as elites que contribuem para o fomento do subdesenvolvimento e nada motivadas para a sustentabilidade do desenvolvimento verde, completamente livre dos venenos com origem humana estimulados desde a Revolução Industrial.” (https://paginaglobal.blogspot.com/2012/06/visao-2050-para-o-mundo-e-sadc-ii.html).


2- A 6 de Maio de 2019, a Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES), organismo da Organização das Nações Unidas, publicou um relatório científico que não deixa margem para dúvidas:

“Há oito milhões de espécies de animais, plantas e insetos no planeta terra.

Um milhão está em risco de desaparecer.

Há um número sem precedentes de espécies em risco de extinção: um milhão.

O alerta é da Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES), num estudo com 145 autores de 50 países.

Pelo menos 680 espécies com coluna vertebral já foram extintas desde 1960 e muitas outras correm o risco de desaparecer próximas décadas.

O impacto das alterações climáticas e a procura insustentável do crescimento económico são apontados como os principais responsáveis pelos danos exercidos pela civilização moderna no mundo natural.

A essencial e interligada rede de vida na terra está a ficar cada vez mais pequena, alertou um os corresponsáveis pelo estudo divulgado esta segunda-feira, Josef Settele, citado pela Reuters.


Já a 11 de Novembro de 2018, por altura do 43º aniversário da independência de Angola, realçava eu, avisada e antecipadamente, em “Zelar pelos nossos rios é zelar pela vida”:

“Angola, 43 anos depois da independência de bandeira, continua encalhada numa visão colonial de implantação infraestrutural, estrutural e de polos de desenvolvimento, como se um Diogo Cão invisível abordasse hoje a costa, com todas as velas pandas, vindo do norte pelo mar.

A partir do desencadear da Operação Transparência, há a oportunidade e a possibilidade de começar a alterar essas tendências que, advindo do passado, têm tantas implicações nas assimetrias do país!

É evidente que essa questão prende-se não só à gestação coerente da identidade nacional, mas também com a gestação dos programas de desenvolvimento sustentável e amigo do ambiente, de forma a garantir que os cursos de nossos rios, que tanto têm a ver com a vida em todo o território angolano, estejam saudavelmente disponíveis em benefício das futuras gerações e com horizontes a muito longo prazo, ao longo dos próximos séculos!

Lutar de forma inteligente e patriótica contra o subdesenvolvimento, passa pela formulação da GEOESTRATÉGIA PARA UM DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL que faça a densa leitura antropológica irradiando na e a partir da REGIÃO CENTRAL DAS GRANDES NASCENTES e sobre a imensidão que há a descobrir na e com a ROSA DOS RIOS angolana!

De que se está à espera para dar à ignição essa tão legítima quão vital aspiração?

Zelar pelos nossos rios, é zelar pela vida, zelar acima de tudo, pela vida das futuras gerações!”

  
3- Apesar de alguma atenção de alguns patriotas mais preocupados com o futuro de Angola, o que tenho vindo a expor não tem merecido a devida preocupação (em termos de prioridade) da classe dirigente do país, em parte absorvida no enfrentamento aos fenómenos corretes da crise que é resultado de políticas de deriva capitalista neoliberal que se foram consolidando de há 33 anos até hoje, em parte por que a exiguidade das verbas disponíveis, nem para a instalação dum embrião, em jeito de círculo de estudos, até agora deram, em parte ainda por que a superestrutura ideológica, identificada com a social-democracia, não dá mesmo para mais!

Está-se assim “contra a parede”, por que hoje para África e para Angola, face à mentalidade corrente e levando em conta que a consciência continua a ser um singular acto de vanguarda ainda sem repercussões de maior, na corrida contra o tempo, começaa haverá noção que já é tarde demais!

O Ministério do Ambiente, por exemplo, aparenta estar perdido em questões que se esvaem na preocupante gestão do espaço KAZA-TFCA, mas incapaz de observar dos fenómenos dos factores essenciais que ocorrem na e desde a região central das grandes nascentes, para as regiões periféricas, não referenciando onde quer que seja o papel de “rosa-dos-rios” garante da biodiversidade em todo o país, inclusive como matriz da água de rios como o Cubango e o Cuando, afinal tão importantes para o Botswana (https://www.kavangozambezi.org/index.php/en/)...

A Ministra do Ambiente, aparenta estar “perdida entre elefantes” por que isso diz respeito ao “mercado” criado com o KZA-TFCA, conforme exemplo corrente: “Caça furtiva é a principal ameaça ao elefante em Angola, diz Ministra” (https://africa21digital.com/2019/05/06/caca-furtiva-e-a-principal-ameaca-ao-elefante-em-angola-diz-ministra/). 

O tempo de mobilização humana e científica não elitista está já a ser “queimado” e a reorganização do estado no quadro duma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável é uma quimera pelo que de facto não há ainda o que quer que seja respondendo minimamente e em termos de prevenção aos fenómenos do aquecimento global, muito menos como uma geoestratégia para um desenvolvimento sustentável a muito longo prazo (“Geoestratégia para um desenvolvimento sustentável” – https://paginaglobal.blogspot.com/2016/01/geoestrategia-para-um-desenvolvimento.html):

- Não se controla nem se gere a região central das grandes nascentes de forma a garantir-se sua preservação, longevidade e adequação de medidas garantes de vida a muito longo prazo;

- Não se previne concomitantemente a expansão dos desertos a sul (Kalahári e Namibe) e acaba-se por fazer o papel de bombeiro a apagar os fogos que são consequência da falta de previsão e conhecimento das razões causais dos fenómenos que se vêm avolumando;

- Não se fazem estudos amplos sobre as águas que escorrem nas direcções sudoeste, sul e sudeste, desde a matriz da “rosa-dos-rios” na região central das grandes nascentes, sabendo-se que bacias como a do Cunene, do Cuvelai, do Cubango e do Cuando, vão perdendo água a partir do seu médio curso e são alvo da expansão dos desertos do Namibe e do Kalahári;

- Não se fazem concomitantemente estudos de impacto ambiental sobre as barragens programadas na Huila e no Cunene, assim como seus sistemas de transvases, tendo em conta que as águas subterrâneas dirigem-se para o norte da Namíbia e por isso a improvisação pode levar a consequências no norte daquele país irmão;

- Não se promove a criação de Parques Naturais e florestas na região costeira, particularmente nas e ao redor das grandes cidades que ampliaram a desertificação, estão carentes de oxigénio e sofrem com problemas infraestruturais, estruturais, sanitários e de prevenção de toda a ordem;

- Não se inventaria as espécies vegetais e animais, de forma avaliar o grau de risco que enfrentam, salvo algumas acções dispersas que respondem às atracções turísticas integradas nos Parques Naturais do sudeste,ou a campanhas vindas exclusivamente do exterior como a do National Geografic sobre o Cubango (ao abrigo dos interesses do cartel dos diamantes);

- Não se está a adoptar lógica com sentido de vida, permitindo que os impactos do capitalismo neoliberal persistam em muitas franjas da sociedade, moldando a mentalidade média e o comportamento dos angolanos e dos africanos, que até a sua antropologia, em função da sua proveniência dos ambientes rurais, podem deixar de reconhecer;

- Não se definem adequadamente o que são áreas de ocupação, pólos de desenvolvimento e áreas de intervenção, com todas as assimetrias que isso continua a implicar;

- Não se arranca com uma cultura de inteligência integrada e patriótica, pelo que se anda ao sabor do conhecimento que surge de fora, ou dum conhecimento improvisado, ao invés de captar os que a nível nacional pretendem dar vigor a projectos científicos amplos integrando e articulando universidades e institutos superiores, capazes de suportarem as iniciativas aglutinadoras em direcção e suporte do desenvolvimento sustentável!

É evidente que deste modo não haverá arranque no que tenho qualificado como necessidade duma cultura de inteligência em Angola (“Para uma cultura de inteligência em Angola” – https://paginaglobal.blogspot.com/2017/11/para-uma-cultura-de-inteligencia-em.html), quando ela torna-se imprescindível para a gestão da vida no país, para a gestação duma base de dados que enquadre o conhecimento científico angolano e para que essa base de dados estimule as garantias de vida para os herdeiros angolanos das futuras gerações!


4- No Cunene dão-se os primeiros passos para a construção de pelo menos duas barragens de contenção de águas da bacia subterrânea do Cuvelai, aparentemente sem se avaliarem as amplas repercussões ambientais desse tipo de empreendimentos, sabendo-se que é essa bacia que, escorrendo para sul, alimenta a água do Lago Etosha no norte da Namíbia, inscrito num dos principais Parques Naturais do país (“Ministro anuncia medidas de combate à seca no Cunene” – http://jornaldeangola.sapo.ao/politica/ministro-anuncia-medidas-de-combate-a-seca-no-cunene).

A situação que os angolanos já estão a viver, corresponde todavia a graves penalizações para as futuras gerações, que estão a ser deserdadas de qualidade de vida, de espaço vital, de capacidade antropológica de resistência e de felicidade, por que assim sendo, face às aceleradas transformações climático-ambientais em curso por todo o globo, por tabela a nível regional e nacional e não havendo capacidade sofrível de prevenção e mobilização, hoje já é tarde demais!

Constatem com a última visita do Presidente da República ao sudoeste do país (Namibe e Cunene), como Angola, apesar das barragens e sistemas de transvases anunciadas, já está “a correr atrás do prejuízo”: “Presidente angolano anuncia reforço do combate à seca no Cunene” –https://africa21digital.com/2019/05/05/presidente-angolano-anuncia-reforco-do-combate-a-seca-no-cunene/

Martinho Júnior - Luanda, 7 de Maio de 2019

Fotografias tiradas pelo meu filho Abílio Pedro Viegas, técnico ao serviço do Município da Cahama:

1- Água para um “chimpaca” vital na área da Cahama, alimentada a partir dum furo com electrobomba, gerador diesel e canalização instalados pelo meu descendente;
2- Vista geral da “chimpaca”;
3- O Abílio junto ao furo;
4- Instalação para água potável na pequena localidade de Huia (“água potável para todos”), na área municipal da Cahama (o meu filho é um dos técnicos que providencia a manutenção do sistema);
5- Imagem de gado em transumância e em busca duma “chimpaca” com água; visíveis os desgastes.

Notas:
A reportagem fotográfica do meu filho Abílio Pedro Viegas, técnico multifunções ao serviço do Município da Cahama, atinge as 119 fotos.
Para ele, autêntico soldado da paz no Cunene, uma das Províncias angolanas do sul mais atingidas pela progressão do deserto do Namibe para dentro do território nacional, a luta continua integrando os esforços da linha da frente contra um dos flagelos que já está irreversivelmente a atingir Angola, em função do aquecimento global.

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