Como descongelar aos professores
e, por arrastamento, a todos os funcionários públicos as agruras sofridas por
eles, impostas pelo programa de austeridade nos tempos da dita “troika”?
Carlos de Matos
Gomes* | Jornal Tornado | opinião
Como descongelar aos professores
e, por arrastamento, a todos os funcionários públicos as agruras sofridas por
eles (e por todos os portugueses, lembre-se), impostas pelo programa de
austeridade nos tempos da dita “troika”? Esta é a pergunta que, com aparente
desejo de justiça e real demagogia, fazem os defensores da reposição da
situação anterior. Do tempo volta para trás.
A resposta irónica poderia ser:
Vão à sala do PEC IV do Palácio de São Bento e falem com o quarteto da foto,
que representa os mesmos que se aliaram para trazer a troika e os congelamentos
há alguns anos. Devem ser os donos do microondas descongelador. Isto até às
declarações de fim-de-semana de Cristas e Rio a dar o descongelado por, afinal,
no fundo da arca congeladora.
Agora a sério:
A aparente justiça da exigência
de que os salários dos funcionários públicos, professores em primeiro lugar,
congelados durante o tempo de crise têm de ser recuperados no tempo futuro,
mesmo à custa do futuro e da equidade, esconde a falácia de nunca os seus
reivindicativos promotores explicarem que a remuneração dos funcionários
públicos não resulta dos mesmos factores dos salários da economia real, da
competição e do mercado. Da aparente justiça chega-se à real injustiça da lei
do mais forte, ou mais protegido.
Parece evidente, até pelo elevado
número de candidatos aos concursos para admissão na “função pública”, que a
remuneração desta é muito mais atractiva do que a da generalidade do emprego no
sector privado. As causas desta atractividade – segurança no emprego,
carreiras, assistência social, entre outras – são factores de remuneração nunca
invocados na luta sindical do funcionalismo do Estado. A remuneração dos
funcionários públicos não está indexada ao desempenho da função, nem da
organização. Na realidade, a remuneração dos funcionários públicos resulta de
um consenso entre o possível e o desejável, dentro da norma de que as despesas
de funcionamento da administração, e despesas com pessoal, não devem
ultrapassar uma dada percentagem do orçamento do Estado.
As perguntas: Então o tempo não
conta? Ou: Não é de absoluta justiça o tempo de trabalho contar, mesmo
retroactivamente? (todo o tempo é contado retroactivamente, já agora) são
demagógicas em si mesma. Os funcionários são remunerados de acordo com as
mais-valias e o lucro resultante da introdução do seu trabalho na cadeia de
valor de um produto, de acordo com as prioridades e as possibilidades do
governo eleito (o administrador da “fazenda nacional”) e dentro de um princípio
de justiça para todos os cidadãos. Confundir justiça – um bem geral – com
interesses corporativos é demagogia.
As perguntas sobre a ofensa
sofrida pelos atuais funcionários públicos com o congelamento in illo
tempore têm subjacente a demagogia de esta ser apresentada como se fosse a
primeira vez que tal acontece e que os professores foram e são a única classe
profissional a sofrê-la. O doutor Nogueira deve ter alguém no seu estado-maior
com algum conhecimento da época histórica que ficou conhecida por “fontismo” –
com acções muito boas em termos de desenvolvimento e coisas más, em termos de
contas públicas. Acontece que o endividamento deixou então de ser amortizável,
Portugal abandonou o padrão ouro, e uma das consequências foi os funcionários
públicos estarem dois anos sem receberem salários. Isto no século XIX. No
século XX, quer na República, quer no Estado Novo, houve redução nos salários
dos funcionários e degradação das suas carreiras, resultantes de falta de
recursos, nomeadamente nos professores primários, que foram substituídos por
regentes escolares…
Nos anos 80 do século vinte são
conhecidas (mas esquecidas) as dramáticas situações de salários em atraso, de
fome, miséria, de bandeiras negras em particular na península de Setúbal e no
Vale do Ave. Também esses trabalhadores devem ter direito a “descongelamento”.
Ou não? Ou a situação dos professores, enfermeiros, magistrados, militares,
guardas e polícias é mais dramática do que foi a deles? O PCP não quererá repor
os salários aos operários vítimas do desmantelamento da indústria têxtil e da
indústria naval?
A demagogia e o egoísmo
corporativo implícitos na invocação do direito a exigir tudo e à custa de todos
os outros remete-me para a sensatez de uma pequena história de André Brun,
autor de operetas de sucesso (A Maluquinha de Arroios, p.ex), antigo
expedicionário na Flandres, onde terá sofrido ataques de gás, provável origem
da tuberculose que o vitimou. Na fase final da doença, alguns amigos foram
vê-lo e um deles ter-lhe-á perguntado: Como vais, André? E ele terá respondido,
com senso e humor: Como todos, de fato preto e sapatos de polimento.
A vida é uma sucessão de
circunstâncias. E a vida em sociedade só é possível com justiça e
razoabilidade. É estranho serem os professores os últimos a perceberem esta
velhíssima realidade histórica e filosófica.
*Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
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