Os episódios contra o Irão
integram uma estratégia de guerra híbrida, tão do agrado dos estrategos actuais
do establishment e que está em movimento na Venezuela.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Segundo as mais fresquinhas
informações vindas directamente das águas tépidas do Golfo de Omã, a marinha
dos Estados Unidos descobriu fragmentos de minas que há uma semana terão
danificado dois petroleiros que estavam de passagem pela região. E segundo as
inscrições nelas registadas, agora sim não há dúvida de que o autor da maldade
foi o Irão, há que castigá-lo. Razão tinham o presidente Trump e os seus
guardas pretorianos Bolton e Pompeo, que juravam desde o primeiro momento ter
pressentido as «impressões digitais» de Teerão no incidente.
Assim se definem hoje a guerra e
a paz, os culpados e os inocentes, os juízes e os condenados em relações
internacionais. Como o vídeo mal-amanhado apresentado pelo comando regional do
Pentágono, e em cima do acontecimento, não convenceu ninguém da culpa do Irão –
excepção feita ao Reino Unido, o mais aliado entre os aliados – eis que a
incansável armada imperial, vasculhando cada polegada das águas do Médio
Oriente, diz ter encontrado os despojos de uma verdade, agora sim, irrefutável.
Mesmo que o proprietário japonês do navio acidentado tenha garantido que não
houve quaisquer minas no casco, mas sim «um objecto voador», partindo daí para
qualificar a teoria norte-americana como «falsa» e levando também o governo de
Tóquio a afastar-se das maquinações bélicas do seu aliado de Washington.
União Europeia sem coragem
política
Até os ministros dos Negócios
Estrangeiros da sempre tão solícita União Europeia, dando sinais de desconcerto
e de uma clamorosa falta de coragem política, optaram por pedir «provas
independentes» susceptíveis de incriminar o Irão, como quem parte do princípio
de que Teerão pode ter alguma coisa a ver com a encenação quando teria tudo a
perder no caso de se dedicar a estas aventuras suicidas e inconsequentes de
abrir rombos em navios alheios. O Irão, a quem o direito internacional confere
toda a legitimidade para encerrar o Estreito de Ormuz e quase secar o
fornecimento mundial de petróleo, só iria sofrer irreparáveis danos
estratégicos se optasse por recorrer a crimes banais próprios de flibusteiros
de meia tigela.
A alguns ministros dos Negócios
Estrangeiros da União não bastou ainda terem sido ludibriados com o golpe na
Venezuela; agora guardam alguma distância em relação aos procedimentos
norte-americanos, mas são incapazes de dar um único passo para tentar travar um
risco de guerra com repercussões imprevisíveis. Em nome da razão e dos direitos
humanos que tantas vezes invocam têm o dever de se opor, desde já, a esta
aventura criminosa em andamento.
Afinal há uma prova
Uma prova – esta sim autêntica, e
já com dez anos de existência – do que está a passar-se por estes dias no Médio
Oriente pode ser encontrada numa publicação de um dos pesos pesados da
elaboração estratégica norte-americana, o Brookings Institution, no seu
trabalho Que caminho para a Pérsia?1,
publicado em 2009. A
dado passo pode ler-se:
«…Seria bastante preferível,
antes de lançar os ataques aéreos, que os Estados Unidos pudessem citar uma
provocação iraniana como justificação para realizá-los. Claramente, quanto mais
sensacionalista, mais mortífera e mais improvável for a acção iraniana melhor
será para os Estados Unidos. É claro que será muito difícil aos Estados Unidos
incitarem o Irão a fazer tal provocação sem que o resto do mundo reconheça esse
jogo, o que o prejudicaria».
E mais adiante:
«… No caso de Washington
pretender tal provocação, poderia tomar acções que tornassem mais provável a
possibilidade de o Irão a fazer (embora o risco de o processo ser demasiado
óbvio poder anular a provocação). No entanto, se for deixado apenas ao Irão o
movimento de criação da provocação, uma coisa em relação à qual o Irão tem sido
muito reservado no passado, os Estados Unidos nunca saberão ao certo se virão a
dispor da necessária provocação iraniana. De facto, ela poderá mesmo não
acontecer de todo».
Em dois singelos parágrafos
reconstitui-se a velha estratégia de «bandeira falsa» a que os Estados Unidos
têm recorrido em quase todas as guerras que iniciam. Um método que pode ir
buscar-se aos finais do século XIX, quando foi lançada a guerra contra o domínio
espanhol em Cuba; ao episódio do navio Lusitânia, que abriu as portas à
participação dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial; a Pearl Harbour,
idem aspas para a Segunda Guerra Mundial; ao caso do Golfo de Tonquim na guerra
do Vietname; e sem esquecer, com as suas características muito próprias, a
encenação sobre as armas de destruição massiva que estariam em poder do Iraque
de Saddam Hussein.
É certo que os episódios com os
petroleiros no Golfo de Omã não têm a consistência que a Brookings Institution
recomenda, mas servem para provar que o quarteto fascista
Trump-Pence-Bolton-Pompeo não parece preocupado com a qualidade e a
credibilidade do pretexto para avançar.
Guerra híbrida
Para já os episódios contra o
Irão – haja ou não os «bombardeamentos massivos», mas «limitados»,
norte-americanos ou israelitas de que já se fala – integram uma
estratégia de guerra híbrida, tão do agrado dos estrategos actuais do establishment e
que está em movimento na Venezuela, por exemplo.
Na frente iraniana, trata-se de
juntar a desestabilização provocada pela ameaça latente de uma guerra
convencional aos efeitos das sanções e embargos, capazes de colocar a economia
de Teerão à beira do abismo por não vender petróleo, às conspirações internas
para minar o regime, ao terrorismo propagandístico. Combinam-se assim múltiplas
acções com uma sobrecarga de efeitos a que um país cada vez mais isolado terá
muita dificuldade em resistir.
O embargo petrolífero, depois das
mais recentes medidas de Washington, fechou praticamente a torneira das
exportações de hidrocarbonetos iranianos. De tal modo que as autoridades de
Teerão decidiram ultrapassar os limites de enriquecimento de urânio
estabelecidos no Acordo Nuclear de Genebra – do qual os Estados Unidos se
retiraram – para tentar contornar dificuldades energéticas suscitadas pelo
descalabro económico.
Os responsáveis iranianos
advertem, contudo, que esta medida será imediatamente suspensa se a União
Europeia não acatar o embargo petrolífero imposto pelos Estados Unidos – uma
atitude que depende assim da coragem política de Bruxelas que, como já se viu,
é pouca ou nenhuma.
A guerra contra o Irão está,
portanto, em movimento. Arbitrária, desumana, ilegal mas em relação à qual as
Nações Unidas permanecem inactivas, a não ser pedindo «contenção às duas
partes».
Duas partes? Agressor e vítima,
juiz e condenado ao mesmo nível num conflito que só tem um sentido. É assim que
age a chamada «comunidade internacional» perante a prepotência imperial.
O Irão está isolado; os Estados
Unidos transformam as medidas decididas pelo seu governo fora-da-lei em leis de
âmbito universal. De tal modo que, até ver, potências como a Rússia e a China
não parecem dispostas a desafiá-las.
Na cena internacional o crime
compensa. E o criminoso talvez nem necessite – embora a vontade seja muita – de
recorrer à guerra convencional.
A guerra híbrida está a cumprir o
seu papel.
Na imagem: O petroleiro norueguês Front Altair em chamas no Golfo de Omã, 13 de Junho de
2019.Créditos STRINGER / EPA
1. Ver
Pollack, Byman, Indyk e outros, Which Path to Persia - Options for a New American Strategy
toward Iran, The Saban Center for Middle East Policy, Brookings Institution
(Washington: 2009).
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