sábado, 22 de junho de 2019

Dinheiro: o novo sonho de controle do Facebook


Um cartel de corporações articulado por Mark Zuckerberg quer substituir os Estados e lançar moeda global. O que significaria privatizar a emissão do instrumento que media a produção, distribuição e consumo de riquezas?

David Dayen, entrevistado por Amy Goodman e Juan Gonzalez, no Democracy Now| Tradução: Simone Paz e Felipe Calabrez | em Outras Palavras

Em um movimento com o potencial de remodelar o sistema financeiro internacional, o Facebook revelou seus planos de lançar uma nova moeda digital global, chamada Libra. A empresa anunciou seus projetos na terça-feira, depois de trabalhar secretamente na criptomoeda por mais de um ano. A Libra será lançada no ano que vem, em uma parceria com outras grandes corporações como Visa, Mastercard, PayPal e Uber. O Facebook diz que quer criar “uma moeda simples e global, e uma infraestrutura que empodere bilhões de pessoas”.

David Marcus, presidente da criptomoeda do Facebook, disse na CNBC:

"Se você comparar a Libra com as moedas digitais tradicionais, a primeira diferença que aparece é que as criptomoedas tipicamente são veículos de investimento, ou ativos de investimento, mais do que um grande meio de mudança. Essa é projetada, desde o início, para ser um grande meio de troca, uma forma de dinheiro digital de alta qualidade, que você pode usar, sem limites de fronteiras, para pagamentos diários, microtransações e todo o tipo de coisa."

O projeto do Facebook já está sob crítica feroz de reguladores financeiros e legisladores. O Ministro de Finanças francês, Bruno Le Maire, disse que a Libra não pode tornar-se uma moeda soberana. Em Washington, o presidente do Comitê de Serviços Financeiros da Câmara e membro do Congresso, Maxime Waters, pediu ao Facebook que interrompa o desenvolvimento da Libra até que legisladores e reguladores tenham a oportunidade de examinar essas questões e agir. O senador democrata norte-americano Sherrod Brown tuitou: “O Facebook já é demasiadamente grande e poderoso e usou esse poder para explorar os dados de usuários sem proteger sua privacidade. Não podemos permitir que comande essa novas e arriscada criptomoeda que vem de um banco suíço sem supervisão.”

Falamos com David Dayen, o editor executivo da revista The American Prospect. Recentemente, ele escreveu um artigo para o The New Republic intitulado A batalha final na guerra das grandes empresas de tecnologia para dominar o mundo.

Amy Goodman: Dayen, explique exatamente o que é a Libra e o que o Facebook está tentando fazer.

David Dayen: A Libra, como o Facebook a descreve, é uma criptomoeda. Quando ouvimos esse termo, pensamos em algo como a Bitcoin. Mas na verdade, ela teria reservas reais, então eles a chamam de algo como uma moeda estável. Está lastreada por dinheiro real de várias moedas internacionais e também por seguridades de governos. Isso deveria impedir a volatilidade da unidade de troca, a Libra, de subir e baixar com frequência. Flutuará um pouco, mas não da maneira que vemos que acontece com a Bitcoin. Então, de acordo com o Facebook, é dessa maneira que poderá ser usada para comprar bens no aplicativo da rede social e em qualquer outro aplicativo ou website que ofereça pagamentos em Libra. É uma maneira de transferir dinheiro para outras pessoas que usam o Facebook. É um jeito de transferir algo de valor a esses usuários. E, porque é apoiada por moedas internacionais e pode ser usada através das fronteiras, realmente pode suplantar a necessidade do câmbio de dinheiro. Você não terá mais que trocar dólares por euros, pode simplesmente pagar em Libras. Esse é o tom que o Facebook está tentando passar.

Por outro lado, não há configuração regulatória real. Isso está deslocando moedas globais de algumas maneiras. Há preocupações sobre políticas monetárias e regulação muito sérias. A Libra poderia ser usada para facilitar lavagem de dinheiro ou evasão fiscal? Há toda uma série de perguntas que não foram respondidas.

Juan González: E ainda, isso tudo envolve muitas empresas privadas, não apenas o Facebook. Eles foram os idealizadores, mas conseguiram o apoio de empresas de cartão de crédito, do PayPal, do Uber, de uma lista de empresas muito poderosas, principalmente dos Estados Unidos. E se está, em essência, criando uma organização privada para controlar um sistema monetário que poderá atravessar fronteiras. Eu passei algumas horas no site da Libra, ontem, tentando entender questões como a situação da governança desse sistema, e está muito bem detalhado. Eles trabalharam nisso, obviamente, por muito tempo, e em segredo.

Eles falam em criar um “Conselho da Associação da Libra”, no qual, para ser um membro-fundador, é preciso investir, no mínimo, 10 milhões de dólares; e, supostamente, nenhuma companhia poderia controlar este conselho, porque estaria limitada a um 1% de participação, sem importar quanto dinheiro ela investiu. Mas, se você investe uma grande quantia, consegue nomear universidades ou organizações sem fins lucrativos para votarem em seu nome neste conselho. Portanto, quanto mais dinheiro se investe, embora não se tenha poder direto sobre como a associação funciona, maior será a influência nos blocos de votação do que será, em essência, a nova moeda internacional. O que os órgãos regulatórios dirão sobre isso?

David Dayen: Bom, há sérias questões de governança em torno disso. Também há questões financeiras. Quero dizer que, da forma que isto funciona, pelo que entendi, é que há esse investimento de $10 milhões para até 100 empresas, então, estamos falando de um bilhão de dólares. E também, todo o dinheiro — se alguém comprar Libras, o dinheiro será pago a essa reserva, para obter Libras em troca. Esse dinheiro, ou reservas, pode ser usado em investimentos, como o Facebook diz, em títulos de baixíssimo risco, mas o dinheiro não volta ao indivíduo. Então, se compararmos com um banco, onde recebemos juros pelo dinheiro depositado — e que o banco pode usar para qualquer fim desejado — a situação é diferente. Neste caso, os juros vão para as empresas, logo, há um incentivo financeiro para que elas se envolvam.

E, se pensarmos na escala potencial, falamos em 2 bilhões de usuários — é quase um sistema operacional só para dinheiro — qualquer outra organização pode criar serviços de pagamento nesse estilo. As possibilidades são infinitas, portanto, também são infinitas as possibilidades financeiras. E haverá questões de governança sobre como esta moeda será administrada, como os fluxos de capital serão compreendidos e disponibilizados; no caso de um país sofrendo uma desaceleração econômica, por exemplo, a Libra é um excelente mecanismo para a fuga de capitais, que é algo que não se deseja quando um país está com problemas financeiros. Então, como isso será mitigado ou administrado? Como eu dizia, há muitas questões sem resposta sobre o assunto.

Juan González: O que dizer da questão dos países em conflito com outros — EUA e Irã, no momento, ou mesmo EUA e Venezuela? Do impacto desse tipo de moeda nos conflitos geopolíticos e na capacidade das nações em controlar suas próprias moedas?

David Dayen: Realmente, fica difícil prever como as sanções funcionariam sob esta configuração. É difícil saber como será qualquer tipo de mecanismo antilavagem de dinheiro, que normalmente um banco teria, para criar um relatório de atividades suspeitas. A Libra conseguirá fazer isso? Isso poderia ser utilizado para prejudicar outros países, tirando eles da conversibilidade com a Libra. Claro que seria feito em níveis individuais. Porém, geralmente, os países têm controle sobre sua própria moeda fiduciária. Se tiverem esse tipo de válvula de emergência, esta moeda global, que os desbanca em alguns aspectos, que um indivíduo poderá usar para todas as compras que precisar fazer, deixando de usar a moeda específica de seu país… não se sabe. Quero dizer que não há precedentes para isso, então fica difícil adivinhar quais serão as implicações. E é por isso que políticos e agências reguladoras estão pedindo que ir com calma, para que tudo isso possa ser mais ou menos estudado.

Amy Goodman: Na terça, o Facebook lançou um vídeo promocional, destacando o que eles vêem como os possíveis benefícios da nova moeda:

"Durante o programa em que esta entrevista foi realizada, o vídeo foi reproduzido. Na propaganda, o Facebook anuncia: “E se todos fossem convidados a fazer parte da economia global com acesso às mesmas oportunidades financeiras? Apresentamos a Libra, uma nova moeda global, projetada para o mundo digital, apoiada na convicção de que o dinheiro deveria ser rápido para Ope, em Lagos; simples para o negócio familiar de Saul, em Manila; e seguro para Betsabé mandar dinheiro da sua casa para a Cidade do México. Criada com blockchain, o que a torna segura e acessível, não importa de onde você é ou quem você é”.

Amy Goodman: Você poderia comentar as questões expostas acima. Além disso, por que a Libra tem sua base na Suíça? Tem a ver com o fato da Suíça ser um centro bancário, um paraíso fiscal?

David Dayen: A verdade é que, se você fosse capaz de criar algum tipo de carteira digital que pudesse ser usada em qualquer país e comprar e fazer microtransferências e coisas assim, seria de fato algo conveniente. Quero dizer, isso é exatamente o que o Facebook está apostando, certo? Neste momento, o sistema de pagamentos dos EUA é muito desajeitado, particularmente com transferências internacionais, que levam vários dias para serem liberadas. Haveria, por um ângulo, conveniência aqui.

E, é claro, o Facebook percebe que, se conseguir colocar as pessoas em seu site, podem fazê-las usar sua carteira digital, que controlam diretamente. Essa Associação da Libra, que está baseada na Suíça, como você mencionou, provavelmente por fins fiscais, é para controlar a governança da moeda. E há a Calibra, que David Marcus está controlando, uma carteira digital administrada por uma subsidiária de propriedade total do Facebook. Então, se Calibra se torna onipresente, se passa a ser algo que você realmente precisa para fazer compras, isso se transforma algo como o WeChat. Trata-se de um aplicativo na China que se tornou parte importante da vida das pessoas. Lá, é muito difícil usar o papel-moeda. Ou seja, esse é um aplicativo de mídia social, é uma ferramenta de bate-papo e também é um aplicativo de compra.

E essa é a meta final do Facebook. Se você inclui pagamentos a uma plataforma de mídia social incrivelmente dominante, basicamente terá trancado as pessoas no Facebook. Se fizer isso, enquanto está tirando uma parcela de cada transação que dois bilhões de pessoas fazem diariamente, ou apenas trancando pessoas no site, sabendo quais compras elas fizeram e, em seguida, vendendo anúncios muito ricos em dados com base nisso, cria-se uma perspectiva de dominação real. Eu realmente acho que ou a Libra não vai decolar, porque muitos reguladores e políticos ficarão desconfortáveis, ou daqui a 20 anos olharemos para trás e essa terá sido a semana em que foi anunciado o princípio desta empresa global dominante, que terá se tornado um parceiro digital indispensável que guia a vida de todos.

Juan González: Há também a questão da segurança. Atualmente, o Facebook é o maior ícone das violações do direito de privacidade dos indivíduos. Eles insistem em afirmar que a Calibra será uma subsidiária separada, que não compartilhará as informações dos usuários do Facebook com o sistema de pagamentos que criaram. Pode nos falar a respeito disso? Porque parece que o Facebook está basicamente usando sua posição monopolística sobre as mídias sociais para entrar no universo das transações financeiras.

David Dayen: Em primeiro lugar, é possível confiar nossa privacidade a Mark Zuckerberg, depois de anos e anos de revelações de como ele faz mau uso dela? Em segundo lugar, parece uma cortina de fumaça. Vamos levar em conta apenas o que Facebook está garantindo: que os dados financeiros e os dados sociais serão separados. Bem, para acessar as compras no Libra, ainda será necessário clicar no aplicativo do Facebook ou no WhatsApp ou em qualquer lugar, para encontrar a sua compra ou para procurar uma empresa que você deseja solicitar, qualquer coisa assim. Essa informação certamente estará disponível para o Facebook. Então, a ideia de que não há dados extras sendo guardados aqui, tratando-se do Facebook, simplesmente não é verdade. Quer dizer, se você gasta mais tempo no aplicativo, se navega para encontrar algo para comprar no aplicativo, algo que normalmente não é o que as pessoas fazem no Facebook, haverá muito mais dados que o Facebook poderá usar para segmentar anúncios e fazer o que quiser.

Amy Goodman: Então, novamente, o título de seu artigo, A batalha final na guerra das grandes empresas de tecnologia para dominar o mundo, faz sentido.

David Dayen: Nos últimos meses, as grandes empresas de tecnologia — Google, Apple, Amazon e Facebook — estão tentando descobrir como fazer esse tipo de parceria. Há a Apple, que criou algo como um cartão de crédito, chamado Apple Card. Já a Amazon, em parceria com outros sistemas globais de pagamento, criou o que eles chamam de Amazon Pay. O Google tem sua própria carteira digital. Agora, chegou o Facebook com algo novo — quem sabe o que é? É um banco? É um cartão pré-pago? É uma carteira digital? É uma moeda global? Todas essas empresas, que estavam competindo separadamente, agora estão se movendo para os sistemas de pagamento. Também estão mudando para outros espaços que se sobrepõem, como entretenimento, a caminho de se tornar algo que seja o único tipo de ferramenta digital necessário. Assim, será possível fazer todas as compras, conversar com todos os amigos, acessar todo o entretenimento, fazer tudo o que quiser dentro desse mundo, seja no Facebook, Google, Amazon ou Apple.

E essa é realmente a intenção deles. É por isso que eu chamo de guerra de todos contra todos. É essa a batalha final pela dominação global. Seu desfecho ainda é indeterminado, neste momento, mas o que sabemos é que, se isso está sendo criado — já temos essas empresas que são monopólios em seus próprios tipos de espaços pessoais –, se elas combinam entre si diversas opções para o indivíduo, então existe esse monstro absoluto dominante. E, você sabe, há sérias preocupações em conceder essa quantidade de poder a uma empresa.

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