Miguel Guedes* | Jornal de
Notícias | opinião
Todos os dias somos confrontados
com aberrações com as quais somos cúmplices por omissão. Basta olhar e exigir o
confronto com o que existe como regular vazio, ao nosso lado, aquele que
suportamos mesmo quando nos intima por voz própria.
Está nas pequenas coisas, tantas
vezes nos detalhes. Está na pobreza, no tratamento desigual, na descriminação
de tantos modos, está num piscar de olhos se formos atentos. A compulsão para
fazer vista grossa é o demónio que a rotina instala. Tudo se normaliza quando é
vulgar, ordinário ou recorrente. Então, morrem? Vão continuar a morrer. Se
morrem todos os dias... Traço contínuo, pisão, a morte já nos chega com o cunho
da inevitabilidade e pronto. É conveniente fechar os olhos para seguir em
frente. Mas tudo fica mais fácil quando encontramos um herói que pode
transformar-se em mártir. Salvemo-nos então por ele, um bocadinho.
Aliviemo-nos.
Salvar pessoas da morte por
afogamento pode resultar em crime pela hipotética falta de papelada da vítima.
Miguel Duarte é um estudante de Matemática, hoje com 26 anos, que, em 2016 e
2017, resolveu partir para o Mediterrâneo a bordo do navio "Iuventa"
numa missão humanitária da "Solidarity at Sea": resgatar refugiados
da morte mais que certa no âmbito de acção da ONG "Jugend Rettet".
Salvar vidas, portanto. Com outros nove activistas, vai ser julgado em Itália
por auxílio à imigração ilegal, acusação do Ministério Público italiano que o
faz incorrer numa pena de 20 anos de prisão. "Se vejo uma pessoa a morrer
afogada, não lhe pergunto se tem ou não passaporte - tiro-a da água, salvo-a e
depois então o Estado verifica a sua situação e trata da burocracia",
explica Miguel Duarte, como se fosse necessário afogar mágoas com evidências.
Não é a primeira vez que acontece, mas é insano chegar ao ponto em vemos a
justiça dos homens a perseguir aqueles que se limitam a fazer o óbvio com
inquebrantável coragem, humanismo e disponibilidade.
Ontem, Dia Mundial do Refugiado,
não foi um dia grato para a extrema-direita populista europeia, nomeadamente
aquela que suporta a acusação a Miguel Duarte e a tantos outros que, como
refere Marcelo Rebelo de Sousa, exercem algo que nem é só um direito mas, antes
de mais, um dever: o dever de salvar. Ao contrário de Itália, onde a coligação
entre o "Movimento 5 Estrelas" e a "Liga" tudo faz por
aumentar as multas a navios de resgate, encerrando os portos que recebem estas
embarcações, navegamos em Portugal num mar tranquilo. Apesar de muitos partidos
ainda não se terem pronunciado, não é crível que se afastem do apoio que o
presidente da República, Governo e BE já manifestaram. Preocupante é como a
maior proximidade entre a política portuguesa e o ministro do Interior
italiano, Matteo Salvini, se revela nas caixas de comentário das notícias ou de
artigos como este. Para fazer "save", é favor evitar a edição
on-line.
*Músico e advogado
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
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