sexta-feira, 21 de junho de 2019

Salvar vidas on-line


Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

Todos os dias somos confrontados com aberrações com as quais somos cúmplices por omissão. Basta olhar e exigir o confronto com o que existe como regular vazio, ao nosso lado, aquele que suportamos mesmo quando nos intima por voz própria.

Está nas pequenas coisas, tantas vezes nos detalhes. Está na pobreza, no tratamento desigual, na descriminação de tantos modos, está num piscar de olhos se formos atentos. A compulsão para fazer vista grossa é o demónio que a rotina instala. Tudo se normaliza quando é vulgar, ordinário ou recorrente. Então, morrem? Vão continuar a morrer. Se morrem todos os dias... Traço contínuo, pisão, a morte já nos chega com o cunho da inevitabilidade e pronto. É conveniente fechar os olhos para seguir em frente. Mas tudo fica mais fácil quando encontramos um herói que pode transformar-se em mártir. Salvemo-nos então por ele, um bocadinho. Aliviemo-nos.

Salvar pessoas da morte por afogamento pode resultar em crime pela hipotética falta de papelada da vítima. Miguel Duarte é um estudante de Matemática, hoje com 26 anos, que, em 2016 e 2017, resolveu partir para o Mediterrâneo a bordo do navio "Iuventa" numa missão humanitária da "Solidarity at Sea": resgatar refugiados da morte mais que certa no âmbito de acção da ONG "Jugend Rettet". Salvar vidas, portanto. Com outros nove activistas, vai ser julgado em Itália por auxílio à imigração ilegal, acusação do Ministério Público italiano que o faz incorrer numa pena de 20 anos de prisão. "Se vejo uma pessoa a morrer afogada, não lhe pergunto se tem ou não passaporte - tiro-a da água, salvo-a e depois então o Estado verifica a sua situação e trata da burocracia", explica Miguel Duarte, como se fosse necessário afogar mágoas com evidências. Não é a primeira vez que acontece, mas é insano chegar ao ponto em vemos a justiça dos homens a perseguir aqueles que se limitam a fazer o óbvio com inquebrantável coragem, humanismo e disponibilidade.

Ontem, Dia Mundial do Refugiado, não foi um dia grato para a extrema-direita populista europeia, nomeadamente aquela que suporta a acusação a Miguel Duarte e a tantos outros que, como refere Marcelo Rebelo de Sousa, exercem algo que nem é só um direito mas, antes de mais, um dever: o dever de salvar. Ao contrário de Itália, onde a coligação entre o "Movimento 5 Estrelas" e a "Liga" tudo faz por aumentar as multas a navios de resgate, encerrando os portos que recebem estas embarcações, navegamos em Portugal num mar tranquilo. Apesar de muitos partidos ainda não se terem pronunciado, não é crível que se afastem do apoio que o presidente da República, Governo e BE já manifestaram. Preocupante é como a maior proximidade entre a política portuguesa e o ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, se revela nas caixas de comentário das notícias ou de artigos como este. Para fazer "save", é favor evitar a edição on-line.

*Músico e advogado

O autor escreve segundo a antiga ortografia

Sem comentários:

Mais lidas da semana