Crónica da derrubada de cem casas
palestinas, em meio ao desamparo, à perversidade burocrática e à violação das
próprias leis de guerra. Edward Said e Foucault explicariam: não se trata de
“abuso”, mas de limpeza étnica
Berenice Bento | Outras Palavras | Imagens Berenice Bento
As recentes demolições de casas
de famílias palestinas tiveram certo destaque nos noticiários nacionais e
internacionais nas últimas semanas. Em poucas horas, mais de 100 casas/prédios
foram destruídos pelo Exército de Israel, na região de Sur Bahir1.
O que as recentes demolições explicitam, mais uma vez, é a falência total dos
Acordos de Oslo, uma vez que aconteceram em área palestina. Assim, não faz
muito sentido falar em “romper acordos com Israel”. Quais acordos? O que
é legal, moral quando discutimos as ações do Estado de Israel? O aprisionamento
dos/as palestinos/as em Gaza (a maior prisão a céu aberto do mundo), as
demolições, as prisões dos/as palestinos/as, os assassinatos contínuos de
palestinos/as são algumas das políticas de controle absoluto que o Estado de
Israel implementam sobre a vida dos/as palestinos/as.
Edwar Said (no livro A
questão palestina) chamou ao conjunto destas políticas de controle e de
despossessão contínuas do povo palestino de “colonialismo do detalhe”. Estou de
acordo com ele porque as políticas coloniais têm como característica invadir
todos os poros da vida do povo colonizado (tanto subjetiva quanto objetivamente).
Para nomear o detalhamento destas políticas prefiro, no entanto, nomeá-la de
microfísica do poder colonial, inspirando-me no conceito de microfísica do
poder de Michel Foucault (Microfísica do Poder, 1982. Ed. Graal).
As demolições fazem parte desta
microfísica do colonialismo israelense. No entanto, a forma como a
imprensa nacional e internacional repercutiu as últimas demolições sugere que
são ações excepcionais do Estado de Israel. Não são. Há anos os/as
palestinos/as residentes, principalmente, em Jerusalém Oriental, veem suas
casas sendo demolidas. O projeto estratégico colonial do sionismo é o
mesmo desde 1948: expulsar o povo palestino de suas terras.
Em dezembro 2016, durante minha
segunda viagem à Palestina, assisti (impotente e com minhas vísceras em
ebulição) ao drama de famílias desesperadas que tiveram suas casas transformas
em escombros. Abaixo transcrevo o texto testemunhal escrito naquele
contexto dramático. E se o recupero agora é apenas para lembrar que as
demolições dos últimos dias, não são excepcionalidades, fazem parte do projeto
continuado de limpeza étnica israelense.
Entre concreto, choro e chá:
demolição em Silwan
Jerusalém Oriental. Dezembro, 2016
Este texto teve vários inícios.
Um dos esboços contava como a estratégia política do Estado de Israel para
seguir apropriando-se das terras dos/as palestinos/as se sustenta em um
conjunto de técnicas operada por uma burocracia eficiente e por um dos
exércitos mais poderosos do mundo. Entre estas políticas destaca-se: a construção
dos muros, a restrição para se conseguir a autorização para a construção, o
controle pelo exército da mobilidade dos/as palestinos/as em suas próprias
terras, as prisões de crianças e adultos palestinos sem uma acusação formal,
construção de assentamentos em terras palestinas. No entanto, tudo que escrevi
ficou sem sentido, sem alma, depois que conheci a família do senhor Asma
Shuikhe.
Ali, entre ferro, concreto e
outros escombros estavam a materialização, na esfera micro, da política
tentacular do Estado de Israel. Com sua voz cansada e pausada, contou que às
três da manhã, centenas de soldados da Forças de Defesa de Israel (IDF – Israel
Defense Forces) fecharam a rua e, em pouco tempo, os 35 metros quadrados
(uma expansão da casa original) foram destruídos. A reforma tinha como objetivo
dar mais conforto à sua família de 13 membros.
“Depois que eles terminaram a
demolição, soldados entraram na minha casa [refere-se à parte da casa original,
não demolida] com cachorros. Eu perguntei o que eles queriam. Um soldado
respondeu: ‘Eu faço o que eu quero! ’”.
A família e vizinhos olhavam para
os escombros como se estivessem velando um corpo de uma criatura amada. Não
sobrou nada. A casa morreu. Algumas pessoas estavam em silêncio, outras evocam
palavras e jogavam suas mãos para seus céus em um claro diálogo com Deus.
Enquanto conversávamos, um dos
seus filhos nos oferecia chá. O funeral de uma casa sonhada. De um lado os
escombros, do outro, os poucos e pobres móveis que foram retiradas às pressas.
Qual o motivo da demolição? A falta de autorização para a realização da obra,
justifica a autoridade colonial.
A demolição desta casa não é
“apenas” a demolição de uma casa. Conforme dito, há um conjunto de políticas
eficazmente planejada para retirar as terras dos/as palestinos/as. O controle
das construções é uma delas. Para se conseguir a autorização deve-se submeter
um pedido a vários órgãos, nos termos de Lei de Planejamento e Construção, de
1965, que regula inteiramente o planejamento e construção em Israel, incluindo
a Jerusalém Oriental2.
Raramente uma família palestina consegue esta autorização, o processo pode
levar anos e custa somas consideráveis.
De acordo com esta lei há três
motivações para realização das demolições: 1) punitiva; 2) necessidade militar;
3) judicial ou administrativa3.
As demolições por punição são
realizadas nos termos do artigo 119 da Emergency Defense Regulations de
1945, e aplicam-se em situações onde um ocupante da casa foi encontrado
envolvido ou com suspeita de envolvimento em atos de violência contra o Estado
de Israel. As autoridades militares também podem autorizar demolições, uma
medida que, em certas circunstâncias, é permitida sob a lei internacional, mas
é estritamente limitada nos casos de absoluta necessidade militar. De acordo
com a Lei de Planejamento e Construção, as demolições judiciais ou
administrativas (as que acontecem com maior frequência) são realizadas nos
casos onde a casa ou outra estrutura é construída sem a permissão. A demolição
da casa daquela família que conheci naquela manhã insere-se nesta categoria.
Mas seria “apenas” a casa dele? A família vive em Silwan Valley, na Jerusalém
Oriental4,
área com aproximadamente 55.000 palestinos/as e 400 judeus/judias espalhados/as
em vários assentamentos5.
Cerca de 99% dos pedidos de permissão para construir ou reformar feitos por
palestinos são negados.
Naquela mesma manhã visitei
outras duas construções que foram demolidas (um abrigo para animais – com o
confisco do cavalo pelo Estado de Israel – e uma casa que abrigava nove
pessoas), todas na mesma área.
Como em toda a Jerusalém
Oriental, a infraestrutura nesta área é pobre, embora os/as palestinos/as sejam
obrigados/as a pagar todos os impostos ao Estado de Israel. As ruas não têm
asfalto de qualidade, a iluminação pública é precária e o lixo espalha-se por
todas as partes.
Enquanto conversávamos o Sr. Asma
Shuikhe me mostrava a incoerência da lei.
“Você está vendo aquela casa? A
que tem uma bandeira de Israel? Ele é uma casa de um colono judeu”. [Era uma
casa de três andares que se destacava pela ostentação em relação às outras da
mesma rua]
Continuou:
“Nós, palestinos, nunca
conseguimos permissão para fazer nada em nossas casas. Gastamos muito dinheiro
e nunca conseguimos. Israel quer expulsar todos nós. Como conseguir uma
autorização para fazer reformas ou construir uma nova casa?
Jerusalém Oriental é considerada
território ocupado. Desta forma, a transferência de civis é proibida de acordo
com o direito internacional humanitário. Ainda de acordo com a Lei
Internacional Humanitária6,
uma ordem para expropriação de terra, para ser legal, deve beneficiar a
população local que está sob ocupação. No caso de Jerusalém Oriental, contudo,
a vasta maioria de terras expropriadas, anteriormente propriedade de
palestinos, foi para beneficiar os judeus israelenses.
Quando Sr. Asma Shuikhe afirma
que o Estado de Israel quer expulsar os/as palestinos/as de suas terras, a
demolição de sua casa passa a ter um sentido mais amplo e conecta-se com o
projeto político mais amplo e tentacular. A aparente fragmentação desaparece e
o que poderia ser interpretado apenas como uma questão de uma burocracia
estatal perversa e eficiente passa a ter outros sentidos. Estamos diante de
política continuada de limpeza étnica.
Notas:
1 Para
um informe destas demolições, consultar: https://www.ochaopt.org/content/threat-demolitions-east-jerusalem
2 Todos
os documentos para requerer autorização devem ser submetidos em hebraico. Para
entender os mecanismos burocráticos necessários, ver: Fact sheet: applying
for a building permit in East Jerusalem. Norwegian Refugee Council (NRC),
May, 2013.
3 In:
Information, counselling and legal assistence programme in the occupied
Palestinian territory. Fact sheet: FAQS on mainn legal issues in East
Jerusalem, May, 2013.
4 Durante
a guerra de 1948, Israel apoderou-se da área ocidental de Jerusalém. Em
junho de 1967, Israel ocupou a Cisjordânia, incluindo a parte oriental de
Jerusalém. De acordo com a lei de Israel, os palestinos de Jerusalém Oriental
são considerados “residentes permanentes” e não cidadãos.
5 Para
acompanhar as demolições e prisões dos/as palestinos/as moradores/as desta
área, ver: http://silwanic.net/?p=53269.
6 De
acordo com o Statute of the International Criminal Court, esta prática também
constitui um crime de guerra em conflitos armados internacionais. Os
assentamentos estabelecidos e expandidos em todo o território ocupado da
Palestina, incluindo Jerusalém Oriental, têm sido repetidamente confirmado pelo
Conselho de Segurança da UNO como ilegais.
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