segunda-feira, 29 de julho de 2019

EUA e Irão empancados no marco zero das negociações -- Pepe Escobar

Ponto de estrangulamento do Estreito de Ormuz (Flickr)

Tudo é possível em matéria de insanidade geopolítica, quando se tem o President of the United States (POTUS) a anunciar em altos brados que podia disparar primeiro ataque nuclear para pôr fim à guerra no Afeganistão e “varrer da face da terra” o país todo numa semana. Mas que prefere não fazer isso, para não matar 10 milhões de pessoas.

À parte o fato de que nem um ataque nuclear jamais derrubaria o já lendário espírito de luta dos pashtuns afegãos, a mesma lógica pervertida – ordenar primeiro ataque nuclear como alguém ordena que lhe tragam um cheeseburger – também se aplica ao Irão, em lugar do Afeganistão.

Trump mais uma vez atira contra o próprio pé, ao declarar que uma potencial guerra no Golfo Persa “pode ir para um lado ou para o outro, e por mim tanto faz para que lado vá” – para delícia dos psicopatas que mantêm relações com o Departamento de Estado, que espalham a ideia de que o Irã estaria suplicando para ser bombardeado.

Não surpreende que todo o Sul Global – para nem falar da parceria estratégica Rússia-China – tenha aprendido a não confiar em coisa alguma que saia da boca ou de tuítos de Trump, tiroteio ininterrupto operado como tática de intimidação.

Pelo menos, está bem clara agora a impotência de Trump diante de adversário determinado, como o Irão: “Cada vez mais difícil para mim querer fazer acordo com o Irã.” O que sobra são clichês ocos, como “o Irão tem-se comportado muito mal” e “estado terrorista número um no mundo” – os mantras de passeata que emanam de Telavive.

Nem a guerra económica – ilegal – sem limites e o total bloqueio contra Teerão parecem bastar. Trump anunciou sanções extras contra a China, porque Pequim “aceita petróleo cru” do Irão. As empresas chinesas simplesmente ignorarão quaisquer sanções.


Tudo bem com ‘OK seja como for’

“OK seja como for” é exatamente o tipo de resposta esperada pela liderança em Teerão. O prof. Mohammad Marandi da Universidade de Teerão confirmou para mim que Teerão não ofereceu a Trump qualquer tipo de “renegociação” do acordo nuclear [ing. JCPOA] em troca do fim das sanções: “Não é renegociação. O Irão ofereceu-se para fazer avançar a ratificação de protocolos adicionais, se o Congresso remover todas as sanções. Seria grande vitória para o Irão. Mas os EUA jamais aceitarão.”

Marandi também confirmou que “nada de importante está sendo discutido” entre o ministro de Relações Exteriores do Irão Javad Zarif e o senador Rand Paul, negociador que Trump tenta agora introduzir nas negociações: “Bolton e Pompeo continuam no comando.”

O fato crucial é que Teerão rejeita qualquer nova negociação com a Casa Branca “sejam quais forem as circunstâncias”, como disse Hossein Dehghan, principal conselheiro militar do Supremo Líder Aiatolá Khamenei.

Dehghan mais uma vez deixou bem claro que, em caso de qualquer tipo de aventura militar, todas as bases do Império de Bases dos EUA em todo o Sudeste da Ásia passarão a ser considerados alvos.

É medida que se articula claramente às agora já consolidadas novas regras de engajamento, muito bem detalhadas pelo correspondente Elijah Magnier (ing. e traduzido ao português). Estamos todos em território de “olho por olho”.

E isso nos leva à alarmante expansão da demência das sanções, violentamente manifesta nos dois cargueiros iranianos carregados com milho e paralisados ao largo do sul do Brasil, porque a Petrobrás, com medo das sanções dos norte-americanos, recusa-se a reabastecer os navios.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, fã fanatizado de Trump, fez do país, em menos de sete meses, uma neocolónia tropical dos EUA. Quanto às sanções dos EUA, Bolsonaro disse que “Estamos alinhados com as políticas deles. Fazemos o que temos de fazer”. Teerão, por sua vez, ameaçou cortar importações de milho, soja e carne do Brasil – $2 biliões por ano – se os cargueiros não forem abastecidos.

É desenvolvimento extremamente grave. O governo Trump não pode impor sanções – ilegais – ao comércio de alimentos. Agora, o Irão fica limitado quase completamente à permuta para obter alimentos – porque Teerão não pode operar através dos sistemas CHIPS-SWIFT de compensação de pagamentos via bancos. Se o suprimento de alimentos começa a ser bloqueado, significa que, mais dia menos dia, o Estreito de Ormuz pode também ser bloqueado.

Fontes do Departamento de Estado na avenida Beltway confirmaram que o mais alto escalão do governo dos EUA ordenou que Brasília detivesse no porto esse embarque de alimentos para o Irão.

Teerão conhece bem esses movimentos – parte da campanha de “pressão máxima” do governo dos EUA, cujo objetivo é matar de fome a população iraniana, num letal jogo da franga [ing. game of chicken, literalmente “jogo da galinha”].

O modo como isso pode acabar já aparece num comentário assustador que já citei numa das minhas colunas anteriores [“Irão parte para contrapressão máxima”, 23/6/2019, traduzido em O Empastelador]: “Se o Estreito de Ormuz for fechado, o preço do petróleo chegará a mil dólares o barris, representando mais d 45% do PIB global, derrubando o mercado de $2,5 quatrilhões de derivativos, e criando depressão mundial de proporções jamais vistas.”

Pelo menos, o Pentágono parece ter compreendido que guerra contra o Irão fará colapsar a economia mundial.

Agora, assunto completamente diferente

Então, no fim, mas nem por isso menos importante, há a guerra dos navios-tanques.

O analista holandês Maarten van Mourik observou que há discrepâncias significativas em torno do episódio de pirataria britânica em Gibraltar – que deu origem à guerra dos navios-tanques. O navio-tanque Grace 1 “foi pirateado por Marines da Marinha Real em águas internacionais. O Estreito de Gibraltar é passagem internacional, como o Estreito de Ormuz. Há apenas 3 milhas náuticas de águas territoriais em torno de Gibraltar, e essas também estão em disputa.”

Mourik acrescenta que, “O Grace 1 tem capacidade para 300 mil MT de petróleo cru, e limite máximo de calado de cerca de 22,2m; o último calado via AIS indicava que o petroleiro estava a 22,1 metros, ou seja, estava totalmente carregado. Ora, o porto de Banyas na Síria, onde se localiza o porto petroleiro offshore, tem profundidade máxima de 15m. Significa que de modo algum o Grace 1 pode atracar lá, sem antes ter descarregado em algum ponto. Sem ter descarregado provavelmente quantidade muito grande, de modo a subir para os limites necessários de calado.”

Isso se conecta com a recusa on the record, do ministro Javad Zarif, de Relações Exteriores, a informar para onde realmente navegava o Grace 1, sem confirmar que o destino fosse a Síria.

A resposta “olho por olho” do irã, com a tomada do Stena Impero que navegava sob bandeira britânica, evolui agora para um pedido dos britânicos, de que se organiza uma “missão de proteção liderada por europeus” no Golfo Pérsico, supostamente para proteger os navios contra a “pirataria de estado” iraniana.

Não surpreende que alguns já falem de sketch de Monty Python. Há aqui um Ministério de Confisco Pirado de Navios, que se separa da União Europeia, a qual suplica que a União Europeia meta-se numa “missão” diferente da campanha de “pressão máxima” dos EUA. E além disso, a missão não pode abalar o compromisso da Grã-Bretanha com a efetividade do acordo nuclear iraniano.

Dado que nações europeias não perdem chance de ostentar seu “poder” fracassante em todo o Sul Global, Grã-Bretanha, Alemanha e França parecem agora dedicadas à “missão” de “observar a segurança marítima no Golfo”, nas palavras do ministro de Relações Exteriores da França Jean-Yves Le Drian. Pelo menos, não será deslocamento de forças navais conjuntas – como Londres tanto queria. Diplomatas em Bruxelas confirmaram que o pedido agressivo inicial partiu de Londres, mas em seguida foi diluído. UE, OTAN e EUA não devem ser envolvidos – pelo menos, não diretamente.

Comparem agora tudo isso e o telefonema da semana passada entre o presidente do Irão Hassan Rouhani e o presidente da França Emmanuel Macron, com Teerão manifestando sua determinação de “manter todas as portas abertas” para o acordo nuclear. OK, mas com certeza não haverá portas abertas para o sketch à moda Monty Python.

Isso foi devidamente confirmado pelo vice-ministro de Relações Exteriores do Irão Abbas Araghchi, que disse que o Irão “não permitirá perturbações na navegação nessa área sensível”, enquanto o vice-presidente do Irão Eshaq Jahangiri rejeitava a noção de haver alguma “força-tarefa europeia conjunta” protegendo a navegação internacional: “Esse tipo de coaligações e a própria presença de estrangeiros na região já geram insegurança.”

Historicamente, o Irão sempre foi perfeitamente capaz de proteger esse Santo Graal Pentagonês – a “liberdade de navegação” – no Golfo Persa e no Estreito de Ormuz. Garantido que Teerão não precisa de ex-potências coloniais para promoverem qualquer liberdade por ali. Nada mais fácil do que o enredo desandar: a atual alarmante escalada no conflito só está acontecendo por causa da obsessão da “arte da negociação” que só pensa em impor ao Irão guerra económica ilegal total.

Traduzido por Vila Mandinga

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