Terra e trabalho para todos.
Jornadas de 6 horas. Salários igualitários. Casa por cem reais. Mobilização
permanente. Como o cooperativismo transformou a pequena Marinaleda num oásis,
em meio à Europa em regressão social e política
Timothy Ginty e Gabriel
Bayarri | Entrevista e trabalho de campo: Timothy Ginty e Scott
Arthurson | em Outras Palavras
No sul da Espanha, uma pequena vila de 2626 habitantes organiza-se há décadas para administrar comunalmente a propriedade da terra, do trabalho e das casas. A pequena aldeia andaluza de Marinaleda, que se dedica principalmente à agricultura, revelou-se ao mundo com o seu sistema de cooperativas como um exemplo de como este modelo de gestão pode reduzir de forma absolutamente eficaz os níveis de desigualdade e alcançar o pleno emprego.
Tim Ginty e Scott Arthurson
conversaram com o prefeito e líder carismatico do movimento, Juan Manuel
Sanches Gordillo, sobre seu papel na organização, educação e agitação da cidade
de Marinaleda.
Entre os olivais do sul espanhol,
pedimos aos trabalhadores rurais com seus velhos tratores e vans que nos
levassem a Marinaleda. Francisco abre um lugar para nós em seu carro, e
enquanto dirige ao longo da estrada local, conta os principais pontos da
aldeia: a Casa do Povo, onde o Sindicato dos Trabalhadores do Campo realiza
tarefas comuns de educação, ativismo e organização; os serviços públicos como a
piscina, as escolas e os centros esportivos.
Marinaleda, coberta de cal branca
como qualquer outra vila da serra sevilhana, tem vários murais pintados nos
seus prédios: os olhos escuros de Che Guevara observam-nos a partir dos
edifícios municipais. As bandeiras de uma Andaluzia vermelha, uma Catalunha
independente, um País Basco e uma Palestina livre pintam a cidade de vermelho,
verde e azul. Os pombos voam sobre as palavras de paz, rebelião e esperança.
Juan Manuel Sánchez Gordillo é uma figura central no “milagre de Marinaleda”.
Prefeito desde 1979, o ano do retorno da democracia após a morte de Franco, ele
ganhou as eleições com amplas maiorias absolutas. Intelectual, revolucionário,
preso por ocupar terras militares e filho de agricultores, o papel central de
Gordillo na construção de Marinaleda como uma “utopia para a paz” comunista,
como diz o lema da cidade, ganhou fama e ódio em partes iguais. Os apoiadores
de Gordillo comemoram sua liderança nas inúmeras campanhas que transformaram
Marinaleda em um oásis de pleno emprego, em uma região onde o desemprego ainda
sobe acima de 20% e o desemprego juvenil acima de 40%. A taxa de
desemprego de 5% da Marinaleda é muito inferior à das grandes cidades como Madrid
ou Barcelona.
A luta mais importante da aldeia
azeitoneira foi a campanha de doze anos para tomar a terra da aristocracia
moderna e devolver a propriedade ao povo que a cultivava, os trabalhadores
diaristas. A partir de 1979,
a luta pela reivindicação da coletivização da terra
começou com uma greve de fome de mais de 700 vizinhos que durou meio mês. O
processo continuou com inumeráveis ocupações de lotes privados, e longas
disputas e negociações legais que finalmente lhes renderam, em 1991, a propriedade legal
de uma vasta extensão de terra chamada El Humoso, um latifúndio de 1200 hectares que era
propriedade do Duque del Infantado e que hoje é administrado como uma
cooperativa pelos trabalhadores de Marinaleda.
Na entrada da propriedade lê-se
um grande letreiro: “Esta terra é para os trabalhadores diaristas desempregados
de Marinaleda”. No Humoso, a agricultura é 100% ecológica, os campos são
irrigados e completados com oliveiras, estufas e viveiros. Foi também impulsada
uma fazenda de criação de cabras e ovelhas e uma fábrica local de conservas de
legumes. Os pilares da produção são o pimentão, o feijão, a alcachofra e o
azeite de oliva.
Reconhecendo que sua luta não foi
apenas uma batalha local pela terra, os moradores de Marinaleda tornaram-se os
líderes morais do movimento contra a austeridade na Espanha após o colapso do
sistema habitacional em 2008. E durante longos anos de crise econômica,
Gordillo alcançou fama nacional por suas políticas contra a pobreza, o
desemprego e a falta de moradia que dispararam durante anos de recessão.
Entrando em seu escritório, a
bandeira da Segunda República Espanhola – símbolo da esquerda antifranquista –
brilha com seu tricolor vermelho, amarelo e roxo no canto, enquanto uma
fotografia de Che Guevara dirigindo-se às Nações Unidas fica ao seu lado. A
peça central da sala se assenta numa mesa redonda: uma escultura de punhos
grandes erguidos, tratando de se libertar das correntes de ferro que prendem os
pulsos. Abaixo do punho se lê gravado:”MARINALEDA”.
A filosofia política de Gordillo
amadureceu à medida que o regime fascista espanhol se enfraquecia; após a morte
de Franco, Gordillo se envolveu com o Sindicato de Trabalhadores do Campo, uma
união agrária que se aliou ao Coletivo de União dos Trabalhadores (CUT) para
apresentar Gordillo como candidato a prefeito nas primeiras eleições municipais
espanholas em 1979, após o colapso do regime de Franco.
Depois de ganhar a prefeitura,
Gordillo lançou uma campanha após a outra com o objetivo de satisfazer as
necessidades básicas das pessoas: alimentação, água, moradia e eletricidade. O
passo mais audacioso nesses primeiros anos foi a histórica greve de fome e
ocupação que buscava transferir vastas terras privadas para os camponeses sem
terra. Explicando a razão desta greve de fome e desta ocupação, Gordillo conta:
“Compreendemos que a luta contra o desemprego significava uma luta pela terra.”
Este confronto com os proprietários privados fez do gabinete de Gordillo um
gabinete de prefeitos que enfrentou os problemas em suas raízes; um gabinete
raro e radical.
Uma História de Consciência
Política
Em nosso encontro, Gordillo
enfatiza que a ação coletiva deve ser baseada em uma educação política que
desenvolva a consciência de classe: “as pessoas expropriadas devem organizar-se
e identificar-se como expropriadas. Mesmo as classes médias também são
expropriadas – da terra, do capital, do poder. E em Marinaleda, a consciência
de classe é uma alta prioridade. Os murais contra-culturais que pintam as
paredes do povo são testemunho da esperança que leva este povo à ação.”
Mas Gordillo não é um dogmático.
Ele se inspira em todas as fontes, em qualquer ser humano que tenha sonhado em
“construir um mundo diferente no qual os recursos sejam colocados a serviço das
pessoas e não de interesses privados”. Cita Gandhi, Che Guevara, Jesus Cristo,
junto com a experiência de nações que ainda lutam para serem reconhecidas como
tais; os curdos, os saarauis, os palestinos. Ele diz: “Você tem que tirar um
pouco de cada um; você tem que tirar um pouco do anarquismo, do socialismo, do
marxismo, do Che, de algumas coisas de Lênin, de algumas coisas de todos e,
acima de tudo, da sua própria experiência”. A filosofia política de Gordillo é
um mosaico de ideias endurecido na experiência do genocídio que a esquerda
viveu durante o regime de Franco, a guerra civil e a ditadura, e moldado na
memória histórica do nacionalismo andaluz. Questionado sobre o que aprendeu com
sua própria experiência, ele responde: “A não-violência pode realizar qualquer
coisa no mundo. Que tudo é possível”.
Perguntando a sua citação de
Cristo entre os seus heróis, ele nos explica que vê Cristo como o primeiro
comunista. “Cristo era um revolucionário, e assim eles se livraram dele. Cristo
o pacifista, Cristo o agitador, o reformador que declarou que o reino de Deus
está dentro do homem, não em outro lugar, e certamente não dentro de um papa”.
É esta tradição social cristã, a
mesma desenvolvida pela Teologia da Libertação na América Latina, que Gordillo
reivindica. Ele insiste que “o cristianismo e o marxismo, o cristianismo e o
comunismo são perfeitamente compatíveis”, e reconhece o papel de um elemento
mais profundo — pessoal ou espiritual — no humanismo político, demonstrando
que, em contraposição aos projetos neofascistas ou da “supremacia teológica”,
pode-se reconstruir uma tradição cristã progressista.
Marinaleda e a Solução
Cooperativa
Os sucessos sócio-econômicos da
aldeia, como o pleno emprego, salários igualitários de 1200 euros por mês
(aproximadamente 4450 reais) em jornadas de 6 horas de trabalho ou a
inexistência de polícia fazem-nos pensar sobre como o modelo cooperativo de Marinaleda
seria transferível para outras regiões. O modelo cooperativo tem sido
acompanhado por um sistema participativo no qual todas as decisões estratégicas
do município são tomadas em uma Assembléia Popular, bem como as políticas de
gestão de terras e habitação, oferecendo habitação a partir de 15 euros por mês
(aproximadamente 66 reais).
O modelo cooperativista não
apresenta inviabilidade estratégica. Em vez de canalizar lucros para executivos
e acionistas que agregam pouco valor produtivo, uma cooperativa reinveste no
capital da empresa, permitindo-lhe prosperar em tempos bons e sobreviver em
tempos difíceis. É um modelo que salvaguarda aspirações sociais,
econômicas, políticas e culturais conjuntas por meio de empresas de propriedade
coletiva e controladas democraticamente.
O conflito entre a gestão e os
trabalhadores é minimizado graças à representação democrática e à tomada de
decisões, e o exemplo de cooperativas bem sucedidas como El Humoso de
Marinaleda pode ser visto em outros lugares – como no caso representativo da
cooperativa de Mondragon, a maior do mundo. Localizada no País Basco, norte da
Península Ibérica, ela emprega atualmente cerca de 81 mil trabalhadores e
realiza um volume de negócio anual de mais de 11 bilhões de euros
(aproximadamente 50 bilhões de reais).
No atual declínio da
social-democracia, substituída por um neoliberalismo social no contexto
espanhol, as cooperativas são um mecanismo capaz de iniciar modelos
transformadores de gestão de recursos. O caso de Marinaleda revela o potencial
de sucesso destes mecanismos intersetoriais, capazes de enfrentar as
desigualdades estruturais resultantes do sistema atual. Num contexto de crise
sistêmica, econômica, ambiental, social e política, materializada no ascenso
das extremas direitas, estas práticas oferecem formas eficazes de ação
coletiva.
No entanto, somente através desta
ação coletiva, mobilizada pelas diversas organizações pró-cooperativistas, bem
como pelos sindicatos, será possível promover uma consciência social efetiva,
capaz de exigir políticas que promovam a cooperativização da economia através
de uma série de incentivos fiscais e creditícios.
Marinaleda demonstra que uma
comunidade dominada pela agricultura familiar terá uma estrutura social mais
igualitária e uma vida institucional mais rica, colaborando não só em relações
sócio-econômicas bem-sucedidas, como também na geração de vínculos emocionais e
psico-afetivos, permitindo que essa gestão seja, como diz Gordillo, “uma forma
de educação política e de aquisição de consciência de classe”.
—
Gabriel Bayarri é um escritor e antropólogo espanhol
Gabriel Bayarri é um escritor e antropólogo espanhol
Timothy Ginty é um escritor
australiano. Escreve em seu blog, Lives
and Times: Writing on the World Around Us.
Scott Arthurson é um
escritor australiano.
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