Vale também recordar ao governo
chinês que o estatuto de Hong Kong como membro da Organização Mundial de
Comércio, território aduaneiro distinto e plataforma de ligação financeira
entre a China e a economia internacional, depende precisamente do estatuto de
autonomia de Hong Kong.
Nuno Severiano Teixeira | Público
| opinião
Há três meses consecutivos que
milhões de pessoas, sobretudo jovens, se
manifestam em Hong Kong em luta pela democracia. Enquanto no Ocidente
grassa uma vaga autocratização iliberal, em Hong Kong luta-se pela democracia
liberal. Luta-se, pelos valores que no Ocidente parecem estar em crise. E
luta-se, sobretudo contra o tempo.
Porquê? Porque em 1984 o governo
Margareth Tatcher assinou com o governo de Deng Xiaoping uma Declaração
conjunta que previa o fim do regime colonial e o regresso do território à
China, em 1997. Constituiria uma região administrativa especial com larga autonomia
e mantendo os princípios da sua organização económica e política incluindo um
poder executivo, legislativo e judicial independente, por um período de 50
anos. Isto é, até 2047. Mas o entendimento na China e em Hong Kong sobre a
transição democrática nunca foi o mesmo e os limites da autonomia foram sempre
objecto de tensão. Tensão, no centro da qual sempre esteve uma questão
política: a lei eleitoral. Isto é, o sufrágio directo e universal dos eleitores
e o controlo da nomeação do chefe do executivo. Princípios sempre disputados
mas nunca aceites pela China. Por outro lado, o tempo não para e 22 anos
depois, o prazo começa a aproximar-se do fim. Não é por acaso que a
esmagadora maioria dos manifestantes são jovens. É porque são eles que
viverão a maior parte das suas vidas depois de 2047. E também não é por acaso
que escolheram o aeroporto para se manifestar. É porque sabem que se não
tiverem um passaporte estrangeiro, sair de Hong Kong, depois dessa data, será
mais difícil e temem que a sua liberdade termine ali. O que no princípio
parecia ser uma
mera questão jurídica sobre uma lei da extradição, era afinal muito mais do
que isso e acabou por revelar aquela que é a verdadeira questão política: o
sufrágio universal. Era já isso que estava em causa na revolução dos
guarda-chuvas, em 2014, e é isso que está em causa ainda hoje: a
democracia. Visto do lado dos manifestantes de Hong Kong, com o prazo a
esgotar-se, e cada vez mais cidadãos a identificarem-se como “hongkongers” e
não como chineses (apenas 11% identificam-se como chineses numa sondagem da
Universidade de Hong Kong), o medo é o de perder a autonomia e, portanto, a
liberdade e a democracia. Visto do lado do governo chinês, isto é, do Partido
Comunista, a questão não é a do peso económico de Hong Kong. (Em 1997
representava 20% do PIB chinês, hoje apenas 3%). A verdadeira questão é
política: é o medo da China do contágio dos ideais democráticos. Ou seja, o que
se joga, hoje, em Hong Kong é uma luta entre o modelo liberal e o modelo
autocrático.
Neste contexto, o que podem fazer
as democracias ocidentais? Não muito. Mas, ainda assim, o pouco que podem
fazer, pode ser importante. Primeiro, um gesto simbólico para com os
manifestantes. Identificadas com os seus ideais e solidárias com os valores que
defendem, as democracias liberais não podem deixar de mostrar simpatia pela sua
causa e admiração pela sua coragem. Mas não podem nem devem encorajar a
radicalização do protesto, muito menos se for violento. Isso seria, como
diz Godement, “um suicídio assistido” perante o qual o Ocidente não seria mais
que um espectador. Pelo contrário, incitar ao diálogo com as autoridades de
Hong Kong na procura de uma solução política. Segundo, uma solução política,
deve ser também a mensagem, firme, para o governo chinês: a procura de uma
solução que evite a violência e a repressão e respeite, integralmente, a
autonomia do território. Mas vale também recordar ao governo chinês que o
estatuto de Hong Kong como membro da Organização Mundial de Comércio,
território aduaneiro distinto e plataforma de ligação financeira entre a China
e a economia internacional, depende precisamente do estatuto de autonomia de
Hong Kong.
Finalmente, para além desse
imperativo ético de apoio simbólico aos democratas de Hong Kong e de pressão diplomática
sobre o governo chinês, as democracias ocidentais não podem esquecer a
alternativa política que se lhes depara no plano internacional: entre o modelo
autocrático e o modelo liberal. E não podem deixar de proteger os seus
princípios e valores. Sabemos todos que a política internacional se faz com
interesses. Mas aqueles que esquecem os seus valores no exercício da política
acabam sempre, mais cedo ou mais tarde, por prejudicar os seus próprios
interesses.
*Professor catedrático da
Universidade Nova de Lisboa. Visiting professor Georgetown University
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