Profeta da sociedade de controle,
escritor tcheco mostrou como paranoias, neuroses e burocracia são usadas para
antecipar condutas e dissuadir a ideia de um futuro sem capitalismo —
intensificadas, hoje, por redes digitais e algoritmos
Renan Porto | Outras Palavras | Imagem: M.C.
Escher
Num artigo recente sobre o
esgotamento do mundo e as condições materiais de reflexão sobre mundos
possíveis na filosofia contemporânea [1], Rafael Saldanha traça muito bem uma
metamorfose da percepção do tempo desde o início da modernidade até os seus atuais
pontos de tensão e torção, que ainda não se sabe bem o que pode virar, mas já
se anuncia como esgotamento e cancelamento do futuro.
Essa metamorfose desemboca num
futuro que se apresenta agora enquanto risco a ser administrado e minimizado em
sua complexidade. A relação com o futuro se orienta pela securitização máxima
do presente e tudo o que se apresenta como ameaça deve ser exterminado.
Enquanto a forma de experienciar o presente por parte dos sujeitos se torna um
constante cálculo de investimentos e probabilidades dos resultados que se pode
ter a cada ato. Se um dia houve para alguns a abundância que permite a
liberdade despojada e inconsequente, hoje há para muitos a escassez que exige
maior cuidado a cada aposta.
É interessante observar como
pensadores do mercado vem pensando isso e há tempos já traçam estratégias para
lidar com essas transformações. No seu clássico livro sobre Gestão de
Pessoas (2009), Idalberto Chiavenato tem como uma forte referência o livro
do sociólogo espanhol Manuel Castells, A Sociedade em Rede: A era da
informação (1996). Chiavenato descreve as formas de organização das
empresas correspondentes a cada contexto histórico: organizações burocratizadas
e hierarquizadas, com lideranças centralizadas, no contexto da era industrial e
no modelo de produção fordista; organizações departamentalizadas, com decisões
distribuídas por setores, no início das sociedades pós-fordistas; por fim,
organizações descentralizadas, com decisões distribuídas, não mais orientadas
por regras rígidas, mas orientadas a valorizar mais os resultados positivos que
os meios para alcançá-los, o que depende mais da capacidade criativa e
agilidade dos funcionários que de qualquer comando prévio.
Esse modelo de gestão visa
corresponder a um contexto de incertezas, mudanças constantes e muita fluidez.
Portanto, ele coloca como princípios de gestão valores como flexibilidade,
tolerância com a ambiguidade, criatividade e inovação. Por outro lado, para os
sujeitos que trabalham para essas empresas, quando há emprego, a vida precária
diante da incerteza constante é insuportável e desencadeia uma série de
problemas de saúde mental, aumentando os níveis de ansiedade, depressão, baixa
autoestima, insegurança etc.
Todo esse contexto se conecta ao
que Deleuze chamou de sociedades de controle [2], em que o poder é exercido
como antecipação de condutas possíveis, estimadas a partir de probabilidade
algorítmica e estatísticas extraídas das informações acumuladas em redes
digitais e mecanismos de vigilância. O modelo de governo e condução das
condutas nessas sociedades passa a fazer maior uso de ferramentas da
cibernética. Uma ciência que se desenvolve nos anos 50 por autores como Norbert
Wiener, William Ross Ashby, John von Neumann, Frank Rosenblatt, dentre outros.
A cibernética tem com focos principais a comunicação, a informação, a
organização e o controle. Com canais de comunicação potentes e imediatos
fazendo circular torrentes de informações e dados, maior a capacidade de
predição e controle dos sistemas e das trocas de informações entre eles; suas
trocas de inputs – as informações que recebem e são processadas a
partir de seus códigos internos, que os diferenciam do ambiente – e outputs,
as decisões tomadas depois do processamento das informações recolhidas.
Parece até meio absurdo pensar
como funciona uma rede social. Você cria um espaço para as pessoas se
comunicarem, se expressarem, se conhecerem etc. A própria interatividade delas
é o trabalho que produz informações, dados, afetos e sociabilidades que
enriquece a rede de informações e a sustenta. É uma invenção realmente
inteligente. Mas meio perversa: tudo isso que é produzido aqui é explorado
estatisticamente para aperfeiçoar o aplicativo, seus mecanismos de
reconhecimento, busca etc. O aprimoramento do learning machine depende
da extração de dados [3]. Mas não só isso, a circulação de afetos, expressões e
sociabilidades é explorada também para a elaboração de brandings, marcas,
identidades, que produzem valor sobre as mercadorias. Este tipo de análise vem
do que autores ligados ao operaísmo italiano chamaram de capitalismo cognitivo
e trabalho imaterial [4].
Se não fosse pouco produzirmos
tanto sem ganhar nada, toda essa carga de dados e informações que produzimos
também é usada para aperfeiçoar o controle, monitoramento e vigilância sobre
nós mesmos. Assim produzimos a polícia mais perversa possível na mesma medida
que pensamos agir contra ela. Isso é o que o Nick Land chama de feedback
positivo do capitalismo. Essa capacidade do sistema se auto-aprimorar
absorvendo e aprendendo com as cargas negativas que ele mesmo suscita [5].
O uso de ferramentas cibernéticas
como por exemplo as redes neurais, que são usadas para o reconhecimento facial
em sistemas de vigilância, a gestão algorítmica, a extração de dados dos
usuários da internet, dentre outras coisas, permite aos governos uma gestão
social e política também baseada na fluidez, tentando dirimir a
imprevisibilidade e os riscos. Essas transformações nas formas de governar,
apesar do uso de ferramentas tão recentes, podem ser observadas do que
pesquisas como as de Michel Foucault já vinham mostrando desde os anos 70. Em
seu livro Vigiar e Punir (1975), Foucault mostra transformações nos
modos de regulação social que não passam mais pela rigidez da norma, mas sim
pela modulação dos processos sociais em sua própria instabilidade. Ele observa
como o exercício do poder deixa de requerer o contato imediato com o corpo para
discipliná-lo e passa agir como uma forma de investimento sobre as condutas
possíveis, no que as subjetividades podem vir a ser, agindo positivamente na
produção das formas subjetivas.
Além de todos os casos que o
direito considera como excepcionais, como o uso explícito da violência pelo
Estado para conter a entropia social, mas que constituem a normalidade das práticas
do estado há muito tempo – como argumenta Denise Ferreira da Silva [6], o
Estado precisa da violência para fazer valer a norma que em si mesma não tem
eficácia alguma –, foram desenvolvidas nas últimas décadas um conjunto de
práticas de governo que passam pelo uso de novas tecnologias de poder para
gerir o corpo social em sua própria instabilidade.
Mas, curiosamente, Deleuze disse
que o profeta das sociedades de controle era Franz Kafka, que escreveu nas
décadas de 10 e 20 do século XX!
Percebo principalmente três
traços na obra de Kafka que se conectam diretamente a essa discussão: 1)
através das suas personagens, Kafka cartografa formas de subjetividades
neuróticas, paranoicas e esquizofrênicas. Nas sociedades de controle, essas
três características não são desvios ou meras patologias, mas formas de
subjetivação que constituem a normalidade neoliberal. 2) É muito comum que as
personagens de Kafka fiquem sempre pensando suas possíveis condutas e relações
como se estivessem num jogo de xadrez, ou melhor, de go, em que não há regras
tão bem definidas para orientar as condutas. O personagem K no romance O
Castelo é um ótimo exemplo disso. 3) Principalmente nos seus romances,
onde o funcionamento das instituições é investigado sob um ponto de vista
literário, Kafka mostra também uma atividade esquizofrênica, involuntária e não
intencional de personagens que escapam a todo momento do que são programados a
realizar. O funcionamento das instituições não segue as regras jurídicas, mas
se configura a partir dos hábitos que se formam nas relações cotidianas do
trabalho, os pequenos desvios, adaptações e jogos de interesses.
No sexto capítulo de seu famoso
livro Capitalist Realism (2009), Mark Fisher toma Kafka como
referência para analisar o que chamou de “stalinismo de mercado”. Fisher diz
que no mercado neoliberal a gritante ineficiência, baixa qualidade e
disfuncionalidade das empresas deve ser a todo momento maquiada por uma
aparência dura e exigente de eficiência, prestatividade, automatismo e rigor.
Fisher destaca que essa presença de uma forma stalinista no mercado capitalista
não seria um desvio do “verdadeiro espírito do capitalismo”, mas uma dimensão
do stalinismo que foi inibida por causa de sua relação com um projeto social,
que era o socialismo. Essa dimensão stalinista só pode emergir na cultura
capitalista porque nela as imagens ganharam uma força autônoma. Por isso, diz
Fisher, o valor gerado nas bolsas de valores depende mais das imagens
performáticas da empresa do que o que ela realmente faz. Parodiando Marx,
Fisher diz: “No capitalismo, tudo o que é solido se desmancha em relações
públicas”.
No romance O Castelo, há uma
situação em que K. vai ao escritório do prefeito saber sobre seu contrato
enquanto agrimensor, função que ele nunca consegue desempenhar desde que chega
na aldeia. A secretária do prefeito junto com os ajudantes de K. começam a
revirar um armário de papéis, fazem uma bagunça na sala, nunca conseguem achar
os documentos que lhe pedem para procurar, enquanto o prefeito faz um longo
discurso sobre o profissionalismo, o rigor técnico e o cuidado dos funcionários
do Castelo.
É muito comum encontrar na fortuna
crítica de Kafka o comentário de que seus romances anteciparam as formas
burocráticas que o Estado tomaria no século XX, que foram o stalinismo, nazismo
e americanismo. Fisher comenta que Kafka consegue essa façanha por revelar uma
dimensão do totalitarismo que não pode ser entendida apenas sob o modelo do
comando despótico. Os intermináveis labirintos burocráticos que Kafka explora
são carregados de uma certa semiótica do poder. Neles, a autoridade nunca se
presentifica totalmente, mas tampouco deixa de interpelar cada situação. Há
certos sinais que as personagens tentam intuir e perseguir, mas nunca levam a
qualquer fonte da qual o poder emana. Fisher diz que Kafka intensifica essas
situações de ambiguidade em relação ao poder.
Permitam-me uma longa citação do
início do capítulo 5 d’O Castelo, onde o personagem K. vai encontrar o prefeito
da aldeia e expõe bem a hipótese do parágrafo anterior:
“A relação direta com as
autoridades não era, na verdade, difícil demais, pois as autoridades, por mais
bem organizadas que fossem, sempre tinham de defender coisas remotas e
invisíveis em nome de senhores remotos e invisíveis, ao passo que K. lutava o
mais vivamente possível por coisas próximas, ou seja, por ele mesmo e, além
disso, ao menos nos primeiros tempos, por vontade própria, uma vez que ele era
o agressor, sem ser apenas ele que lutava por si, mas também, ao que parece,
outras forças que não conhecia, mas nas quais podia crer a partir das medidas
tomadas pelas autoridades. Mas por se mostrarem amplamente receptivas, em
caráter prévio e em coisas menos essenciais — até agora não se tratara de nada
mais que isso —, as autoridades o privavam da possibilidade de pequenas e
fáceis vitórias e, com essa possibilidade, também da satisfação correspondente
e da segurança bem fundada, que dela derivava, para outras lutas maiores. Em
vez disso deixavam K. deslizar por toda parte que quisesse, se bem que apenas
no interior da aldeia, minando-o e enfraquecendo-o com isso: aqui elas
eliminavam qualquer luta que houvesse e desse modo o deslocavam para a vida
extra-administrativa, totalmente sem transparência, turva, estranha”.
Em Kafka, a indecidibilidade
parece estar impregnada no próprio corpo. Dou voltas e voltas numa cidade
inteira e não saio do lugar. A atmosfera é claustrofóbica. Luto para me livrar
dos mesmos rostos que me deixam saturados de exposição, mas nunca me livro da
minha própria face. Quanto mais estou rodeado de personagens, mais impossível é
a comunicação, como as garotas que rodeiam K. nas escadas do tribunal no
romance O Processo. E quando a chance de tocar o que busco está diante de
mim, sou incapaz de alcançá-la – como no Castelo, quando K. está
prestes a ter acesso a Klamm, mas ele sempre lhe escapa.
Talvez essa doença seja a nossa e
o vigor de Kafka seja fazê-la doer. Tenho a impressão de que Kafka é como um
psicanalista que vai suscitando e apalpando sintomas e sofrimentos que nós
temos encobertos. No Castelo ele me faz sentir que além de eu não
conseguir realizar os meus ideais ascéticos, por mais que eu me esforce nunca
vou chegar onde quero chegar. Quando na verdade o que quero nunca deixou de me
rodear. O combate mais necessário, o ponto a se alcançar, é o que está mais
próximo, mas parece inatingível.
A radicalidade com que Kafka
demonstra um quadro no future em que nenhuma alternativa parece
viável e tudo o que se tem como expectativa é um colapso final pode ser
sintetizada nesse pequeno conto intitulado Pequena Fábula:
“’Ah’, disse o rato, ‘o mundo
torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo,
eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à
distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes
convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no
canto fica a ratoeira para a qual eu corro.’ — ‘Você só precisa mudar de
direção’, disse o gato e devorou-o”.
Foi Mark Fisher quem cunhou o
termo “cancelamento do futuro” para caracterizar esse quadro temporal em que
nos encontramos agora. O primeiro livro de Fisher, Capitalist Realism publicado
em 2009, começa com o diagnóstico de que nos tornamos incapazes de imaginar um
futuro radicalmente diferente do nosso presente. Essa incapacidade de imaginar
qualquer alternativa possível é o que ele chamou de realismo capitalista. No
último livro que estava preparando e não concluiu, Fisher elaborava o conceito
de comunismo ácido [7]. Numa brincadeira semântica entre algo
corrosivo e psicodélico, o comunismo ácido era não qualquer tipo de modelo já
dado de sociedade, mas uma propulsão da imaginação para pensar o Fora do
capitalismo. No livro anterior a esse, The Weird and the Eerie (2016)
[8], Fisher explorava através de ficções científicas essa categoria do “weird”,
do esquisito, como algo que era totalmente estranho aos nossos padrões
empíricos.
A ideia de cancelamento do futuro
é correlata ao conceito de realismo capitalista. A saída que ele estava
tentando delinear para isso foi com o conceito de comunismo ácido. Mas o livro The
Weird and the Eerie já vinha explorando essa trilha. O conceito de “eerie”,
o insólito, tem a ver com o tipo de espectralidade com o que o poder passa a
ser exercido nas sociedades de controle, produzindo realidades das quais se
ausenta. Já o conceito de esquisito me parece ter uma relação muito
mais direta com o comunismo ácido, pois indica uma irrupção de um Fora naquilo
que nos é mais comum, tornando estranho o que é mais familiar – tal como o
conceito de unheimlich do Freud, que já é usada pelo Fisher na sua
tese de doutorado, Flatline Constructs (1999), mas que posteriormente
ele irá diferenciar do conceito de weird na introdução do seu último
livro. O esquisito parece querer intensificar essa irrupção do virtual no atual
e possibilitar que consigamos enunciar e tornar atual o possível, ou seja, o
futuro.
Por fim, concluo com duas
citações…
A primeira é do Fisher no livro Capitalist
Realism:
“A política emancipatória deve
sempre destruir o semblante de uma ‘ordem natural’: deve revelar que aquilo que
é apresentado como necessário e inevitável é uma mera contingência, assim como
deve fazer o que antes era visto como impossível parecer possível”.
A outra, uma famosa frase de
Kafka:
“A partir de certo ponto não há
retorno. Esse é o ponto que é preciso alcançar”.
_
Notas
1 – Esgotamento do mundo
atual: as condições materiais da reflexão sobre mundos possíveis na filosofia
continental contemporânea, por Rafael Saldanha, disponível em: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/18078
2 – Gilles Deleuze, Post-scriptum
sobre as sociedades de controle. In: Conversações. São Paulo: Editora 34, pp.
219-226.
3 – Sobre o uso da extração de
dados para o aprimoramento de sistemas de inteligência artificial, ver o artigo Anatomy
of an AI System, de Kate Crawford e Vladan Joler disponível em: https://anatomyof.ai/
4 – Matteo Pasquinelli
tem um bom artigo sobre produção de valor nesse sentido, que se intitula Capitalismo
maquínico e mais-valia de rede e está publicado na revista Lugar Comum, nº
39, disponível em: http://uninomade.net/lugarcomum/39/
5 – Para uma introdução ao debate
aceleranionista passando por autores como Nick Land, Mark Fisher, Nick Srnicek
e Alex Williams, etc, ver meu artigo Ciborgues sonham com britadeiras?,
publicado na revista Lugar Comum nº 50, disponível em: http://uninomade.net/lugarcomum/50/
6 – Denise Ferreira da Silva, Ninguém:
direito, racialidade e violência, disponível em: http://www.fumec.br/revistas/meritum/article/view/2492
7 – Para um comentário sobre o
conceito de comunismo ácido, ver o ensaio de Matt Colquhon, que em seu mestrado
pesquisou sobre a obra de Fisher: https://babilepton.wordpress.com/2018/08/25/comunismo-acido/
8 – Escrevi um ensaio sobre o
livro The Weird and the Eerie, que está disponível aqui: https://txtmagazine.com.br/leituras-xenologas-xenofilia-abstrata-ou-isto-nao-me-e-estranho-por-renan-porto/
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário