Liberais até a página 2: ao
contrário do que alegam corporações tecnológicas, cada “inovação” presente em
seus produtos foi desenvolvida a partir de pesquisa estatal – muitas vezes
associada à tecnologia de guerra. Vale conferir caso da Apple
Marianna Braghini Deus Deu |
Outras Palavras
Quando tomamos nossos celulares e
tablets em mãos, estamos utilizando tecnologias desenvolvidas com décadas de
financiamento e apoio estatal. Muitas das aplicações que dão a característica
de “inteligente” aos smartphones são inovações que surgiram e foram
desenvolvidas via demanda por inovações tecnológicas que garantissem algum tipo
de superioridade bélica. Em seu livro O Estado Empreendedor, a economista
italiana Mariana Mazzucato dedica uma seção para tratar do sistema nacional de
inovação dos EUA e o caso do iPhone, que obteve seu sucesso, fundamentalmente,
ao englobar e integrar diversas destas tecnologias, especialmente aquelas que
surgiram no seio do setor de Defesa estadunidense e foram sendo desenvolvidas
para uso comercial e civil, para além do militar.
A autora demonstra como nos EUA,
agências e outras iniciativas foram criadas pelo Estado como fomento (e a
própria configuração) de seu sistema nacional de inovação. O exemplo escolhido
pela autora é emblemático. Pode-se dizer que os EUA são os maiores
propagandistas do livre mercado, advogando pela desregulamentação, privatização
e por abertura comercial mundo afora – frequentemente garantindo este seu
ambiente econômico favorito via força bélica. A leitura do livro de Mazzucato
desmente a crença segundo o qual o desenvolvimento tecnológico deu-se sem a
participação interventora do Estado e mostra como é falsa a mística que rodeia
os ideais do livre mercado. Segundo esta, o setor privado seria supostamente o
grande agente inovador; e o Estado, portador de uma estrutura arcaica, que entravaria
este processo “aventureiro”.
Para o economista austríaco
Joseph Schumpeter, a inovação mantém o capitalismo em constante mutação, em um
processo denominado por ele como “destruição criadora”. Ao se introduzir
inovações que alterem as estruturas de mercado, que concedem ou retiram
vantagens competitivas, produzem-se assimetrias na concorrência entre as
empresas. Nem todas terão capacidade, técnica e/ou econômica, de expandir ou
mesmo se manter na mesma posição no mercado, podendo significar a falência ou a
conquista de um número maior de consumidores. Mas é este processo que mantém o
sistema em movimento, ao mudar os processos produtivos – quando uma inovação
barateia o custo de produção de uma determinada mercadoria – ou ao introduzir
novos padrões no gosto dos consumidores.1
O Sistema Nacional de Inovação
dos EUA
Mazzucatto demonstra que o Estado
norte-americano criou um aparato descentralizado, ampliado e dinâmico voltado à
criação, desenvolvimento, difusão e comercialização de inovações
tecnocientíficas. Ele funciona sob direcionamento e supervisão estatal, por
meio de financiamento público. A configuração do sistema nacional de inovação
dos EUA firmou suas bases principalmente em uma rede entre universidades,
iniciativa privada (pequenas e grandes empresas) e setor público,
principalmente a Defesa.
O Estado atuou por meio de
políticas que atuam no lado da oferta (com apoio e intermediação de
planejamento) e no da demanda (como cliente). O fomento proativo do setor de
inovação é efeito desde o laboratório ao uso comercial – ou seja, desde a
concepção de ideias no plano abstrato até sua transformação em manufatura
comercialmente viável.
Sobre este último aspecto
mencionado, há uma importante questão colocada por Schumpeter. Nem sempre uma
invenção se traduzirá em inovação – ou seja, uma novidade que de alguma forma
causa ruptura.2 A
inovação ocorre em um contexto tecnológico específico, segundo critérios de
demanda potencial, viabilidade técnica e custeios, mirando a produção de
algo com valor mercantil e, como não poderia deixar em uma economia
capitalista, o aumento da lucratividade. É oportuno mencionar o processo de
rotinização do processo inovativo, especialmente no setor privado, que busca
agir de forma cautelosa e defensiva, frente a um ambiente de incerteza, em que
os objetivos não se dão sobre circunstâncias bem delineadas.3
Mazzucato analisa quatro exemplos
de agências regidas por interconexão – segundo a autora, fundamental para um
Estado inovador. Elas atuam num ambiente que estimula o compartilhamento, mais
do que a rivalidade, entre os atores envolvidos. São elas: a Agência de
Projetos e Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA), o Programa de Pesquisa para a
Inovação em Pequenas Empresas (SBIR), o Orphan Drug Act e a National
Nanotechnology Initiative (respectivamente, Lei de Medicamentos Órfãos e
Iniciativa Nacional em Nanotecnologia). O caso da DARPA é o que mais nos
interessa aqui. As demais iniciativas serão comentadas com o objetivo de
apresentar a estratégia do sistema de inovação dos EUA de forma mais ampla.
O envolvimento dos EUA na II
Guerra Mundial impeliu o país a concentrar sua energia produtiva na garantia de
superioridade bélica e tecnológica no front de batalha. É justamente a questão
da superioridade tecnológica que logo se mostrou um forte argumento em favor do
investimento de inovações na área. Foi durante o conflito que experiências
deste caráter foram dando forma ao que viria ser a DARPA, como o Projeto
Manhattan, nome do programa que desenvolveu a bomba atômica, num esforço entre
universidades, cientistas e financiamento público das agências de Defesa.
Depois do conflito, e com a
conformação de um complexo industrial-militar-acadêmico4,
as tecnologias desenvolvidas para atender a necessidade militar tornaram-se um
imperativo no processo inovativo. Os gastos no setor devem passar pela anuência
do Congresso e, portanto, pela anuência também da população. Uma população
convencida que, à medida em que mais tecnologia fosse incorporada às batalhas,
mais “limpas” seriam as guerra, maiores as chances de seus combatentes voltarem
a salvo para casa. Convenhamos: apresentar nos telejornais operações militares
“cirúrgicas”, com mínimo impacto contra civis inocentes, era mais aceitável –
uma forma de tornar a opinião pública menos hostil às aventuras bélicas de seu
país em terras estrangeiras.
A DARPA foi criada pelo Pentágono
no contexto da corrida armamentista da Guerra Fria, em 1958 — um ano após o
lançamento do satélite soviético pioneiro Sputnik. Segundo Mazzucato, buscava
conduzir pesquisas acadêmicas até finalidades práticas determinadas. A agência
financiou a formação de departamentos de Ciência da Computação em universidades
ao redor dos EUA, apoiava start-ups em seus projetos iniciais, teve
uma contribuição fundamental no desenvolvimento de semicondutores, além do
papel significativo nos estágios iniciais da internet. Pesquisadores
financiados pela agência seguiram atuando na área da tecnologia e desenvolvendo
tecnologias que hoje estão incorporadas em nossos dispositivos de computador
pessoais.
A autora apresenta as principais
características da agência: sua estrutura organizacional de pequenos e diversos
escritórios, com autonomia orçamentária e com a função de determinar a agenda
de pesquisa em desenvolvimento tecnológico. Ou seja, os desafios são
pré-selecionados por centros de pesquisa especializados e em conformidade com o
que se apresenta como demanda pelo Estado, seu centro financiador. O
financiamento não aderia à dicotomia entre “pesquisa básica” e “ pesquisa
aplicada”. Aí fica explícito seu objetivo de desenvolver tecnologias até
finalidades práticas e com viabilidade comercial. Além disso, por conta do seu
papel determinante na agenda de pesquisa, a DARPA adquiriu também, em alguma
medida, o papel de supervisão de diferentes centros de Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D).
Mesmo nos períodos de paz, as
metas de guerras atribuídas à DARPA, afim de se manter este “ecossistema” de
inovações em tecnologias de defesa, foram orientadas de forma a desenvolver as
inovações para se tornarem mais comercializáveis. Foi após a Guerra Fria que o
departamento de Defesa criou o Programa de Reinvestimento de Tecnologia (PRT),
destinando centenas de milhões de dólares para a pesquisa de tecnologias de
dupla capacidade: militar e civil.
Outro exemplo analisado por
Mazzucato é o Programa de Pesquisa para a Inovação em Pequenas Empresas (SBIR),
assinado em 1982 na Era Reagan, um presidente notadamente conservador. O
programa pretendeformalizar um consórcio entre a Small Business Association
(Associação de Pequenas Empresas) e agências governamentais com altos
orçamentos em pesquisa, que deveriam designar 1,25% (originalmente) de seus
recursos para empresas menores. O programa, conforme descrito pela autora,
ampliou a interlocução de governos locais com o federal por meio dessa nova
possibilidade de financiamento de pequenos negócios.
A lei dos Medicamentos Órfãos, de
1983, também foi uma iniciativa estatal em pesquisas científicas de forma a
garanti-las sem depender completamente da iniciativa privada no setor
biofarmacêutico. Por meio de incentivos fiscais, subsídios clínicos e em
P&D e direitos de comercialização de medicamentos voltados a doenças raras
(aquelas que acometem menos de 200 mil pessoas no mundo), a legislação
possibilitou que pequenas empresas também pudessem se beneficiar, ainda que,
como exposto por Mazzucato, as grandes corporações tivessem êxito em
incrementar sua receita com os medicamentos órfãos.
A National Nanotechnology
Initiative, de 1999, é mais um caso apresentado no livro. A nanociência é
relativamente recente, a tecnologia necessária para o manejo em tal escala só
foi desenvolvida nos anos 1980. Enquanto o setor privado dificilmente opta por
investir em tecnologias cuja viabilidade comercial ainda está décadas à frente,
o Estado tem sido o principal visionário da nanotecnologia, conduzindo os
investimentos iniciais, conformando a rede de atores para explorar o que pode
vir a ser um novo paradigma tecnocientífico5 (“a
próxima grande coisa”).
As tecnologias do setor de Defesa
por trás do iPhone
As características que fazem do
iPhone um smartphone são capacidades tecnológicas possibilitadas após
décadas de investimento e apoio estatal: microprocessadores, a internet, o GPS, touchscreen,
tecnologias de comunicação, assistente virtual por voz, dentre outras.
Lançada em 1977, Apple buscou a consolidação
da marca com foco em computadores pessoais. Mas foi o nascimento da família iOS6 (durante
a primeira década dos anos 2000) que alavancou a empresa como uma das gigantes
da tecnologia e uma das corporações mais valiosas dos EUA.
Pensando no impacto do processo
inovativo na concorrência, autores neoschumpeterianos se debruçaram sobre a
análise das mudanças técnicas no mercado e na indústria, levando em
consideração o caráter de desequilíbrio da concorrência entre as firmas e o do
clima de incerteza que permeia ações e reações dos agentes. Estavam focados na
ação dinamizadora das inovações, ao serem introduzidas e difundidas. Segundo
apresentado por Possas (1989), o economista Giovanni Dosi conduz um
esforço de contribuição a esta abordagem teórica, integrando a análise das
transformações das estruturas de mercado por meio da inovação junto a padrões
de geração destas inovações. Para tal, se fez necessário identificar os
aspectos econômicos e tecnológicos que transformam as tecnologias em fatores de
mudança. No que se refere ao primeiro, estão a oportunidade – o momento ideal
de introdução de determinada inovação, a cumulatividade, ou seja, capacidade
complementar de tecnologias já utilizadas e o grau de apropriabilidade do
mercado possibilitado pela inovação em questão.
Estas características são
pensadas pelas empresas de forma que venham garantir vantagens competitivas,
que por sua vez geram assimetrias no próprio âmbito da concorrência. Nesse
sentido, vale destacar a análise de Mazzucato, sobre a grande capacidade da
Apple em se apropriar com sucesso das tecnologias desenvolvidas
dentro de determinados contextos tecnológicos, ao invés de gerar tais
inovações. Destaca-se o desempenho da empresa em 2011, quando sua receita de
US$ 76,4 bilhões superou o caixa operacional do governo norte-americano (U$73,7
bi) e apesar dos aumentos nas vendas, verificou-se queda na relação entre gastos
com P&D e vendas líquidas. No período de 2006 a 2011, dentre suas
principais concorrentes, a Apple ficou entre as três empresas que registraram o
menor gasto médio em P&D, ficando à frente somente da Dell e da Acer. Em
primeiro lugar, com o maior gasto médio, estava a Microsoft, seguida pela Nokia
e Google. Até a Amazon gastava mais em P&D do que a Apple.
A observação de como o iPhone
moldou a preferência dos usuários e consumidores no mercado das inovações
tecnológicas permite identificá-lo enquanto projeto dominante7 de
celular. Ele concentra a expectativa do que um aparelho deste tipo deve ter e
fazer, um consenso quanto a convergência de trajetórias tecnológicas
incorporadas em um bem industrial.
A autora estabelece doze
tecnologias principais integradas nos produtos iOS, que passaram, então, a
diferenciar a Apple entre as empresas rivais: (1) microprocessadores centrais
(CPU); (2) memória de acesso aleatório dinâmico (memória RAM); (3) micro
armazenamento do disco rígido (HD); (4) tela (LCD); (5) baterias de lítio; (6)
processamento digital de sinais (PDS); (7) a internet; (8) Linguagem HTTP; (10)
sistemas de posicionamento global (GPS), (11) touchscreen, e (12)
inteligência artificial com programa de interface com voz do usuário (SIRI).
Destas, irei me referir àquelas desenvolvidas no seio do setor bélico.
A tecnologia utilizada para
manufatura dos HDs teve um influente papel estatal dos EUA, apesar de
desenvolvida primeiramente na Europa. O laboratório do alemão DrPeter Grünberg,
ganhador do prêmio Nobel de Física, em 2007, por ter desenvolvido, junto ao
francês Albert Fert, a tecnologia da magnetorresistência (MRG) que tem aplicação
nos sensores magnéticos utilizados em HDs, era associado ao maior centro de
P&D do Departamento de Energia dos EUA mesmo antes da descoberta.
Tratava-se de dois projetos de pesquisa independentes, mas com o apoio e
financiamento estatal da Alemanha e França, com associação ao sistema de
inovação estadunidense, ideias abstratas tornaram-se uma inovação com alto
potencial de comercialização. Suas aplicações estão em diversos dispositivos
utilizados atualmente, e possibilitam que empresas estabelecidas explorem este
desenvolvimento tecnológico, como a IBM.
Entretanto, como denota
Mazzucatto, a continuação das pesquisas e da própria manufatura dos
dispositivos encontrou entraves, semelhante ao que aconteceu no caso do
desenvolvimento de semicondutores de silício. Este último tinha uma importância
estratégica para a superioridade tecnológica bélica dos EUA, já que em 1980 o
Japão estava explorando as inovações na tecnologia de forma mais acelerada e
com alta competitividade. Não era estratégico aos EUA depender de importações
para garantir o desenvolvimento e manufatura de suas tecnologias de defesa. O
departamento de Defesa viu-se obrigado a agir e criou um programa de
investimento em informática avançada, Programa Computing Initiative (SCI), ao
passo em que o governo federal estabeleceu uma rede que reunia produtores e
departamentos universitários, o Semiconductor Manufacturing Technology
(SEMATECH).
Os microchips com alta capacidade
armazenamento, que revolucionaram os dispositivos como iPod e o iPhone, tiveram
como principais clientes, no início das pesquisas, a NASA e a Força Aérea dos
EUA, principalmente por conta do programa de mísseis Minuteman II e ao Programa
Apollo,8 que
passaram a demandar estas tecnologias em larga escala. Um microchip que custava
ao Apollo cerca de mil dólares, passou a custar entre vinte e trinta dólares em
poucos anos. O início da indústria de microprocessadores está intimamente
ligado aos contratos públicos com o setor de Defesa dos EUA, que pavimentou o
caminho pelo qual trilharia o sucesso da Intel e outras.
Mazzucato acrescenta: a própri9a
tecnologia touchscreen, que parece tão “humana”, foi uma das que
emergiram do setor de Defesa. O princípio de rolagem de tela sensível ao toque,
sem a necessidade de botões, só foi possível com o desenvolvimento de sensores
capacitivos. O sistema de navegação chamado de clickwheel chegou aos
produtos da Apple no fim dos anos 1990, mas a tecnologia já vinha sendo
desenvolvida desde a década de 1960 pela Royal Radar Establishment (RRE), uma
agência britânica focada em P&D no setor de defesa. A inovação passou a
exigir o desenvolvimento de telas mais resistentes e adaptadas para o
multitoque. Este caminho inicia em 1970, quando uma tecnologia de tela (TFT)
era desenvolvida financiada pelo exército norte americano. Na busca pela
comercialização e outras fontes de financiamento, as grandes empresas
estabelecidas rejeitaram qualquer contrato, duvidando da capacidade de produção
necessária com preço competitivo ao importado do Japão. É em 1988, com um
contrato milionário com a DARPA, que se avança até a tecnologia LCD tal como a
conhecemos hoje. O contrato chegou a ser rejeitado pelas gigantes do setor –
Apple, Xerox, Compaq e IBM –,9 que
mostra uma adversidade do sistema de inovação no país: a resistência do setor privado.
A autora explicita o
desenvolvimento da própria internet e suas raízes na necessidade de
superioridade bélica. Aí teve papel fundamental da DARPA. A preocupação com a
possibilidade de ataques nucleares destruírem as instalações de comunicação
resultou na concepção de um sistema em rede, plano desenvolvido no seio da
RAND, divisão de pesquisa do exército estadunidense. O contrato para instalação
da rede, junto à DARPA, fora rejeitado pela IBM e AT&T, e obteve ajuda do
serviço postal inglês para sua execução de costa a costa.
Outra tecnologia chamativa dos smartphones é
o GPS. Criado também para fins militares, ele hoje está incorporado não só em
nossos dispositivos celulares mas também em outros bens onde se verificou
aplicação comercial civil, como automóveis. Como explica a autora, o sistema de
interface por voz da Apple, o SIRI, foi gerado com o objetivo de ser um
assistente virtual para militares. Atualmente outras empresas também possuem
sistemas próprios como o da SIRI, a fim de acompanhar o que foi sendo
padronizado nas tecnologias de celular e outros dispositivos eletrônicos. A
Amazon desenvolveu a Alexa como assistente pessoal para o lar, enquanto no
sistema operacional da Google, o Android, basta dizer “Ok, Google” para acionar
o assistente pessoal com ativação por voz.
Iniciativas dentro do setor
nacional de inovação e as respectivas tecnologias geradas, principalmente no
contexto da Guerra Fria, deixam pistas de como a conformação de um complexo
industrial-militar criou um caminho bem sucedido para desenvolver e executar
projetos na área da tecnologia, integrando diferentes departamentos de Ciência
e garantindo financiamento público a partir do Departamento de Defesa dos EUA e
outras agências. Essa base tecnológica foi desenvolvida estrategicamente nos
anos da Guerra Fria e está presente atualmente nos mais diversos bens de
consumo.
Faz-se necessário elucidar aqui o
papel que um Estado interventor na economia tem, enquanto agente capacitado a
realizar a articulação entre os diversos setores necessários para a geração e
difusão das inovações. É possível observar, ainda, a prática de proteger
deliberadamente empresas e tecnologias que garantem a posição hegemônica nos
setores estratégicos para o Estado. Pode-se dizer que estes aspectos demonstram
bem a estratégia do sistema nacional de inovação arquitetado à época nos EUA.
De forma que a abordagem estatal estadunidense provou-se muito mais flexível e
“aventureira” do que a iniciativa privada em geral, presa a retornos
financeiros no curto prazo, imediatista. O Estado dos EUA, no processo
inovativo, revelou-se um principal cliente (quando não o único) e o maior
investidor, criando ainda as devidas legislações, financiando a infraestrutura
necessária e garantindo acesso a mercados estrangeiros, bem como o
protecionismo das nacionais.
Nos termos da atual “cultura do
empreendedorismo”, em que personagens como Steve Jobs aparecem com destaque,
exalta-se a suposta capacidade individual revolucionária, em um indivíduo com
uma ideia inovadora é o fator determinante para abalar estruturas de mercado.
Nada se considera sobre os contextos materiais nos quais este indivíduo está
inserido. Nos termos da própria Mazzucato, é muito mais fácil ser este sujeito
empreendedor quando se vive em um país cujo Estado desempenha um papel ativo
nos investimentos de “maior risco” (segundo os critérios do mercado
financeiro), até que a iniciativa privada sinta-se segura quanto aos possíveis
ganhos e “apareça para brincar e se divertir”.10
O que não significa que as
empresas não estejam vulneráveis à concorrência no setor, como explicitado pela
tentativa de boicote à chinesa Huawei, concorrente da Apple. O governo dos EUA
tenta impor restrições a que use tecnologias patenteadas em solo estadunidense,
como Bluetooth e cartões SD. Também mpede empresas como a Google de autorizar o
uso de seu sistema operacional. A tentativa fracassou. Neste caso, o Estado
exerce um papel ativo na proteção das nacionais no setor, como a Apple, que
seguem tendo este apoio para crescer e manter sua parcela de mercado.
Referências bibliográficas
MAZZUCATO, M. O Estado
Empreendedor: desbravando o mito do setor público vs setor privado; tradução
Elvira Serapicos. – 1a. Edição – São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.
MEDEIROS, C. A. O desenvolvimento
tecnológico americano no pós-guerra como um empreendimento militar. In: FIORI,
J. L. (Org.). O Poder Americano. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 225-252
POSSAS, M. L. Em direção a um
paradigma microdinâmico: a abordagem neoschumpeteriana. In: AMADEO, E. J.
(Org.). Ensaios sobre economia política moderna: teoria e história do
pensamento econômico. São Paulo: Marco Zero, 1989. p. 157-78.
UTTERBACK, J. M. Dominando a
dinâmica da inovação; tradução de Luiz Riske – Rio de Janeiro: Qualitymark Ed.,
1996
SCHUMPETER, J. A. Capitalismo,
socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores,[1942]1984.
1 SCHUMPETER,
J. A. Processo de Destruição Criadora. In: Capitalismo, socialismo e
democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, [1942]1984.
2 Idem
3 POSSAS,
M. L. Em direção a um paradigma microdinâmico: a abordagem neoschumpeteriana.
In: AMADEO, E. J. (Org.). Ensaios sobre economia política moderna: teoria e
história do pensamento econômico. São Paulo: Marco Zero, 1989
4 Esta
terminologia é utilizada por Medeiros (2004)
5 O
conceito de paradigma tecnológico e contexto científico é utilizado por
Utterback (1996).
6 Sistema
operacional móvel da Apple
7 UTTERBACK,
J. M. Dominando a dinâmica da inovação; tradução de Luiz Riske – Rio de
Janeiro: Qualitymark Ed., 1996. p 26-29
8 O
Minuteman é um dos principais mísseis balísticos intercontinentais dos EUA,
atualmente está na terceira geração (Minuteman III), já o Programa APOLLO é
projeto bilionário que segundo Carlos Medeiros de Aguiar (2004), conduziu o
maior esforço em programas de desenvolvimento de tecnologia desde o Projeto
Manhattan.
9 O
Governo interveio por meio da criação de um consórcio entre os principais fabricantes
com financiamento voltado à ciência, além da aplicação de tarifas antidumping
como parte de um esforço para desenvolver a capacidade de produção (MAZZUCATO,
2014).
10 MAZZUCATO,
M. O Estado Empreendedor: desbravando o mito do setor público vs setor privado;
tradução Elvira Serapicos. – 1a. Edição – São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014. p
156
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