Esquerda inglesa propõe revolução
de serviços públicos. Radicaliza agenda ambiental, associando-a à garantia de
ocupação para todos. E joga a conta sobre os muito ricos, desafiando a direita
a mostrar quem é de fato anti-establishment
Antonio Martins | Outras Palavras
Em época especialmente áspera,
quando o neoliberalismo teima em não sair de cena e emerge, ao mesmo tempo, uma
ultradireita pronta para capturar o sentimento anti-establishment das
maiorias – que espaço resta à esquerda? Fazer concessões à aristocracia
financeira? Assumir a defesa da ordem burguesa, ameaçada pelos protofascistas?
Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista britânico e personagem incomum na
política institucional, acaba de colocar na mesa uma saída audaciosa, que nega
as alternativas anteriores. O manifesto que
ele lançou hoje (21/11), e com o qual concorrerá às eleições de 12/12,
reconhece a indignação das multidões, diante de um sistema que as amedronta e
as despossui, e de uma “democracia” que já não lhes dá voz alguma.
Mas em vez de atiçar seu
ressentimento, em falatório hipócrita contra o sistema, acena com uma enorme
transformação social e ambiental. Quer financiá-lo por meio de uma reforma
tributária de dimensões históricas e de uma visão heterodoxa sobre finanças
públicas. Corbyn tem apenas três semanas para descontar os cerca de 15 pontos
percentuais de vantagem que as pesquisas dão a seu rival conservador, Boris
Johnson – uma espécie de Donald Trump inglês. Tem contra si o poder econômico e
a mídia. Nestas condições, uma eventual virada – difícil, mas não impossível –
terá imensa repercussão internacional e abrirá novos horizontes para os que
defendem e constroem lógicas pós-capitalistas.
Três eixos essenciais compõem o
núcleo do manifesto trabalhista. O primeiro é um choque de direitos sociais –
algo já presente na trajetória de Corbyn. Em 2015, ele partiu do quase
anonimato, derrotou a velha burocracia do partido e assumiu sua liderança ao
propor que o velho Labour reassumisse sua condição de defensor das
maiorias, contra a brutalidade do capital. Quatro anos depois, apresenta um
programa vasto e coerente de transformação dos serviços públicos. Quer, por
exemplo, o fim das taxas nas universidades públicas – introduzidas,
sintomaticamente, por Tony Blair, trabalhista acomodado. Em compensação,
acabará com os subsídios à educação privada. Defende a revalorização do Sistema
Nacional de Saúde (NHS, inspiração para o SUS), elevando seu orçamento em 4,3%
ao ano e tornando novamente públicos os serviços transferidos, ao longo do
tempo, a corporações empresariais.
Sugere uma vasta reforma urbana.
Quer restaurar o sistema de habitação social que marcou o Reino Unido no
pós-guerra, oferecendo um milhão de casas em uma década. Para ajudar a
enfrentar a especulação imobiliária e a segregação, proporá que as prefeituras sejam
autorizadas a congelar ou mesmo a estabelecer preços máximos para os aluguéis.
No programa do Labour, os transportes serão reorganizados, com a
garantia de passe livre urbano também para os menores de 25 anos e com a
expansão da rede de trens rápidos. Aliás, além das ferrovias, serão
renacionalizados a geração de energia, os correios e a banda larga de internet
– gratuita para todos, em dez anos. A renacionalização dialoga com a crítica
contra a piora generalizada dos serviços entregues à iniciativa privada – um
fenômeno global.
Um segundo eixo do manifesto é
construção mais recente. Corbyn defende uma sólida agenda de transformações
ambientais. Mas, em sintonia com o Green New Deal proposto pela
deputada latina Alexandra Ocasio-Cortez, nos Estados Unidos, quer dar também a
ela sentido social, articulando-a com a ideia de emprego garantido para todos.
A lógica é simples. Em ruptura com o descaso paquidérmico dos governos diante
do aquecimento global, o Partido Trabalhista tenciona a reduzir drasticamente
as emissões de CO² até 2025.
Mas sabe que, para tanto, não
bastam apelos à boa vontade individual. Quer fazê-lo por meio de uma
transformação da matriz energética do Reino Unido. Sabe que ela exigirá enorme
investimento em infraestrutura. Esta necessidade pode ser uma vantagem:
permitirá ocupar milhões de trabalhadores, hoje desempregados, na construção de
centrais eólicas e solares, na garantia de eletricidade aos que não podem pagar
por ela ou na adaptação de 27 milhões de casas a novas tecnologias mais
eficientes.
O desdobramento mais importante,
contudo, é político. Associar a agenda ambiental à garantia de ocupação para
todos permite quebrar as resistência de parte dos trabalhadores (e, em
especial, dos sindicatos) às causas ecológicas. Ao lançar o manifesto, hoje,
Corbyn referiu-se explicitamente aos trabalhadores na indústria do petróleo –
que, segundo o programa trabalhista, deverá ser gradativamente desativada. Propôs que tenham emprego garantido; direito a retreinamento por seis anos;
reincorporação às novas centrais de energia limpa. A nova postura abre uma
enorme avenida política. Pense, no Brasil, nas milhões de ocupação – das mais
elementares às mais sofisticadas – que seriam necessárias à despoluição dos
rios, à garantia de saneamento básico para todos ou à construção de metrôs e
ferrovias.
O terceiro aspecto central do
Manifesto é o financiamento dos dois eixos anteriores. Corbyn propõe um grande
esforço para reduzir a desigualdade, por meio de uma reviravolta tributária. Um “livro
cinza” anexo ao programa explica de onde virão os recursos para
realizar as propostas sociais e ambientais. Em sentido oposto ao
neoliberalismo, defende-se o aumento expressivo dos impostos sobre as grandes
corporações (especialmente multinacionais); cobrança de tributos suplementares
das empresas poluidoras; novos impostos sobre patrimônio (grandes fortunas) e
renda (até 50% de desconto sobre os maiores salários). Há refinamentos:
tributos pouco importantes em potência arrecadatória, mas de forte caráter
dissuasório: um “imposto milkshake” aos doces e bebidas açucaradas. Uma taxa
sobre as embalagens pretende obrigar os produtores de líquidos engarrafados a
eliminar os vasilhames descartáveis (como as garrafas pet) e reintroduzir os
retornáveis.
Embora o resultado da eleição
seja incerto, o caminho percorrido pelo Labour nos últimos quatro
anos é notável. Em 2015, além de derrotado eleitoralmente, o partido vivia
crise existencial. Os trabalhadores o abandonavam, a militância envelhecia. As
campanhas que levaram Corbyn à liderança e lá o mantiveram (ele foi duas vezes
derrubado pela bancada parlamentar e, em seguida, reconduzido pelas bases)
também resultaram em dezenas de milhares de novas filiações. O fantasma
político voltou à vida. Nas eleições parlamentares de 2017, o Labour obteve
um resultado surpreendente, que quebrou a maioria absoluta dos conservadores no
Parlamento. Sua volta ao governo parecia uma questão de tempo.
O processo foi interrompido,
porém, pela intensa polêmica em torno do Brexit. Uma “nova” direita –
expressa principalmente pelo atual primeiro-ministro Boris Johnson e por Nick
Farage, do Partido Independentista do Reino Unido (UKIP) – passou a apontar a
União Europeia (UE) como causa do empobrecimento das maiorias. Os setores
populares lhes deram razão. A frustração aumentou com as divisões e a
incapacidade do Parlamento para negociar a saída da UE, decidida num plebiscito
em 2016. Assessorado por Steven Bannon, Johnson construiu uma narrativa
simplória, por meio da qual divide o país entre o establishment – que
resiste a separar-se do bloco europeu – e ele próprio, que supostamente quer
garantir o desejo da maioria. Seu programa resume-se, em essência, a
concretizar o Brexit. Sua liderança nas pesquisas vem daí.
O Manifesto lançado hoje pelos
trabalhistas é também, nesse sentido, uma tentativa de resgatar o debate
coletivo sobre o futuro, de livrá-lo das mistificações e fake news, de
restaurar o espaço da Política. Por isso, não é só o destino da Inglaterra que
estará em jogo nas próximas três semanas.
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