Sem dúvida que está, opina Jens
Thurau. Mas é preciso ver o fenômeno no contexto de uma grande crise de
legitimação da democracia. E existe também a outra Alemanha, e essa precisa
dizer mais alto o que quer.
Quando, também em 2019, se
acenderam os candelabros do Hanuca para a festa das luzes judaica, a chanceler
federal alemã, Angela Merkel, emitiu uma mensagem de saudação: é um milagre,
disse, que após a ruptura civilizatória do Shoá, o Holocausto, volte a haver
vida judaica na Alemanha; um milagre por que "podemos ser profundamente
gratos".
O quadro é bem outro, quando se
conversa com concidadãos judaicos. Eles contam sobre agressividade crescente,
que não têm mais coragem de andar pelas ruas com o quipá, a cobertura de cabeça
judaica. E desde outubro gera horror o ato homicida de um jovem na cidade de
Halle, que abateu a tiros dois transeuntes quaisquer, mas na verdade pretendia
invadir uma sinagoga lotada, para lá cometer um assassinato em massa.
Após atos como esse, é grande a
consternação. Políticos dizem que tal coisa não pode jamais se repetir. Por
parte dos cidadãos de fé judaica, a reação é, antes, que há muito já esperavam
essa perda de limites, e não se espantam com mais nada.
Quer dizer que a Alemanha está
resvalando para a direita? Sem dúvida que está. A esperança de que a cada vez
mais descarada orientação nacionalista dos populistas de direita da Alternativa
para a Alemanha (AfD) fosse fazer recuar os eleitores foi destruída em todas as
eleições estaduais deste ano.
Segundo pesquisadores, há anos
existe na Alemanha um potencial de 15% a 20% dos cidadãos que estão abertos
para ideologia de direita radical ou extrema. E há muito caiu o tabu social de
que não se possa manifestar isso em público.
Muitas vezes são pequenas
notícias que evidenciam a transformação gradual. Pais de uma escola da Saxônia,
no Leste alemão, discordaram de seus filhos irem em excursão ao antigo campo de
concentração de Buchenwald e, como preparação, ler na aula o Diário de
Anne Frank. Ouvir algo assim faz subir um calafrio pela espinha.
Por outro lado, tudo isso se
desenrola num contexto internacional, em que a Alemanha ainda faz figura
relativamente boa. Na Itália um populista de direita chegou a ministro do
Interior – ainda que, por enquanto, apenas temporariamente. Na Áustria, até
pouco tempo atrás os populistas de direita compunham o governo federal.
No cerne, trata-se de uma maciça
crise de legitimação das democracias ocidentais. Em meio à alta velocidade da
globalização, os seres humanos perdem os alicerces e a visão do todo, e se
refugiam em sonhos de um mundo compreensível, delimitado por fronteiras
nacionais. Ele nunca existiu, mas parece atraente.
De fato, as democracias mal
conseguem manter o passo com os acontecimentos, Seus processos decisórios são
pesadões, os cidadãos esperam em vão por reformas verdadeiras no mundo do
trabalho, na terceira idade, nos cuidados de saúde. A impotência de muitos é
ainda maior por uma maioria da sociedade de fato participar do novo mundo das
possibilidades digitais ilimitadas. Isso resulta numa cisão da sociedade: entre
encima e embaixo, pobre e rico, digital e analógico, e, acima de tudo, entre
cidade e campo.
O desencadeador central dessa
dinâmica foi o grande número de refugiados chegados à Alemanha em 2015. Porém
há muito o ressentimento contra os migrantes se alastrou, contra os
estrangeiros residentes de longa data no país, contra membros da fé judaica. E,
assim, como nos Estados Unidos, estabeleceu-se no país uma guerra cultural dos supostos
párias contra o establishment – representado por políticos de todos
os partidos, a mídia e, justamente, minorias de toda sorte, também judeus. Cada
vez menos ocorre diálogo entre os grupos.
No palco político, o ponto
decisivo será se as conservadoras União Democrata Cristã (CDU) e União Social
Cristã (CSU) continuarão resistindo a formar coalizões com a AfD. Na
Saxônia-Anhalt, a governista CDU está em sério embate contra o número crescente
de membros de sua base que se mostram perfeitamente abertos a esse tipo de
alianças. Porém populistas de direita, com alas nacionalistas que agem
abertamente e numerosos nazistas em seus quadros, não podem assumir
responsabilidade de governar na Alemanha!
A maioria que segue defendendo
uma sociedade aberta tem que estar pronta para lutar pela democracia com mais
força e, acima de tudo, com mais barulho do que no passado. As leis,
Constituições e também a organização das democracias só funcionam se são
mantidas vivas pela sociedade.
Então, será que a Alemanha está
resvalando para a direita? Uma parte dela, sim, definitivamente. O que já tem
claros efeitos sobre a política: uma situação como no terceiro trimestre de
2015, quando tantos cidadãos deram boas-vindas aos refugiados, parece difícil
de se imaginar, hoje em dia. Mas a outra Alemanha também existe: ela só precisa
dizer mais alto o que quer.
Jens Thurau | Deutsche Welle |
opinião
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