domingo, 3 de fevereiro de 2019

Venezuela no fogo cruzado das potências mundiais


A Venezuela pode ser o rastilho de uma nova Guerra Fria na América Latina: percebendo que perdem para China a influência na região, EUA não aceitarão abrir mão de seu "quintal", avalia colunista Alexander Busch.

Quando o assunto é Venezuela, as ex-superpotências Estados Unidos e Rússia vasculham fundo no baú de cacarecos verbais da Guerra Fria. Ao anunciar recentemente que todo o faturamento em dólares com importações de petróleo venezuelano ficaria congelado numa conta especial, o assessor de Segurança americano, John Bolton, acrescentou, ameaçador: "A opção militar continua sobre a mesa."

O ministro russo do Exterior, Sergey Lavrov, advertiu contra uma intromissão militar americana: "Parece que os EUA não hesitariam em derrubar governos malquistos na América Latina." Ainda em dezembro, o presidente Vladimir Putin enviara ao Caribe dois bombardeiros supersônicos TU-160, com capacidade para portar armas nucleares. Uma provocação, já que Caracas está a apenas três horas de voo de Miami.

Comparado com os fanfarrões da Rússia e dos EUA, a terceira potência na Venezuela se manifesta de forma quase moderada. Hua Chunjing, porta-voz do Ministério do Exterior da China, urgiu todas as partes envolvidas a manterem a calma e negociarem uma solução política conjunta.

Isso soa tão débil e inócuo quanto uma resolução das Nações Unidas. No entanto, por trás está o pragmatismo chinês e uma porção de understatement, pois a China é a potência mundial que, há uma década, apoiou, com mais de 60 bilhões de dólares, primeiro o autocrata Hugo Chávez e agora seu sucessor, Nicolás Maduro. Sem Pequim, há muito os caudilhos de esquerda já estariam fora do jogo.

Nenhum outro país recebeu tanto crédito chinês quanto o grande produtor de petróleo no Caribe – um fato que os dirigentes em Pequim agora lamentam profundamente. "Com o desastre econômico, social e político, todo o interesse da China na Venezuela dissipou-se de uma vez só", confirma Matt Ferchen, especialista do Carnegie-Tsinghua Center for Global Politics. "A China quer, acima de tudo, estabilidade."

Para Pequim, o foco mundial sobre a Venezuela é um fator perturbador para a longamente planejada conquista estratégica da América Latina. Ele chama a atenção dos EUA e, em última análise, da comunidade internacional para o fato que, nos últimos 15 anos, Pequim expandiu meteoricamente sua influência econômica, mas sobretudo também política, na região.

E isso "no quintal dos Estados Unidos", que é como há quase 200 anos Washington vê os 23 Estados e 650 milhões de habitantes ao sul do Texas, até a Patagônia. Tudo começou em 1823, com a doutrina Monroe, quando o então presidente americano, James Monroe, declarou o Hemisfério Ocidental zona de influência exclusiva dos Estados Unidos. Desde então, os governos americanos consideram em primeira linha os próprios interesses estratégicos.

Agora a doutrina volta a ser colocada à prova, devido à entrada em cena da China – como 50 anos atrás, quando a União Soviética tentou inutilmente ampliar sua influência na região, a partir de Cuba. O novo jogo de poder tem consequências imprevisíveis.

"Washington não estará disposto a aceitar a China como mais importante protagonista econômico e político na América Latina", afirma Oliver Stünkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. No entanto, os EUA provavelmente não terão alternativa, pois num breve prazo os chineses ampliaram sua rede econômica e política na região, e a ela os americanos nada têm para opor.

A direção e velocidade da ofensiva chinesa na América Latina ultrapassa longe a inicial garantia de matérias-primas e energia, a qual acabou por tornar toda a região dependente das exportações para a China de minério de ferro, soja, cobre e petróleo.

Até o momento, o país já investiu lá 150 bilhões de dólares, muito mais do que na África, algo apenas superado por seu engajamento na Ásia. Conglomerados chineses compram usinas, redes de eletricidade, aeroportos e portos marítimos, constroem ferrovias, estabelecem zonas de livre-comércio e agora investem em fábricas de automóveis e plataformas digitais.

Originalmente, a assim chamada Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, ou BRI) não era destinada à América Latina, mas em 2018 o presidente Xi Jingping constatou, em uma de suas numerosas viagens, que a região "é a expansão natural da Rota da Seda marítima no século 21".

Desde então, 14 nações latino-americanas se candidataram para investimentos chineses no contexto da BRI. Chile, Peru e Colômbia, voltados para o Oceano Pacífico, competem agressivamente a fim de se transformarem em cabeças de ponte para os produtos chineses na América Latina, e para tal estão também dispostos a fazer concessões políticas ao Extremo Oriente.

Em 2018, a República Dominicana, El Salvador e Panamá cortaram relações diplomáticas com o Taiwan e as estabeleceram com Pequim, que os recompensou generosamente. Assim, agora o Panamá fechou mais de 20 grandes projetos com a China, e com seu canal o país é um eixo e polo decisivo para a dominância estratégica dos EUA no Hemisfério Ocidental.

Sob o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, também o México, colaborador estreito dos EUA, mostra-se aberto para investimentos chineses. Em conjunto com Pequim, o novo presidente pretende iniciar um Plano Marshall para a América Central, no montante de 30 bilhões de dólares, a fim de criar empregos e infraestrutura na região e, no médio prazo, limitar o fluxo de refugiados em direção ao Norte.

Contra isso, nem mesmo Donald Trump tem como impor seu veto. "A China está procedendo na América Latina com muito mais criatividade do que os EUA", observa Stünkel. Então não é de espantar que, após as hostilidades por parte do presidente americano, o México prefira apostar paralelamente na cooperação com a China.

"Para os governos da América Latina, o engajamento de longo prazo na China é mais atraente do que o tratamento inseguro, volátil, pelos Estados Unidos", comenta Cui Shoujun, diretor do Center for Latin America Studies da Universidade Renmin, na China.

Há muito os EUA mal prestam atenção à América Latina: além de "Chávez, Castro e Coca", o "quintal" não lhes interessa. Mas agora o país alerta de forma ácida contra a sedução chinesa. David Malpass, secretário de Estado para assuntos estrangeiros no Departamento de Finanças americano, menciona problemas de segurança, caso as comunicações da região fiquem centradas em redes chinesas.

O secretário do Exterior Mike Pompeo critica que a China não se preocupe com o bem-estar dos cidadãos latino-americanos, em vez disso cuidando, acima de tudo, do interesse de seu próprio governo: "Esses acordos são bons demais para ser verdade."

Alexander Busch* (av), colonista | Deutsche Welle

*Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Clique aqui para ler suas colunas. 

Termina prazo dado por europeus a Maduro


Sete nações da UE prometem reconhecer Juan Guaidó como presidente da Venezuela se não houver convocação de eleições presidenciais. Ultimato vai até este domingo. Trump afirma que envio de tropas ao país é "uma opção".

O prazo estabelecido por sete países da União Europeia (UE) para que o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, convoque novas eleições presidenciais chega ao fim neste domingo (03/02).

Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, Portugal, Holanda e Bélgica disseram que reconhecerão o líder da oposição Juan Guaidó como presidente interino, caso Maduro não respeite o ultimato de oito dias.

A ministra de Assuntos Europeus da França, Nathalie Loiseau, disse à TV LCI neste domingo que, "se até esta noite o presidente Maduro não se comprometer a organizar eleições presidenciais, a França considerará Juan Guaidó legítimo para organizá-las em seu lugar, e nós o consideraremos como presidente interino até a realização de eleições legítimas na Venezuela".

Mais tarde, a ministra reiterou o alerta em outra entrevista à mídia francesa: "O ultimato termina hoje".

No mesmo dia, o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, disse que Viena iria "reconhecer e apoiar Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela" se Maduro não convocar novas eleições.

O líder austríaco também afirmou, através do Twitter, que manteve uma "chamada telefônica muito boa com o presidente" Guaidó.

"Envio de tropas é opção"

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse à emissora americana CBS que o envio de militares para a Venezuela é "uma opção". O líder americano relatou ainda que Maduro pedira para encontrá-lo, mas que ele recusou o pedido.

Maduro rechaçou o ultimato dos países da UE classificando-o de um "descaramento". Ele disse aos participantes de uma manifestação pró-governo no sábado que é "o verdadeiro presidente da Venezuela".

Na quinta-feira, o Parlamento Europeu reconheceu o líder da oposição Juan Guaidó como líder interino do país e instou os países-membros da União Europeia a fazerem o mesmo.

Os ministros do Exterior da UE, contudo, continuam cautelosos, temendo a criação de um precedente que possa ser aproveitado por outras figuras da oposição em outras partes do mundo. Eles optaram por deixar que cada Estado dentro do bloco de 28 nações adote sua própria posição sobre reconhecer Guaidó ou não.

Maduro permaneceu desafiador neste domingo, compartilhando nas redes sociais imagens da manifestação pró-governo do dia anterior e agradecendo à nação por "tanto amor, tanto cuidado e compromisso eterno", afirmando que "somos guerreiros e guerreiras da paz".

Em entrevista gravada na sexta-feira e agendada para ser transmitida neste domingo, Maduro também disse que pessoas nas fábricas, universidades e outras áreas estão se preparando para o combate. "Simplesmente vivemos em nosso país e pedimos que ninguém intervenha nos assuntos internos. E estamos nos preparando para defender nosso país", disse ele à emissora espanhola La Sexta.

Manifestações em ambos os lados

No sábado, manifestações da oposição e pró-regime levaram milhares de pessoas às ruas de Caracas. Maduro chegou a sugerir que convocaria uma eleição parlamentar antecipada, enquanto Guaidó anunciou a instalação de centros de coletas nos países vizinhos Colômbia e Brasil para mantimentos e remédios enviados para venezuelanos atingidos pelas sanções.

O assessor de segurança nacional dos EUA, John Bolton, dissera que disponibilizaria o transporte para a chegada dos carregamentos humanitários, em resposta ao pedido de Guaidó.

Maduro já havia recusado a entrada de ajuda humanitária, alegando que esta precederia uma intervenção militar liderada pelos EUA.

Em um possível sinal de enfraquecimento do apoio a Maduro, a agência de notícias Reuters informou que a tropa de choque da polícia deixou manifestantes passarem e se reunirem em pelo menos três cidades durante os comícios de sábado.

Além disso, Maduro também enfrentou uma deserção de grande significado horas antes das manifestações, quando o general da Força Aérea Francisco Yánez anunciou seu apoio a Guaidó e o chamou de "ditador" em um vídeo.

Militar na ativa de mais alto escalão a renegar Maduro até então, Yánez também afirmou que "90% das Forças Armadas" não estão apoiando o líder socialista, acrescentando que "a transição para a democracia é iminente".

Mais tarde, o embaixador da Venezuela no Iraque, Jonathan Velasco, também anunciou seu apoio a Guaidó.

Ao propor "eleições antecipadas" neste sábado, Maduro falou em eleições parlamentares – e não presidenciais – para a Assembleia Nacional, presidida por Guaidó.

Críticos ao governo acusam Maduro de destruir a economia da Venezuela, que já foi impulsionada pelo setor energético, e de atropelar as instituições democráticas.

Guaidó, que no mês passado se autoproclamou presidente interino e pediu a realização de uma nova eleição presidencial, tem pouco controle sobre as instituições do Estado e o aparato governamental.

MD/rtr/ap/dpa

Bruxelas acusa bancos de ilegalidades com títulos de dívida soberana


A Comissão Europeia acusou oito bancos europeus de ilegalidades com títulos de dívida soberana da zona Euro

A Comissão Europeia acusou oito bancos europeus de atuar ilegalmente na negociação de títulos de dívida soberana de vários países da zona Euro. O processo em curso investiga suspeitas de que traders desses bancos atuaram em conluio para coordenar preços e trocar informação privilegiada.

Segundo o comunicado(link is external) da Comissão, as práticas ilegais terão ocorrido entre 2007 e 2012, entre o início da crise financeira global e as subsequentes crises de dívida soberana da zona Euro, que levaram países como a Grécia, Irlanda e Portugal à insolvência, à intervenção externa da Troika e a ruinosos pacotes de austeridade.

Por enquanto não se sabe quais os bancos acusados, nem a dimensão dos ganhos ilegais que terão acumulado. Valendo o mercado de dívidas da zona Euro sete triliões (milhões de milhões) de Euros, poderão estar em causa quantias elevadas. As penalizações poderão ir até 10% das receitas dos bancos acusados.

Após escândalos como a manipulação do Libor, este é mais um caso que coloca em causa as grandes instituições financeiras, com suas práticas manipulatórias e ganhos abusivos. Tão pouco é a primeira vez que Comissão Europeia enfrenta ilegalidades no setor. Em Dezembro passado soube-se que três bancos (Deusche Bank, Crédit Suisse e Crédit Agricole) estão em investigação num processo à parte por práticas análogas. E continua em andamento outro processo por manipulação de taxas de câmbio que envolve oito bancos, entre eles grandes brancos britânicos (Barclays, HSBC, Royal Bank of Scotland), americanos (Citigroup, JPMorgan) e suíços (UBS).

Desde 2013, as autoridades europeias multaram mais de uma dezena de bancos por práticas ilegais, num valor total de cerca de dois mil milhões de Euros. Todavia, para se por este valor em perspectiva, um dos bancos investigados, o HSBC, fez apenas no ano de 2017 lucros que são cinco vezes esse valor.

Carta Maior

*Publicado originalmente em esquerda.net

União Europeia ao lado de Trump contra a Venezuela


É importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, anotar os governos que, na Venezuela, virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas.

José Goulão* | AbrilAbril | opinião

Uma semana de atraso é caricata para funcionar como disfarce para uma subserviência rasteira anunciada. A União Europeia, com o governo português bem na linha da frente, segue a estratégia intervencionista e potencialmente fascista de Donald Trump na Venezuela. É importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, começar a anotar, um por um, os governos que virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas que poderá ser o resultado de uma de duas vias: a guerra civil, na esteira da Síria; ou uma ditadura fascista, a exemplo de Pinochet e alguns outros.

No seguidismo em relação à estratégia de Trump, a União Europeia assume a sua conivência com o golpe na Venezuela de uma maneira que contraria a maioria dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, apesar de esta entidade ser habitualmente considerada uma simples correia de transmissão dos desejos e interesses de Washington.

Do alto dos seus púlpitos ou na telegrafia dos seus twitters, os dirigentes da União Europeia dirão que não, nada têm com a decisão de Trump, porque o presidente norte-americano reconheceu Juan Guaidó ao mesmo tempo que este se autoproclamou, enquanto eles têm a boa vontade de dar uma semana a Nicolás Maduro para convocar eleições presidenciais. Caso contrário… reconhecerão Guaidó. Uma posição muito diferente, como se percebe; sabendo desde logo que Maduro não aceitará um ultimato para abdicar de um mandato constitucionalmente legítimo, assente em eleições democráticas, livres, não contestadas institucionalmente e realizadas apenas há oito meses. Poderiam até ter sido mais recentes, mas foram antecipadas para Maio de 2018 por exigência da oposição.

É interessante ouvir o titular das Necessidades exigir eleições democráticas e livres a Maduro. Sobretudo por ser o mesmo ministro a quem não consegue ouvir-se qualquer reparo ao actual governo fascista da Ucrânia, nascido de eleições com abstenção idêntica às presidenciais da Venezuela. Não por ter havido um qualquer «boicote» de qualquer oposição; tão só porque a Ucrânia estava – como está – em situação de guerra e cerca de meio país vive acossado pelo poder de forças armadas e milícias fascistas, razão de peso para os cidadãos não irem às urnas.

Se o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e alguns dos seus parceiros, entre eles alguns com as mãos sujas de sangue na Síria, entendem que a liberdade e a democracia da Ucrânia são exemplares e a solução é repetir em Caracas o famoso golpe de Maidan, em Kiev1, não precisam de fingir que entre eles e Trump ainda vai uma semana de diferença.

Nada de novo a rolar

A linguagem própria da comunicação mainstream recusa-se a usar a expressão «golpe de Estado» para identificar o que está a passar-se em Caracas como resultado das tramas urdidas em Washington. Trata-se apenas, como dizem Trump, Bolton e Pompeo, enormes vultos das liberdades e dos valores democráticos, de «restaurar a democracia» na Venezuela. Um passo absolutamente necessário porque o presidente democraticamente eleito é «um usurpador», enquanto um autoproclamado «presidente interino», invocando a Constituição do país para a violar, é um «legítimo» chefe de Estado – mesmo que nunca se tenha candidatado a presidente e use o cargo de presidente do Parlamento, em que também se autodesignou, para se apropriar de atribuições de outros órgãos institucionais. Uma verdadeira lição de separação de poderes.

Nada é novo neste mecanismo tão democrático. Passando, deste feita, ao lado da Ucrânia e fixando-nos apenas no «quintal das traseiras» dos Estados Unidos – a doutrina Monroe está de boa saúde e recomenda-se – «restaurações democráticas» assim sucedem-se há mais de dez anos na região.

Honduras

Muitos ainda terão na memória o caso das Honduras, em 2009, onde o presidente democraticamente eleito foi deportado para a Costa Rica, deposto pelo presidente do Parlamento com assessoria de outro grande democrata, John Negroponte – uma vida ao serviço do intervencionismo de sucessivos presidentes norte-americanos. Alguém que, também nas Honduras, mas noutra fase da democracia recomendada pelo Departamento de Estado, tinha aconselhado a criação de esquadrões da morte, mostrando assim uma vasta amplitude de meios ao dispor para atingir os fins pretendidos.

A partir de então, as Honduras vivem uma história de eleições falsificadas, mas todas elas aceites em Washington, Bruxelas, Paris, Berlim ou Lisboa como perfeitamente válidas, segundo os cânones da democracia. Viveu-se recentemente mais um episódio da saga, em que a manipulação foi tão grosseira que Washington e a Organização dos Estados Americanos demoraram um mês a validar os resultados. Mas validaram-nos – e nisso não verá o ministro Santos Silva qualquer ofensa à democracia, a legítima, a que proporciona os resultados que os democratas sem mácula consideram apropriados ao país.

Paraguai

Depois, em 2011, chegou a vez do Paraguai, onde um ex-bispo católico, à frente de uma vasta coligação progressista, teve a inusitada coragem de enfrentar séculos de poder dos terratenientes, os latifundiários.

O que foi ele fazer!?... Sob a batuta da embaixadora norte-americana, logo no Parlamento houve quem encontrasse maneira de transformar maiorias em minorias, legitimidade em impeachment presidencial; o ex-bispo retirou-se, substituído pelo seu vice-presidente, e o fascismo banqueiro e latifundiário reinstalou-se, um pouco mais benévolo que o do carniceiro Stroessner, mas fascismo social, militar, sob capa política «democrática». Nada que ofenda as sensibilidades do homem das Necessidades e dos seus parceiros de Lisboa a Budapeste, de Bruxelas a Varsóvia.

Equador, Brasil

A embaixadora norte-americana transitou de Assunción para Brasília e em terras brasileiras o Congresso, sintonizado com uma justiça muito justiceira, declarou o impeachment da presidenta e o vice-presidente subiu de posto.

Os acontecimentos daí resultantes, iniciados em fins de 2015, ainda estão em curso com novas e profícuas benfeitorias para a democracia, moldada esta em forma de Bolsonaro com o mesmo barro de que foi feito Trump. E para isso foi mesmo preciso prender Lula da Silva para não ganhar as eleições, uma vez que não tinha rival por próximo.

Em paralelo, o presidente progressista do Equador foi posto de lado e a contas com a justiça enquanto o seu vice-presidente assumia funções e foi agora um dos primeiros a dar a mão a Guaidó contra Maduro, o «usurpador».

Verdadeiramente independentes e soberanos, sobraram, na América Latina, a Bolívia – sempre sob várias ameaças – Nicarágua, Cuba e a Venezuela. A «troika da tirania», como tão apropriadamente a baptizou, recentemente, o conselheiro para a Segurança Nacional da administração de Donald Trump, John Bolton.

É contra esses países, e também contra o México, que agora se desviou perigosamente do guião, que está em curso a operação «restaurar a democracia». E o Brasil, o Paraguai, as Honduras e o Equador são bons exemplos de «democracias restauradas».
Petróleo e democracia

É um dogma: petróleo e democracia andam sempre de mãos dadas. E a relação é directamente proporcional, portanto quanto mais petróleo, mais democracia.

Sabemos bem que assim é. Na Arábia Saudita, por exemplo, onde existem as segundas maiores reservas petrolíferas; e no Koweit e Emirados Árabes Unidos, sétimo e oitavo no ranking dos mais dotados, como pode apurar-se na página 12 da publicação BP Statistical.

Conhecemos igualmente os casos de países onde não havia democracia e agora ela jorra abundantemente, para não haver infracções ao dogma que rege as coisas do mundo. Por exemplo, no Iraque e na Líbia, quintas e nonas maiores reservas mundiais, onde apropriadas guerras «restauraram a democracia» para franquear o acesso livre às riquezas do subsolo.

Mas houve e há casos onde abunda o petróleo e faltava, ou ainda falta, a inerente democracia que determina a sua partilha segundo o modelo transnacional.

Era assim no Brasil e no Equador, mas o problema está em vias de resolução. Sobretudo no Brasil, onde nos tempos de Lula da Silva foram detectadas reservas de petróleo que catapultaram o país para um surpreendente e apetitoso terceiro lugar do ranking – 200 mil milhões de barris, menos 66 mil milhões que a Arábia Saudita. Uma riqueza fabulosa que corria o risco de ficar ao serviço dos interesses egoístas do povo do Brasil, e não da grande irmandade mundial.

Como todos acabamos de perceber, agora que a Petrobrás vai a caminho do grande leilão mundial, a democracia e o petróleo deram as mãos também no Brasil. Tal como no Equador, pouco falado mas ainda assim o 19º país em reservas petrolíferas, do mesmo nível das que estão detectadas no México – onde a empresa pública petroleira, a Pemex, continua sob pressão para deixar de o ser.

Mas há um país onde existe uma situação intolerável, um caso em que o governo teima em manter nas mãos da população o usufruto das riquezas petrolíferas. E que riquezas!

Nada mais, nada menos, que a maior potência do mundo em reservas petrolíferas, com 300 mil milhões de barris, mais 37 mil milhões que a famosíssima Arábia Saudita, mais cem mil milhões que o Brasil.

A Venezuela!

Tanta riqueza não pode estar apenas na mão do povo de um país. É reparti-la, entregá-la às transnacionais que verdadeiramente conhecem o sector e o fazem verter para o mundo inteiro, tão democraticamente como ordenam o mercado e a inquestionável ordem neoliberal.

E o mercado é oprimido na Venezuela. Torna-se necessário «restaurar a democracia» para que ele se sinta livre e o petróleo jorre para todos. É simplesmente o que está a acontecer pelas mãos do eleito Guaidó, embora ninguém o tenha elegido para o cargo que ocupa e do qual se permite fazer ultimatos aos «usurpadores».

Lei eleitoral à medida

Juan Guaidó demonstrou, nas últimas horas, estar compenetrado do seu papel. E também ele dá ordens ao governo legítimo, tal como os senhores do mundo e da democracia, mas a genuína: ele exige eleições, mas que não sejam realizadas segundo o sistema legal em vigor mas com outro – que ele e os mentores externos ditarão, tal como mandam que se realizem eleições para que o golpe seja perfeito, isto é, não pareça um golpe.

Pelo que tem vindo a perceber-se, os interesses que fizeram avançar Guaidó já demonstraram que a sua democracia se constrói à base de ultimatos, arbitrariedades e jogos fraudulentos entre os conceitos de legitimidade e ilegitimidade.

Deduz-se, por isso, que não excluirão quaisquer meios para atingir os objectivos que já estabeleceram entre si.

Um deles é o recurso à agressão militar. Não tardará que Guaidó, fazendo uso dos poderes que lhe foram conferidos por interesses externos, chame países «amigos» como o Brasil, a Colômbia – que é parceiro da NATO – ou o Paraguai, para que reponham a «ordem democrática».

Talvez, por este caminho, as pretendidas eleições decorram manu militari, como na Ucrânia, onde os resultados foram tão bons.

Ou talvez não.

Pode acontecer que as instâncias legítimas da Venezuela e o povo resistam às agressões, sejam elas políticas ou militares. E que não entreguem sem lutar o que tanto custou a conquistar.

Se os poderes externos insistirem, no horizonte está o pior dos pesadelos de um país, a guerra civil. Daí à carnificina não será preciso dar mais qualquer passo. Temos ainda diante de nós o caso da Síria, que se iniciou na sequência de ultimatos impostos a um governo legítimo e soberano, na sequência de manifestações orquestradas do exterior – como está abundantemente provado.

Ou, em alternativa, no horizonte está também a imposição de um regime fascista de onde nascerá, radiosa, a democracia.

Pode ainda acontecer, no limite, que o presidente legitimamente em funções na Venezuela, fazendo uso dos poderes que a Constituição lhe confere, peça socorro a países amigos, que os tem.

Não será difícil vaticinar que tempos dolorosos se avizinham da Venezuela e dos povos da América Latina.

Mais difícil será prever como tudo irá acabar. E que nunca mais nenhum governo da União Europeia tenha o desplante e a ousadia de queixar-se dos crimes de Donald Trump.

Para todos os efeitos, já são conhecidos alguns responsáveis pelo que vier a acontecer. E o governo português não estará isento da sua quota-parte. A comunidade portuguesa na Venezuela bem poderá queixar-se da armadilha que lhe foi montada pelos que mandam em Lisboa.

Na foto: Encontro do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018. Créditos/ US Department of State

1. Em 2017 passou desapercebida uma notícia transmitida pela Reuters sobre a realização na Venezuela, nos meios ligados à oposição de direita, de sessões de cinema onde se passava um documentário favorável ao golpe de Maidan, com o objectivo de ensinar aos jovens direitistas venezuelanos as técnicas de armamento e a táctica de luta de rua utilizada pelos grupos pró-Maidan. A notícia não informa a mão generosa que propiciou tal peça formativa, mas não é difícil adivinhar.

*Publicado em AbrilAbril em 28 de Janeiro de 2019

Democracia francesa, morta ou viva?

"14 de maio de 2017. Restauração da monarquia", diz este cartaz dos Coletes Amarelos
Os Coletes Amarelos em 2019

Diana Johnstone [*]

Democracia Francesa Morta ou Viva? Ou talvez se deva dizer, enterrada ou renascida? Porque para a maior parte das pessoas comuns, longe dos centros do poder político, financeiro e mediático, em Paris, a democracia já está moribunda, e o seu movimento é um esforço para salvá-la. Desde que Margaret Thatcher decretou que "não há alternativa", a política económica ocidental é composta por tecnocratas para benefício dos mercados financeiros, alegando que tais benefícios vão gotejar para a população. O gotejamento secou e as pessoas estão cansadas de ver as suas necessidades e desejos totalmente ignorados por uma elite que "sabe melhor".

O discurso da véspera do Ano Novo, do Presidente Emmanuel Macron à nação, deixou perfeitamente claro que depois de uma tentativa pouco convincente de lançar algumas migalhas ao movimento de protesto dos Coletes Amarelos ( Gilets Jaunes) , ele decidiu endurecer.

A França está a entrar num período de turbulência. A situação é muito complexa, mas aqui estão alguns pontos para ajudar a compreender o panorama geral.

OS MÉTODOS 

Os coletes amarelos reúnem-se em lugares ostensivos, onde podem ser vistos: nos Campos Elíseos, em Paris, nas praças principais de outras cidades e nas numerosas rotundas, junto às cidades pequenas. Ao contrário das manifestações tradicionais, as marchas parisienses foram muito soltas e espontâneas, as pessoas passeavam e falavam umas com as outras, sem dirigentes e sem discursos.

A ausência de dirigentes é inerente ao movimento. Todos os políticos, mesmo os amistosos, são olhados com desconfiança e ninguém procura um novo líder.

As pessoas estão organizando as suas próprias reuniões para desenvolver listas de queixas e exigências.

Na aldeia de Commercy, na Lorena, a meia hora de carro de Domrémy, onde nasceu Joana d'Arc, os habitantes reúnem-se para ler as suas proclamações. Seis deles leram em turnos, um parágrafo cada um, deixando bem claro que não querem líderes, nem nenhum porta-voz especial. Por vezes tropeçam numa palavra, não estão acostumados a falar em público como os apresentadores da TV. O seu "Segundo apelo dos Coletes Amarelos de Commercy", convida os demais a irem ali de 26 a 27 de Janeiro para uma "assembleia de assembleias". 

AS EXIGÊNCIAS 

As pessoas que inicialmente foram às as ruas vestindo coletes amarelos, em 17 de Novembro, protestavam ostensivamente contra uma subida dos impostos da gasolina e do gasóleo, que afectaria mais as pessoas na França rural. Obcecado em favorecer as "cidades do mundo", o governo francês tomou medidas sucessivas à custa das pequenas cidades e aldeias e das pessoas que vivem lá. Esta foi a última gota. O movimento mudou-se rapidamente para a questão básica: o direito do povo de opinar sobre as medidas tomadas que afectam as suas vidas. Democracia, numa palavra.

Durante décadas, partidos da esquerda e da direita, quaisquer que fossem os seus discursos de campanha, uma vez no poder continuavam as políticas ditadas pelos "mercados". Por esta razão, as pessoas perderam a confiança em todos os partidos, em todos os políticos e estão a exigir novas maneiras de as suas reclamações serem escutadas.

O imposto sobre o combustível foi logo esquecido à medida que a lista de exigências se tornou mais longa. Críticos do movimento salientam que é impossível alcançar tantas exigências. Não adianta dar atenção às reivindicações populares, porque as pessoas simplórias exigem tudo e o contrário.

Esta objeção é respondida pelo que surgiu rapidamente como a sendo a exigência máxima e única do movimento: o Referendo da Iniciativa dos Cidadãos (CIR).

O REFERENDO 

Este quesito ilustra o bom senso do movimento. Em vez de fazer uma lista de "obrigações a serem cumpridas", os CA pedem, apenas, que as pessoas possam escolher – e o referendo é a maneira de escolher. A solicitação é para que um certo número de signatários – talvez 700 mil, talvez mais – possa obter o direito de convocar um referendo sobre uma questão da sua escolha. O direito a um CIR existe na Suíça, em Itália e na Califórnia. A ideia horroriza todos aqueles cuja profissão é serem os 'sabichões'. Se as pessoas votarem, advertem os 'sabichões', com um arrepio, fá-lo-ão para todo tipo de coisas absurdas,

Um modesto professor de uma faculdade em Marselha, Etienne Chouard, vem desenvolvendo, há décadas, ideias sobre como organizar a democracia directa, tendo o referendo como centro. A sua hora chegou com os Coletes Amarelos. Ele insiste em que um referendo deve sempre ser realizado após um longo debate e com tempo para reflexão, para evitar decisões emocionais do momento. Tal referendo requer meios de comunicação honestos e independentes, que não sejam todos propriedade de interesses especiais. É preciso garantir que os políticos que fazem as leis sigam a vontade popular expressa no referendo. Tudo isto sugere a necessidade de uma convenção constitucional do povo.

O referendo é um pormenor amargo na França, uma poderosa causa subjacente a todo o movimento dos Coletes Amarelos. Em 2005, o Presidente Chirac (insensatamente, de acordo com o seu ponto de vista) convocou um referendo popular sobre a ratificação da proposta de Constituição da União Europeia, certo de que seria aprovada. A classe política, com poucas excepções, entrou em plena retórica, reivindicando um futuro próspero como uma nova potência mundial sob a nova Constituição e advertindo que, caso contrário, a Europa poderia mergulhar, de novo, nas duas grandes Guerras Mundiais. No entanto, os cidadãos comuns organizaram um extraordinário movimento de auto-educação popular, à medida que os grupos se reuniam para analisar os assustadores documentos legais, percebendo o que eles significavam e o que implicavam. Em 29 de Maio de 2005, com uma participação de 68%, 55% dos franceses votou pela rejeição da Constituição. Somente Paris votou fortemente a favor da mesma.

Três anos mais tarde, a Assembleia Nacional – isto é, os políticos de todos os partidos – votaram para adoptar praticamente o mesmo texto, o qual em 2009 se tornou o Tratado de Lisboa.

Esse golpe à vontade popular claramente expressa, produziu tal desilusão que muitos, impotentes, se afastaram da política. Agora estão a voltar. 

A VIOLÊNCIA 

Desde o início o governo reagiu com violência, num desejo visível de provocar respostas violentas a fim de condenar o movimento como violento.

Um exército de polícias, vestidos como robots, cercou e bloqueou grupos de Coletes Amarelos pacíficos, afogando-os em nuvens de gás lacrimogéneo e disparando balas de borracha directamente contra os manifestantes, ferindo gravemente centenas de pessoas (não há números oficiais). Algumas pessoas perderam um olho ou uma mão. O governo nada tem a dizer sobre isso.

No terceiro sábado de protesto, este exército de polícias não conseguiu parar – ou teve ordens para permitir – que um grande número de bandidos ou Black Blocs (quem sabe?) se infiltrasse no movimento e destruísse propriedades, vandalizasse lojas, ateasse fogo a contentores de lixo e carros estacionados, fornecendo aos media mundiais imagens que provam que os Coletes Amarelos são perigosamente violentos.

Apesar de toda esta provocação, os Coletes Amarelos mantiveram-se extraordinariamente calmos e determinados. Mas, é certo que haverá algumas pessoas que perderão a calma e tentarão reagir.

O BOXEUR 

No oitavo sábado, 5 de Janeiro, um esquadrão de polícias protegidos por plexiglass atacava violentamente os Coletes Amarelos numa ponte sobre o rio Sena, quando um indivíduo corpulento perdeu a paciência, saiu da multidão e foi ao ataque. Com os punhos, espancou um polícia e fez com que os outros se afastassem. Esta cena incrível foi filmada. Podia ver-se os Coletes Amarelos a tentar segurá-lo, mas o Rambo era imparável.

Descobriu-se que era Christophe Dettinger, um cigano francês, ex-campeão de boxe de pesos pesados da França. A sua alcunha é "o cigano de Massy". Ele afastou-se da cena, mas fez um vídeo antes de se entregar. "Reagi mal", disse, quando viu a polícia a atacar mulheres e outras pessoas indefesas. Aconselhou o movimento a afastar-se em paz.

Dettinger enfrenta sete anos de prisão. Em um dia, o seu fundo de defesa acumulou 116.433 euros. O governo congelou o fundo – sob um pretexto legal que desconheço. Agora circula uma petição em seu favor.

A CALÚNIA 

No seu discurso de Ano Novo, Macron repreendeu paternalmente o povo dizendo: "Não podem trabalhar menos e ganhar mais" – como se todos eles quisessem passar a vida a descansar num iate e a observar os preços das acções da bolsa a subir e a descer.

Em seguida, ele emitiu a sua declaração de guerra:

"Nestes dias vi coisas impensáveis e ouvi o inaceitável". Aparentemente aludindo aos poucos políticos da oposição que ousaram simpatizar com os manifestantes, repreendeu aqueles que fingem "falar em nome do povo", mas que são, apenas, os "porta-vozes de uma multidão odiosa, que persegue os representantes eleitos, polícias, jornalistas, judeus, estrangeiros e homossexuais. É simplesmente a negação da França".

Os Coletes Amarelos não estão a "perseguir" ninguém. A polícia é que tem andado atrás deles. De facto, as pessoas falaram vigorosamente contra as equipas com câmaras de gravação de canais que, sistematicamente, distorcem o movimento.

Nem uma palavra do movimento foi ouvida contra estrangeiros ou homossexuais.

A palavra-chave é judeus.

Qui veut noyer son chien l'accuse de la rage . (Provérbio francês).

Como diz o ditado francês, quem quer afogar o seu cão alega que ele tem raiva. Hoje, quem quer arruinar uma carreira, vingar-se de um rival, desgraçar um indivíduo ou destruir um movimento, acusa-o de anti-semitismo.

Então, diante de um movimento democrático em ascensão, era inevitável jogar a carta do "anti-semitismo". Estatisticamente, era algo quase certo. Em quase todos os lotes aleatórios de centenas de milhares de pessoas, pode-se encontrar um ou dois que têm algo negativo a dizer sobre um judeu. Isso é tudo. Os falcões dos media estão à procura. O menor incidente pode ser usado para sugerir que o motivo real do movimento é reviver o Holocausto.

Esta pequena canção ligeiramente irônica, apresentada num dos círculos de tráfego da França, contrasta o "bom" establishiment com a gentalha "ruim". É um enorme sucesso no YouTube. Dá o tom do movimento. Les Gentils et les Méchants. 

Não demorou muito para este número feliz ser acusado de anti-semitismo. Por quê? Porque foi ironicamente dedicado a dois dos mais virulentos críticos dos Coletes Amarelos: A estrela de Maio de 68, Daniel Cohn-Bendit e o velho "novo filósofo", Bernard-Henri Lévy. A nova geração não os apoia. Mas esperem, eles são judeus. Ah! Anti-semitismo!

A REPRESSÃO 

Diante do que o porta-voz do governo, Benjamin Griveaux, descreveu como "agitadores" e "insurrectos" que querem "derrubar o governo"; o primeiro-ministro, Edouard Philippe, anunciou uma nova "lei para proteger melhor, o direito às manifestações". A sua medida principal é: punir fortemente os organizadores de uma manifestação cuja hora e local não teve aprovação oficial.

Na verdade, a polícia já havia prendido Eric Drouet, motorista de camião de 33 anos, por organizar uma pequena cerimónia de velas em homenagem às vítimas do movimento. Houve muitas outras prisões, sem qualquer informação sobre as mesmas. (Casualmente, durante as férias, bandidos nos arredores de várias cidades realizavam a sua incineração ritual de carros estacionados, sem qualquer publicidade ou repressão. Eram carros de pessoas da classe trabalhadora que precisam deles para ir trabalhar, não eram os carros preciosos dos quarteirões da classe rica de Paris, cuja destruição causou tamanho escândalo.)

Em 7 de Janeiro, Luc Ferry, um "filósofo" e antigo ministro da Juventude, Educação e Pesquisa, deu uma entrevista radiofónica, na mui respeitável Radio Classique em que declarou: "A polícia não tem meios para acabar com esta violência. É insuportável. Escute, francamente, quando se vê indivíduos a dar pontapés a um pobre polícia quando ele está caído, é o suficiente! Deixem que eles usem armas, de uma vez por todas, basta! […] Tanto quanto eu saiba, temos o quarto exército do mundo, capaz de pôr fim a este lixo".

Ferry pediu a Macron para fazer uma coligação com os republicanos, a fim de promover as suas "reformas". No mês passado, numa coluna contra o Referendo da Iniciativa dos Cidadãos, Ferry escreveu que "o actual desconcerto de especialistas e as críticas ao elitismo é a pior calamidade dos nossos tempos".

OS ANTIFA 

Onde quer que as pessoas se reúnam, os grupos Antifa podem levar a cabo a sua busca indiscriminada para erradicar "fascistas". Em Bordéus, no último sábado, os Coletes Amarelos tiveram que lutar contra um ataque dos Antifa.

Agora está completamente claro (como de facto sempre esteve) que os "antifascistas" autoproclamados são os cães de guarda do status quo. Na sua procura incansável por "fascistas", os Antifa atacam qualquer coisa que se mova. Com efeito, eles protegem a estagnação. E, curiosamente, a violência dos Antifa é tolerada pelo mesmo Estado e pela mesma polícia que insulta, ataca e prende manifestantes mais pacíficos. Em resumo, os Antifa são as tropas de assalto do sistema actual.

OS MEDIA 

Sejam cépticos. Pelo menos em França, os grandes media estão solidamente ao lado da "ordem", significando Macron, e os media estrangeiros tendem a reflectir o que a comunicação mediática nacional escreve e diz. Além do mais, como regra geral, quando se trata da França, os media anglófonos erram muitas vezes.

O FIM 

Não está à vista. Isto pode não ser uma revolução, mas é uma revelação da natureza real do "sistema". O poder reside numa tecnocracia ao serviço dos "Mercados", ou seja, do poder do capital financeiro. Esta tecnocracia aspira a refazer a sociedade humana, as nossas próprias sociedades e as de todo o planeta, no interesse de um certo capitalismo. Ele usa sanções económicas, propaganda avassaladora e força militar (NATO) num projecto de "globalização" que molda a vida das pessoas sem o seu consentimento. Macron é a própria corporificação deste sistema. Foi escolhido por esta famosa elite a fim de realizar as medidas ditadas pelos "Mercados", impostos pela União Europeia. Ele não pode desistir. Mas agora que o povo acordou para o que está a acontecer, ele também não pararão. Apesar de todo o lamentável declínio do seu sistema escolar, os franceses de hoje são tão bem-educados e razoáveis quanto se pode esperar de qualquer população. Se forem incapazes de democracia, então a democracia é impossível. 

11/Janeiro/2019


Tradução de Luisa Vasconcelos 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

Portugal | A outra face da Presidência


Manuel Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

O presidente da República (PR), que surpreendeu grande parte dos portugueses pela forma descomplexada com que acomodou a solução governativa que havia horrorizado o seu predecessor, pelo estilo pouco convencional com que tem exercido o cargo e, ainda, pela desenvoltura com que se pronuncia diariamente sobre assuntos que são da competência de outros órgãos de soberania, volta a surpreender com pronunciamentos e decisões que parecem revelar uma outra face da Presidência, até agora pouco exposta.

Neste texto vou referir-me apenas a posições assumidas pelo PR a respeito da proposta de Lei de Bases da Saúde, e à decisão de nomear o comentador João Miguel Tavares para a presidência da Comissão das Comemorações do próximo 10 de Junho.

Começo pela Lei de Bases. Pode o presidente estabelecer que partidos devem votar favoravelmente uma lei? Está atribuído às escolhas do PR o dom de garantir a uma lei a credibilidade a adequação e a perenidade necessárias? Não. Compete à Assembleia da República (AR) propor (ou acolher propostas do Governo), discutir e aprovar as leis de acordo com o que a Constituição consagra. E não há forças políticas ou deputados de primeira e de segunda.

Pode o PR anunciar o veto a uma lei, antes de estar discutida? Não. Porque ao fazê-lo exerce pressão ilegítima sobre a AR e oferece o poder de veto a forças que ele posiciona para o poderem usar. O anúncio que o presidente fez configura-se como perigosa birra política ou chantagem. É comum ouvi-lo responder (e bem) a jornalistas que lhe perguntam o que vai fazer com a lei A ou B: "não sei, porque ainda não me chegou e só depois é que a analisarei e me pronunciarei". Por que razão neste caso se nega tão frontalmente?

A matéria é muito importante para os portugueses. O PR deve dar-lhe atenção e tem o direito de exercer a sua magistratura de influência junto do Governo, dos partidos e de outros atores. Mas nos parâmetros constitucionais. Se esta sua chantagem vingasse, iniciar-se-ia um caminho de revisões da Constituição à la carte, a partir das agendas e desejos de presidentes. Por isso deve ser rechaçada sem hesitações e a AR tem meios para o fazer.

A Lei de Bases em vigor foi aprovada em 1990 apenas pelo PSD e pelo CDS. Ela, no geral, permitiu garantir saúde aos portugueses mas, ao longo destes 28 anos, perdeu estabilidade e tornou-se instrumento crescente do depauperamento e sangria do SNS, a favor dos chorudos negócios privados com a saúde.

As posições do PR surgem num contexto que não pode ser ignorado: i) há fortes pressões e chantagens sobre o SNS - algumas camufladas por problemas que o Governo já devia ter resolvido - visando dar campo e força ao setor privado; ii) o CDS afirma esse objetivo e o PSD quer "incentivar o privado"; iii) o presidente, talvez por inspiração divina surgida no Panamá, já introduziu o chipe da (possível) segunda legislatura; iv) a Direita e o centrão de interesses clamam contra a possibilidade (direito e dever) de a atual maioria política, agora ou no futuro, encetar reformas estruturais.

Passemos ao 10 de Junho. Estranhou a muitos a nomeação de João Miguel Tavares (JMT) para presidir àquela Comissão. A estranheza começa a ter substância. JMT fez leituras sobre condecorados do passado e descobriu (artigo, "Público" 31/01) que o mais condecorado de todos se chama Marcelino da Mata e é negro. Daí deduz, com alguns acrescentos patéticos de outrem, que toma como seus, por exemplo, que Portugal não é um país racista. JMT ignora verdades que o incomodam, ao mesmo tempo que amplia e manipula factos e mentiras para sustentar os seus propósitos. Transforma a personagem Marcelino da Mata quase em exemplo.

Cumpri 40 meses de serviço militar obrigatório, 26 dos quais na guerra colonial. Ouvi contar façanhas desse sujeito e de outros do mesmo calibre: alguns dos seus atos configuram-se como crimes de guerra. De JMT pode esperar-se esta surpresa entusiástica por aquela figura ter recebido tantas condecorações entre 1966 e 1973, jamais que estranhe o facto de o militar mais condecorado hoje não ser nenhum dos muitos, honrados e generosos, Capitães de Abril.

Esta nomeação não lembrava ao Diabo e coincide com expressões da outra face da Presidência.

* Investigador e professor universitário

Portugal | E se fingíssemos que o racismo não existe?


Ana Alexandra Gonçalves* | opinião

Na verdade é precisamente isso que temos vindo a fazer e, no pior dos cenários - naqueles em que é particularmente difícil escamotear - alegamos, de forma invariavelmente condescendente, que o nosso racismo não é tão mau quanto o dos outros e que se calhar, bem vistas as coisas, nem é bem racismo, são ideias pré-concebidas, eventualmente mal concebidas.

O problema ocorrido no Bairro da Jamaica (conjunto de prédios em alvenaria promovido a bairro) foi o suficiente para levantar a questão do racismo e do incómodo que o assunto traz para aquele pano de fundo de que tanto gostamos e que apelidamos de "brandos costumes".

Deste modo subsiste uma divisão que começa a ser cada vez mais notória entre aqueles que consideram que o racismo deve ser amplamente discutido e outros que, em nome de um argumento que postula que a mera associação de determinadas situações à palavra racismo fortalecerá movimentos de extrema-direita.

Bom, não será necessária uma análise particularmente exaustiva da História para se perceber que o silêncio e o subsequente gesto de empurrar o problema para debaixo do tapete nunca resolveu o que quer que seja, bem pelo contrário - permitiu que o pior viesse mesmo a acontecer.

Por conseguinte, e mais que não seja por esta razão que a História não nos fará esquecer, fingir que o racismo não existe nem sequer pode ser considerada opção, seja em nome do que for.

*Ana Alexandra Gonçalves | Triunfo da Razão

Portugal | "Um povo sem cultura é um povo desgraçado e nós estamos muito mal"


José Raposo é uma das figuras mais conhecidas e acarinhadas pelo público. Seja no cinema, televisão ou teatro, são muitos os trabalhos que completam o seu vasto currículo e há muito para recordar e contar. Hoje é o entrevistado do Vozes ao Minuto, partilhando os muitos momentos que já viveu, recordando os que já partiram e enumerando o que poderia melhorar no país… e no mundo.

"O teatro é que eu não deixo, nunca”. A afirmação pertence a um dos mais reconhecidos atores portugueses, José Raposo, que privilegia os palcos, "porque essa é a base de representar”.

Aos 55 anos anos, o artista, que nasceu em Angola e que se mudou para Portugal na adolescência, vai estrear já este sábado, dia 2 de fevereiro, a peça 'Vou Levar-Te Comigo', no Auditório da Gandaia, Centro Comercial O Pescador, na Costa de Caparica, Lisboa. Apesar do grande amor por esta forma de arte, não deixa de dar o seu contributo à ficção nos ecrãs portugueses e soma também muitas participações em televisão e cinema.

Não tem o 'canudo', mas a larga experiência faz de si uma dos atores mais conhecidos e acarinhados pelo público. Tudo o que sabe aprendeu com os mais velhos, por quem continua a ter uma enorme estima e vai sempre lembrar. 

José Raposo é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto. Além da representação, fala ainda das mudanças que faria no mundo se lhe fosse concedido esse poder, isto sem esquecer do que falta melhorar no país (quando o tema são as artes).

A família não ficou de parte, até porque se prepara para ser pai pela terceira vez, de uma menina, o primeiro bebé fruto do casamento com Sara Barradas. Além da filha que nasce em março, o ator é ainda pai de Ricardo, de 25 anos, e de Miguel, de 32, do casamento anterior com Maria João Abreu.

Vai estrear-se em palco com a peça ‘Vou Levar-te Comigo’ já amanhã. Um espetáculo cheio de música que além da sua participação, conta ainda com Sara Barradas e Vera Mónica. O que de melhor há nesta peça e por que razão as pessoas a devem ver?

Queria fazer uma peça para andar pelo país e quando estava a fazer o ‘Circo Paraíso’, numa conversa com a Vera Mónica, como somos atores e cantamos os dois, a Vera deu-me o exemplo de um show brasileiro dos anos 50/60, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, em que eles estiveram três anos a fazer aquilo em tournées… O espetáculo consistia em ela cantar e ele dizer uns textos - ora poemas, ora umas crónicas sobre o Brasil da altura. Vi aquilo e disse que podíamos fazer isto cá, com algo relacionado connosco. Falámos com o Fernando Heitor, que é o autor do texto, apresentei-lhe a ideia e ele escreveu a história, que é um fio condutor para nós cantarmos.

É uma história de dois atores já com uma certa carreira que se conheceram há muitos anos e que tiveram, inclusivamente, uma relação e depois separaram-se, e falaram com uma guionista encenadora, que é a Sara, que lhes vai dirigir um espetáculo baseado nos percursos profissionais e pessoais que eles os dois tiveram nas suas carreiras. Isto vai desaguar nas canções das suas vidas. 

Por exemplo, eu nasci em Angola e vim para Portugal aos 13, 14 anos, enquanto a Vera no Brasil mas veio embora com seis anos e foi para Angola. De Angola veio com 16, 17 para Portugal… ‘Vou Levar-te Comigo’ é o nome de uma canção dos Duo Ouro Negro, um grupo angolano que teve muito sucesso nos anos 60, 70 e 80 e ainda hoje é um pouco transversal às várias gerações. Por isso, deu título à peça.

Acho que se pode definir este espetáculo como uma comédia musicada, porque não é nem comédia, nem revista, nem musical. Somos três atores e três músicos ao vivo. No fundo somos seis protagonistas porque, aliás, os músicos também têm falas pelo meio. O espetáculo é uma espécie de um ensaio para um futuro espetáculo, onde existe a encenadora, os dois atores e os três músicos.

Portanto, no fundo vai mostrar o processo da criação de um espetáculo?

Sim, baseado nestas condições que disse.

Esta não é a primeira vez que está em palco com a companheira, Sara. A preparação para um trabalho torna-se mais fácil quando feita com alguém com quem partilha o dia a dia?

Quando esse alguém tem talento, que é o caso da Sara, sim. E óbvio que há cumplicidades que se criam. Mas, acima de tudo, tem a ver com sermos os dois atores e termos talento e cumplicidade. Óbvio que é a nossa produtora que produz este espetáculo, ‘Estreia, Sucesso e Despedida’, é o terceiro espetáculo que nós produzimos. O primeiro foi em 2012, uma comédia do brasileiro Paulo Pontes que se chamava ‘Isto É Que Me Dói!’; o segundo foi um texto baseado no Woody Allen mas escrito pelo meu filho, Miguel Raposo.

Mas por exemplo, no processo de criação de uma personagem, ensaiam juntos?

Não, até porque nem temos muito tempo. Não temos tido porque felizmente há outras coisas. Aliás, estamos a ensaiar todas as tardes e depois há sempre coisas para fazer. Além dos outros trabalhos que estamos a fazer, nós produzimos, por isso temos telefonemas a fazer, ida aos sítios para falar com os teatros… Não temos mesmo muito espaço para estar a ensaiar em casa. Quer dizer, a pessoa pode ler o texto antes de se deitar, isso sim. Mas não ensaiamos concretamente os dois. Só lá com o encenador, o Paulo César.

O espetáculo vai andar pelo país e a Sara, que vai ser mãe no final de março, vai estar em cena até ter o bebé. De certa forma deixa-o mais descansado por poder acompanhá-la nestes últimos meses? Sente-se mais seguro por saber que está consigo?

Sim, isto é só aos fins de semana. Durante a semana estamos juntos. É claro que é bom ela estar próxima porque assim mais proximamente a acompanho. Mas, se pensarmos bem, as pessoas que têm outras profissões, que durante a semana trabalham das 9h às 19h, estão, se calhar, menos tempo com as respetivas mulheres ou maridos do que nós. Nesse sentido não nos podemos queixar. A Sara é como qualquer grávida do mundo e enquanto puder trabalhar… Aliás, no espetáculo a encenadora (que é a Sara) está grávida, não se sabe muito bem de quem e depois do fim acaba-se por perceber quem é o pai. Mas quando ela tiver a bebé no final de março, aí terá de ser substituída.

Está prestes a chegar a primeira menina à família e como referiu numa conversa anterior com o Fama ao Minuto, vai ser a princesa… O que mais o deixa ansioso nesta nova jornada?

A ansiedade normal de um pai que está desejoso de ver a cara daquela coisinha linda, como é que é, oxalá saia à mãe porque ela é muito bonita…

O seu maior desejo é poder vê-la crescer, casar e ter filhos?

Sim, é o normal. É o que aconteceu com os meus filhos. Por exemplo, um casou e o outro não. Não faço essas previsões. Nessas coisas acho que, sem dúvida, cada um é que deve fazer as suas opções, a partir do momento em que é adulto e que tem capacidade para o fazer. Agora, o que me interessa é passar os valores que me passaram os meus pais.
E quais são esses valores?

Os normais, aqueles do respeito pelo próximo, de perceber que a ganância e a mediocridade e essas coisas todas que sabemos que são inerentes ao ser humano, mas que se houver uma boa formação pode-se, e deve-se, excluí-las da nossa vida. Os valores positivos que acho que qualquer pai normal, pelo menos, deseja passar aos filhos e foi o que tentei passar aos meus. Não estou a dizer que é só pela educação que se tem uma boa formação, porque depois há personalidades próprias e há influências da sociedade nas pessoas. Mas a formação de casa, dos pais, tem sempre muita influência na maneira de ser das pessoas.

Antes de viver este amor com a Sara, esteve mais de 20 anos ao lado de Maria João Abreu… O amor que se sente numa nova relação é igual ao da primeira?

O amor é o amor. Não há respostas para isto. O amor é um sentimento que não se explica. Não há esses termos de comparações. As pessoas apaixonam-se e depois amam-se… é o amor.

Como já referiu várias vezes, tem uma família muito unida e conta com o apoio dos filhos em tudo. Isto foi fruto do que semeou ao longo destes anos?

Sim, claro. Eles, por exemplo, ficaram felicíssimos quando souberam da notícia da irmãzinha. Acho natural, normal. Como disse há bocado, isso tem a ver com a formação que nós [pais] damos, com os valores…

Recordando a sua infância… Já que nasceu em Angola, o que de mais angolano há em si?

A noção do tempo, muito retardada, muita calma… Gosto de ter tempo para ter tempo e é uma coisa que cada vez há menos nas nossas sociedades atuais. É muito ritmo acelerado em relação a tudo. Passa tudo muito depressa. Por exemplo, já não há tempo, o respeito pelas pessoas mais velhas, aquela adulação que se tinha pelos mais velhos por serem os sábios, por serem as pessoas que têm o conhecimento. Agora tudo se passa muito rápido, descartam-se os mais velhos. Vejo isso na minha profissão, e nas outras também acontece, mas falo da minha porque é onde estou inserido. Cada vez se dá menos trabalho aos mais velhos, cada vez se ouve menos os mais velhos e isso a mim é uma das coisas que mais me choca.

Em entrevistas anteriores falou sobre quando foi chamado para o casting que acabou por marcar o seu primeiro trabalho na representação, nessa altura a sua mãe preferia que tivesse ido a uma entrevista na Caixa Geral de Depósitos…

Sim, isso é uma história que se conta muito e que se sabe porque a minha mãe ainda hoje acha que eu devia estar na Caixa Geral e Depósitos…

Os seus pais nunca concordaram com a sua escolha?

Não, a minha mãe. O meu pai concordava. Aliás, ele foi ator amador e tinha um grande orgulho em mim. A minha mãe é que dizia que era melhor estar na Caixa Geral de Depósitos. E há muitas pessoas que pensam assim porque veem isto não como um profissão, mas como um hobbie, uma coisa engraçada, umas palhaçadas... As pessoas não têm noção do quão exigente esta profissão é, e difícil. Trabalha-se muito, é muito irregular porque os trabalhos são uns a seguir aos outros, portanto, nunca se sabe quanto tempo é que se está parado ou não. As pessoas estão sempre à espera de um telefonema... Não é nada fácil. Claro que há exceção, há casos de pessoas que tiveram sorte e talento. Mas a maior parte dos profissionais, principalmente em Portugal, onde não há apoio quase nenhum para a cultura por parte dos governos. Aqui é muito difícil da pessoa aguentar-se enquanto artista, e estou a referir-me a todas as áreas da arte.

Mas sempre sentiu que o teatro fazia parte da sua vida?

Sim, desde que comecei, aos 18 anos. Faz parte da minha vida e faria, com certeza, sempre porque tenho essa tendência e tenho talento. Acima de tudo, isto é um dom, não é qualquer pessoa que é ator.

A aparência pode ser um fator limitativo no mundo do espetáculo?

Sim, nos dias de hoje a imagem conta muito. Principalmente na televisão, a imagem é uma das coisas que conta muito, até demais, na minha opinião. Acho que nos últimos tempos se descura um pouco o talento em função da imagem. Claro que é possível juntar as duas coisas.

Sente que é por isso que os atores mais velhos acabam por não ter o devido reconhecimento e que acabam por não ser chamados com o passar da idade?

Sim. Estou a falar em relação à televisão em que, de facto, os atores mais velhos, os atores gordos e feios, que não tenham a tal aparência mínima, são postos de lado. E é muito injusto.

Considera então que hoje em dia a seleção dos novos talentos é muito diferente do seu tempo?

Sim, sem dúvida nenhuma.

Para melhor ou para pior?

Pois, se descuram o talento, nesse sentido, é para pior. Felizmente, e é importante dizer isto, não é em todos os mercados. No teatro não se passa isso e também há exceções na própria televisão, mas cada vez são mais pequenas. Mas, principalmente em relação aos atores mais velhos, é muito injusto não os chamarem para personagens da idade deles.

Como referiu há pouco, a vida de um ator nem sempre é fácil e por vezes o telefone deixa de tocar… Alguma vez se sentiu afastado?

Sim, claro que sim. Para já, no início, andamos a mostrar-nos, a pesquisar grupos, pessoas e a saber como é que funciona o mercado... Eu não sou dos que mais se pode queixar. Felizmente, ao longo da vida tenho tido sempre trabalho, mas há realmente períodos que são mais complicados. Mas conheço casos dramáticos, pessoas, inclusivamente, que tiveram que procurar outras profissões porque isto não estava a dar.

E acha que muitas vezes não ser chamado pode estar ligado ao facto de não estarem em contacto com as pessoas certas? Ou seja, também existem os chamados ‘tachos’ no universo do entretenimento?

Sim, claro, mas isso não é só na nossa profissão. É em todo lado. Qualquer tipo de profissão tem os lobbies muito bem cimentados e, sim, dificulta a entrada nos vários mercados. Por exemplo, quando as pessoas se formam têm sempre mais dificuldade em entrar sem ter os tais conhecimentos. É cada vez mais complicado. 

Hoje consegue-se viver apenas do teatro?

Não, isso é impossível.

O que é que é preciso para o conseguir ou para possibilitar que isso aconteça?

Era preciso que o Estado primeiro apoiasse mais a cultura. Depois que o Estado também possibilitasse que nas escolas houvesse uma ligação ao teatro muito mais intensa. Ou seja, criarem disciplinas de teatro e subsidiarem as escolas no sentido de levarem as crianças a ver teatro. Além de se estudar teatro, devia-se levar as crianças ao teatro porque são hábitos que se criam. E um povo sem cultura é um povo desgraçado. A cultura é o espelho do povo e nós nesse aspeto estamos muito mal. Nós regredimos, o que é uma coisa estranhíssima, devíamos era ter progredido muito. E estou a falar concretamente do teatro. De facto, se não é por iniciativa própria de alguns professores e algumas escolas que levam os alunos a ver teatro, não se faz porque não vem no plano de estudos. Devia pertencer ao Estado ter essa função de educar. Não é só para serem atores, antes pelo contrário, é para serem espetadores. Isso só havendo uma cultura, só incentivando a gostar-se de dramaturgos, de autores…

Cada vez se retira mais ao currículo escolar os nomes dos nossos escritores. Não percebo como é que, por exemplo, o Gil Vicente já não é obrigatório, que era o pai do teatro português… Muitas vezes ouço opiniões de que, de facto, a nossa história dramatúrgica não é tão rica como, por exemplo, a inglesa ou a francesa, mas temos os nossos dramaturgos e temos belíssimos dramaturgos. Não são em tão grande quantidade, não temos um Shakespeare ou um Molière, mas temos um Gil Vicente. Os próprios autores mais contemporâneos, temos gente extraordinária…

O próprio Governo devia obrigar as companhias a que representassem uma percentagem de autores portugueses por ano para nós conhecermos a nossa cultura. Isto para não falar do teatro mais popular, por exemplo, o da revista, que é um teatro que fiz muito, do qual gosto muito, e que é muito falado pejorativamente. Ou seja, há um preconceito muito grande em Portugal que esse é um teatro de menor qualidade e isso é mentira. Sempre disse isto, depende de quem escreve, de quem faz, de quem dirige… Se se juntar uma boa equipa de profissionais pode ser um espetáculo fabuloso. Nas escolas de teatro em Portugal sei que se diz mal deste género, da revista. Não entendo, nem nunca vou entender isso porque é um teatro em que és devidamente português. É uma coisa que tem características muito nossas e que podia ser elevada a outro nível, se houvesse apoio estatal e se não houvesse tanta contestação da parte da própria classe artística.

Entre os muitos trabalhos feitos, tanto na representação como na dobragem de personagens, deu voz ao famoso Pumba, personagem de um dos desenhos animados mais acarinhados, ‘O Rei Leão’. Formato que vai regressar agora em filme... Também vai fazer de Pumba nesta longa-metragem?

Por acaso ainda não me disseram nada, não sei. Pode ser que haja outro Pumba.

Aprendeu a arte do Hakuna Matata (a arte de não se preocupar e levar a vida sem problemas)?

Sim, por acaso tem muito a ver comigo. Sou muito tranquilo, muito descontraído na vida. Gosto de conhecer pessoas, de estar bem, de tentar fazer felizes os que estão à minha volta. Mas isto não é conversa da boca para fora, basta perguntar a pessoas que me conhecem. Sou uma pessoa bem disposta e que gosta de estar com energias positivas das outras pessoas à volta.

De todos os projetos que fez até aqui, qual foi o que mais lhe tocou particularmente?

Muitos!!! E depois é aquela coisa de que gosto de recordar as coisas boas. Quando as pessoas dizem que a nostalgia é uma coisa horrível… Não, não é nada. Quando as coisas são boas não é tão bom recordar?

E qual é o projeto que mais gostava de ter feito (TV, Cinema, Teatro)?

Tantos! Não há um específico. Mas é muito complicado. Já apresentei vários projetos em televisão, mas nunca me levam muito a sério porque só há duas ou três grandes instituições que decidem, como todos nós sabemos. Entre as direções das televisões e as grandes produtoras é que se decide tudo. Não é um rapazinho tão pequenino como eu que pode dizer: ‘Olha, gostava de fazer isso’. Eles querem lá saber. Por isso é que no teatro eu posso fazer isso. Este projeto, ‘Vou Levar-te Comigo’, é exatamente uma coisa que quero fazer e com quem quero. Só aqui é que posso fazer aquilo que quero mesmo.

Em relação às televisões, temos de nos sujeitar aos trabalhos que existem. E quando nos convidam, é evidente, temos de ganhar a vida e eu já fiz muitas coisas que gosto em televisão. Às vezes na RTP Memória passam coisas de que já nem me lembrava bem. Está a passar agora, por exemplo, a ‘Roseira Brava’. Adorei fazer aquela telenovela com colegas que muitos deles já faleceram. Eram mestres autênticos da arte de representar. Vejo aquilo e recordo com todo o prazer. Há coisas muito boas em televisão que se fazem, claro, agora não são propostas por mim porque não tenho esse poder, não sou nenhum produtor conhecido…

Como disse mesmo agora, já contracenou com vários atores e alguns deles até já partiram… Quais as maiores saudades que ficam do que foi vivido?

Acima de tudo é isso, são as saudades das pessoas com quem aprendemos. Fazem-me falta esses mestres. Nunca gosto de dizer nomes porque me esqueço sempre de uma pessoa ou de outra e é injusto. Mas tive a sorte de trabalhar com gente fantástica, fabulosa, que sabia muito disto. As gerações depois são outras e há sempre gente fantástica em todas as gerações, obviamente. Mas aprendi, claro, com gente mais velha e tenho que falar deles.

Há algum momento em especial que lhe tenha tocado e que continua muito vivo na memória?

Há muitos. Não posso falar de um… Por exemplo, a propósito desta novela, estão lá nomes que me ensinaram muito e que também fizeram teatro comigo, como o Nicolau Breyner, Armando Cortez, Henrique Canto e Castro… Não fiz conservatório, não tive formação académica e aprendi com os encenadores, os atores e os realizadores com quem trabalhei, que foram estas pessoas mais antigas. Fui vendo e aprendendo.

Já com 55 anos de vida, mais de 40 vividos em Portugal, o que mudou para melhor no nosso país e o que continua escondido?

O que mudou, como todos nós sabemos, foi o tempo do fascismo para depois a democracia. A liberdade é uma coisa que não tem preço. Tudo mudou para melhor nesse sentido. Para pior tudo o que tem mudado é o que nós sabemos e que está à nossa volta. A corrupção que existe, as desigualdades que não deveriam acontecer num regime de democracia. Por muitos governos que se formem, parece que é muito difícil de combater coisas que já estão a ser corrigidas há muito tempo. Concretamente em relação à cultura, que é a área onde trabalho, é um crime nos dias de hoje, num regime democrático, a cultura estar tão maltratada.

Se lhe fosse concedido o poder de mudar apenas uma coisa em si ou no mundo, o que mudaria?

No mundo não mudava só uma coisa, tinha de mudar muitas… Posso dar o exemplo desta história da questão ecológica. Estamos a destruir-nos aos poucos e os políticos estão a marimbar-se para isto porque só veem o presente e a economia sobrepõe-se a tudo, a todas essas formas ideológicas de poder mudar o mundo para melhor. E não deixam que a questão ecológica possa evoluir. Sabemos o que se está a passar no mundo em relação às florestas que destroem, às grandes indústrias que mandam e decidem tudo e se sobrepõem a esses interesses. É tudo isso que está mal e era isso tudo que mudava se pudesse, mas é muito complicado. 

Marina Gonçalves | Notícias ao Minuto | Foto: Global Imagens

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